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O livro “Vista Chinesa” por Paulo Halm

Apesar de ter comprado Vista Chinesa (último livro de Tatiana Salem Levy) há semanas, demorei – relutei seria mais correto – um bocado a iniciar a leitura. A proximidade com a vítima do estupro no qual o romance é inspirado criou uma espécie de barreira, um pudor, o receio de estar invadindo – e de alguma forma, violentando – a intimidade da Joana Jabace
Joaninha foi minha aluna na Darcy Ribeiro, no começo dos anos 2000. Depois, fui reencontrá-la trabalhando na TV Globo, ela já uma talentosa diretora, eu como autor de novelas. Eu sabia que ela havia sido estuprada, mas nunca fiz qualquer comentário sobre o episódio. No projeto que estamos trabalhando atualmente, existe muita violência contra mulheres. Confesso que ficava constrangido imaginando como a Joana reagiria àquelas situações de violência, de agressão, de abuso. Mas como a própria Joana, corajosamente, autorizou a publicação do doloroso relato dessa violenta experiência e confiando na sensibilidade da Tatiana Salem Levy , venci os temores e decidi enfrentar o Vista Chinesa e todas as suas feridas e dores expostas.

Apesar de ser um romance relativamente curto, 90 poucas páginas, é um texto denso, sofrido, muitas vezes cru – característica da literatura de Tatiana, que consegue combinar com maestria uma prosa sensível e poética com uma crueza realista, brutal, sem anestesia.

É o caso do relato do estupro, ou melhor dizendo, dos relatos, já que a narrativa fragmentada, narra o episódio sucessivas vezes, como estilhaços de uma memória ferida. Aliás, como em outros romances da autora, Vista Chinesa é também um romance sobre a memória: a memória da dor, a memória do corpo roubado, fraturado, rejeitado. Mas Vista Chinesa é também um romance de superação. É o relato sobre a reconquista do próprio corpo espoliado, mutilado, da redescoberta do prazer que fora sequestrado, aprisionado pela violência, pela vergonha e pelo trauma. O final do romance me remeteu ao belo desfecho de Os Mortos, de James Joyce. Assim como em Joyce a neve cai, impassível, sobre os vivos e os mortos, em Vista Chinesa é uma tempestade tropical que cai, arrastando tudo com sua força irresistível, as lembranças, os medos, as dores, a beleza e o horror dessa nossa vida. Belo e potente.

PAULO HALM
Formado em cinema pela UFF, é escritor, roteirista e diretor de cinema e tv. Como roteirista, destaca-se por, entre outros, escrever o roteiro de Pequeno Dicionário Amoroso, Amores Possiveis, Sonhos Roubados e Pequeno Dicionário Amoroso – 15 anos depois, todos de Sandra Werneck. A Maldição do Sampaku, Quem Matou Pixote?, Dois Perdidos Numa Noite Suja, Achados e Perdidos e Olh9os Azuis, todos de José Joffily. Guerra de Canudos, de e com Sergio Rezende e A casa da mãe Joana 1 e 2 e Não Se Preocupe, Nada Vai Dar Certo, de Hugo Carvana. Participou também dos roteiros de Cazuza, O Tempo Não Para e Meu Nome Não É Johny. Escreveu também as comédias Jeitosinha e Ninguém Entra, Ninguém Sai. Como diretor, dirigiu diversos curtas e documentários, como PSW, uma Cronica Subversiva, Biu, Ou a Vida Real Não Tem Retake, Retrato do Artista com um 38  na Mão e O Resto é Silencio. Em 2010 estreou em Longa metragem com Histórias de Amor Duram Apenas 90 Minutos. Em 2013 lançou o documentário de longa metragem Hijab, mulheres de véu. No momento, prepara seu novo longa de ficção, Pais e Filhos, que espera rodar após a pandemia. Em televisão, é autor dos grandes sucessos Totalmente Demais e Bom Sucesso (premio APTC de melhor novela de 2020 ), além de Malhações Sonhos. Trabalhou também na TV Escola, onde escreveu e dirigiu a série Trama do Olhar e o documentário Veredas, Caminhos da Educação.

 

SOBRE O LIVRO:

Vista Chinesa de Tatiana Salem Levy

SINOPSE

Estamos em 2014. Euforia no Brasil e especialmente no Rio de Janeiro. Copa do Mundo prestes a acontecer, Olimpíadas de 2016 à vista. Autoestima da cidade nas alturas. Sensação de que o país havia encontrado um novo caminho. Júlia é sócia de um escritório de arquitetura que está planejando alguns projetos na futura Vila Olímpica. No dia de uma dessas reuniões com a prefeitura, Júlia sai para correr no Alto da Boa Vista, um enclave de Mata Atlântica no meio da grande cidade. A certa altura, alguém encosta um revólver na sua cabeça e a leva para dentro da mata, onde é estuprada.
Deixada largada no meio da floresta, ela se arrasta para casa, onde uma amiga lhe presta os primeiros socorros. O rosário de dor, sensação de imundície e “culpa” é descrito com crueza e qualidade literária poucas vezes vistas em nossa ficção. Assim como os percalços junto à polícia para tentar encontrar o criminoso numa sociedade em que basta ser pobre para parecer suspeito. Mas nem tudo é horror e escuridão. A história é narrada para os filhos da protagonista anos depois do terrível episódio. Os fatos retrocedem e avançam no tempo. Temos o início de namoro de Júlia, sua lua de mel numa praia paradisíaca, a gestação. São momentos em que habilmente a autora constrói outra visão do corpo e da sexualidade de Júlia como uma prova, para quem cometeu a violência e para si mesma, de que ela é ainda a dona da própria história.

TATIANA SALEM LEVY

Publicado em 2007, A chave de casa, de Tatiana Salem Levy (1979, Lisboa, Portugal), venceu o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Estreante e foi finalista do Jabuti de 2008. Na trama autobiográfica, a protagonista, neta de judeus da Turquia e filha de comunistas brasileiros, reconstrói as origens de sua família através de uma narrativa que combina elementos ficcionais e memórias. Tatiana Levy também é autora de A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze, e seus contos foram publicados nas coletâneas Paralelos (2004) e em 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2005).

TRECHO DO LIVRO

Era uma terça-feira. O ano: 2014. O Brasil, país do futuro, parecia bastante próximo de realizar seu destino. Em menos de um mês, sediaria a Copa do Mundo e, dois anos depois, o Rio de Janeiro se tornaria a capital olímpica. Nada apontava para um desastre, nem na cidade, capa de todos os jornais e revistas, nem na minha vida. Não tinha como dar errado, até porque os destinos se fundiam. Meu escritório — naquela época, apenas Cadu e eu — tinha vencido o concurso para projetar a sede do campo de golfe, que, depois de cento e doze anos, voltava às Olimpíadas. Lembro o dia da semana porque havia deixado um papel em cima da escrivaninha: terça-feira, reunião com a prefeitura. Mais precisamente, nossa primeira reunião com a Secretaria do Meio Ambiente, o dono do terreno na Barra da Tijuca e o projetista internacional do campo de golfe, todos juntos. Severino, o porteiro do prédio, ainda não tinha voltado do almoço e, como de hábito, escondi a chave num vaso de planta ao lado da escada. Nunca levo nada comigo quando saio para correr, só o celular preso na calça e os headphones nos ouvidos. Até aí, consigo me lembrar de tudo, da porta do prédio batendo, eu olhando para o lado para conferir se vinha algum carro, atravessando a rua, virando à direita, depois à esquerda, passando pela padaria do Horto e pela banca de jornal, mas, a partir do instante em que começo a percorrer o trajeto de subida até a Vista Chinesa, os detalhes se tornam menos precisos. Não sei dizer se havia outras pessoas, se havia mais pássaros do que o normal, se macacos cruzaram o caminho, ou se o sol, que reluzia forte, em algum momento desapareceu atrás de uma nuvem. Quando estou correndo, eu me desligo do mundo. Nem a floresta que ladeia a pista, nem eventuais passantes, nem mesmo o visual lá de cima, assombroso, me chamam a atenção. Só volto à realidade quando a voz metálica do telefone interrompe a música para me anunciara velocidade média e a quilometragem percorrida. Se a cabeça vai longe, o corpo, pelo contrário, está sempre presente. Os músculos da perna se contraem, a dor chega, lancinante, e fico no limite de desistir. Mas isso nunca aconteceu. Por mais penoso que seja, sou incapaz de dizer a mim mesma: Hoje, estou cansada. Hoje, meu corpo não aguenta. Eu o obrigo a aguentar. Mas, com a dor, chega também o prazer, a endorfina se espalha, o sangue circula com pressa, e tenho a sensação de que estou cumprindo a minha meta. Duas vezes por semana, eu repetia o ritual. A única diferença aqui era o horário: eu nunca corria à tarde. De manhã tem mais gente, e eu detestava ouvir meus pais ou o Michel dizendo que eu não devia correr na Vista Chinesa, é deserta, o Rio de Janeiro, mesmo agora, mesmo sendo a cidade mais falada do mundo, nunca deixou de ser perigoso. Mas até aquela terça-feira o perigo era para mim uma abstração. Sem que eu tivesse intuído nada, previsto nada, sem que eu tivesse pensado, está vazio, ou avistado alguém estranho ao longe, sentido algum rastro de medo, um arrepio, uma sensação ruim, sem que eu tivesse recebido algum sinal do mundo externo, o perigo apareceu de repente nas minhas costas. Ele era baixo, forte, encostou uma pistola na minha cabeça e ordenou, me segue, a voz se fundindo à da Daniela Mercury, a mão me apertando o braço, interrompendo a corrida e me arrastando para a floresta, aquela mata linda, exuberante, cantada nos mais belos poemas, exaltada nos guias turísticos e na escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas 2016, aquela mata que todo mundo diz que é o que faz a diferença, afinal muitas capitais têm praia, mas uma mata assim, tropical, verdejante, imensa, só no Rio, aquela mata frondosa, casa de tucanos, cobras e macacos, aquela mata que exala um cheiro doce e enjoativo de jaca, aquela mata que todo mundo admira quando está subindo a Vista Chinesa e na qual quase nunca reparo, porque quando estou correndo eu me desligo do mundo, aquela mata virou o meu inferno.
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