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O México na Casa Azul | por Cátia Simon

O México é mais Frida do que Diego. E a questão é mais complexa do que supõe a nossa vã filosofia. Em um primeiro momento essa observação ou juízo de valor pode estar colado ao valor de mercado e nem precisa andar muito atento para perceber isso. Não é só no México, mas em diversos lugares do mundo somos intimados a ver o rosto de Frida Kahlo em variados objetos: chaveiros, ímãs de geladeira, niqueleiras, camisetas, agendas, caderninhos, bonecas, etc. O mercado não é bobo, ele só navega em águas mansas, transforma nossas resistências em mercadoria em um abrir e fechar de olhos.

Basta confrontar a imagem de um com a do outro que a Frida dá de dez a zero no companheiro. Mas, não vamos por aí. Essa é a via preferida do patriarcado, desprezar o que está fora dos padrões estabelecidos pelo colonizador; o gordo e o velho são cartas desvalorizadas no pôquer da vida. Tudo tem data de validade, até mesmo a água quando engarrafada.

No contexto de forte influência ameríndia, as limitações físicas da admirada mexicana não diminuem seu valor, ao contrário, colocam-na como uma mulher sui generis, praticamente uma heroína ou uma deusa. Já Diego, ainda que tenha inegável genialidade em sua arte é cobrado por não ter correspondido à altura a lealdade amorosa de Frida. Alguns dirão que a única lealdade devida seria com ele próprio e nada mais. E ademais, dirão outros, nem tão leal fora ela, ainda que também genial. Viviam as turras e zelavam por uma ética construída na contramão dos valores burgueses.

No entanto, ao adentrarmos na Casa Azul somos capturados por um imenso território por onde se derramam diversas e intensas Fridas e quase nenhum Diego. Há um ambiente permeado de delicadezas e recados dela para ele onde se podem ouvir uma voz amantíssima dominante. O registro na parede que antecede a entrada “Frida y Diego vivieron en esta casa 1929-1954” nos induz a acreditar que aquilo de fato aconteceu.

Nas primeiras salas encontramos a genealogia da família de Frida e já alguns esboços de quadros seus. Na copa, a delicadeza das flores entre as cores amarela e azul dão conta de um espaço que provoca o desvio do olhar para as composições que saltam da mesa para as paredes em ziguezagues mirabolantes. Não há duvida que o ambiente se propõe a trançar emoções e dissuadir discussões. Como deslindar assuntos espinhosos sob um amarelo que grita e um azul que tanto nos leva ao céu quanto ao mar? Assim também é o quarto principal em que a delicada cama de casal circundada por flores mimosas se encarrega de salvaguardar um mundo a parte. No atelier, segundo o que nos informam, a mão de Diego surge na forma de parafernália, garantindo à Frida as condições de produzir a sua arte. Nesse espaço, os sopros inspiratórios pairam sobre tintas, pincéis e a cadeira de rodas também inerte.

Ao circularmos pelos jardins, vislumbramos pequenas ilhas da paixão. Lá, é possível enxergarmos várias Fridas espalhadas e tomadas por contraditórios sentimentos de uma ancestralidade pujante. Há esturros de jaguar por entre as plantas e pedras. Há marcas de garras que irrompem conforme o sol se apresenta ou se esconde; há risos em diversos tons e choros aos borbotões e vozes de Fridas em eco.

 

Cátia Castilho Simon

Doutora em estudos da literatura brasileira, portuguesa e luso-africanas/UFRGS

e escritora.

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