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MAR ABERTO | Velho demais para olhar para trás

por Boca Migotto

Este texto começou na Estrada do Mar, quando precisei encostar o carro no acostamento para fazer um retorno. Olhei pelo retrovisor, mas por causa da noite, da chuva e, principalmente, da minha notória desconfiança, senti a necessidade de girar o pescoço para ter certeza de que nenhum farol acelerado romperia, inadvertidamente, a escuridão que refletia no espelho. Foi quando percebi que o meu “semi-sedentarismo” não me permitia tal acrobacia. Algo travou antes de chegar ao fim do movimento. Então, brinquei com a Pati, minha companheira, que eu “estou velho demais para olhar para trás”.

A frase, que saiu despretensiosamente da minha boca, no entanto, pareceu esconder uma sutil – e irônica – complexidade filosófica. Foi o suficiente para seguirmos a viagem brincando sobre as inúmeras leituras que se poderia fazer a partir desta condição: não olhar para trás, por se estar velho demais, justamente quando mais fazemos isso. Afinal, na medida que a idade avança o futuro se torna cada vez menor e o que nos resta são as memórias de um passado com o qual podemos justificar a vida e disfarçar a morte iminente.

Curioso com a leitura que outras pessoas fariam sobre a mesma frase, a postei no meu Facebook. Sem nenhuma contextualização prévia, justamente para constatar quais seriam as impressões aleatórias das pessoas. Não esperava nenhuma discussão profunda acerca do tema. A internet não é para isso. O próprio conceito de “navegar” sugere que permaneçamos na superfície. Aprofundarmo-nos significaria naufragar. Mesmo assim, às vezes, insisto. E, algumas vezes, devo admitir, até rola um bate-e-volta que transcende relativamente a superficialidade das frases de impacto. Lacrações, diriam os mais descolados.

Nesse caso, o amigo – infelizmente mais virtual que presencial – Saturnino Rocha, trouxe algumas considerações interessantes. “Os velhos são os que enxergam algo quando olham para trás”, disse ele. Algo que encontra eco no meu pensamento uma vez que, desde que me conheço por gente, convivi com velhos. Meu núcleo familiar era composto apenas – e já é muito – pelos meus pais – quando nasci minha mãe tinha 40 e meu pai 53 anos – minha tia Elsa, ainda mais velha que a minha mãe, e a tia Linda, irmã do meu pai, e única sobrevivente, hoje com 84 anos. Portanto, os almoços de domingo, quando regados a uma taça de vinho – sim, mesmo regrado, este era essencial para que as lembranças ganhassem vida – me carregavam para longe, para um tempo que apenas eu, entre todos meus amigos, tinha o privilégio de alcançar. Trata-se das tais compensações da vida. Por conta da idade, meus pais não gostavam de viajar e, por isso, mal saí de Carlos Barbosa – exceto para realizar exames de saúde – quando criança. Por outro lado, minhas viagens eram através do tempo. Portanto, pode-se dizer que lá em casa havia muito o que enxergar quando meus pais e tias olhavam para trás.

Por isso, mesmo concordando com o Saturnino, resolvi provocá-lo dizendo que, talvez, justamente por isso, seja melhor não olhar tanto para trás quando estamos velhos. Um mal jeito qualquer pode demandar uma visita ao Pronto Socorro.

Brincadeiras à parte, para se enxergar algo no passado é preciso, necessariamente, ter um passado. Nesse sentido, é notório, quanto mais velha for a pessoa, mais coisas esta terá para relembrar. E compartilhar. No caso, claro, de não sofrer alguma isquemia cerebral, derrame, AVC ou Alzheimer e, obviamente, contar com um interlocutor disposto a ouvi-la. Algo raro nesses tempos de correria digital. Seja como for, esse movimento apenas faz sentido se, e somente se, o ato de olhar, ainda segundo Saturnino, “tiver como objetivo ressignificar o presente e, assim, estabelecer as bases para avançar rumo ao futuro”. Caso contrário, seria “tempo e energia perdidos”.

Concordo novamente com o Saturnino, olhar para o passado demanda reflexão. Embora me pareça difícil virar o pescoço para trás sem que isso produza, por mínimas que sejam, novas percepções, muitas vezes, – e até por isso – deste movimento fugimos como o diabo da cruz. Isso vale para as nossas memórias mais íntimas e pessoais, mas também para a história geral de toda a humanidade. Olhar para trás é movimentar-se. Ao nos movimentarmos damos um passo para frente e, um passo a frente, já dizia o poeta Chico, “você não está mais no mesmo lugar”. Movimentar-se demanda energia e, quase sempre, o movimento pode nos guiar à terras desconhecidas. E, sabemos, tudo que é desconhecido tem potencial para nos amedrontar. Melhor mesmo permanecer na ignorância, como aquele seu vizinho negacionista. Basta negar, e tudo está bem, nada muda, nenhum movimento é necessário, seguimos pisando em solo firme.

“Não há pandemia, não há aquecimento global, não vivemos uma crise ambiental”. “Olha quanta árvores tem por ai”. “Á água vai acabar? Duvido, meu açude está cheio”. “Crise econômica, que crise econômica?” “Pessoas morrendo de fome nas ruas da cidade? Não na minha”. “O que, sou machista? Eu? Bem capaz. Cresci em meio às minhas cinco irmãs”. “Racista? Também não, tenho dois amigos negros pra te provar”. “Homofóbico? Mas vai tomá no cú!” “Terapia? Pra que? Bobagem pra psicanalista ganhar dinheiro”. “E tem mais, essa tal de História é feita de pessoas mortas”. “Eu quero é vida”. “Esquece essas bobagens e acende logo o fogo!” “A cerveja gelou?” “O jogo vai começar, liga a TV”. “Aliás, tu conhece aquela piada do gaúcho viado?”

Falando em gaúcho, no vai-e-vem das minas memórias lembrei da campanha de Ivo Sartori quando concorreu ao seu primeiro mandato com o então Governador, Tarso Genro. Me chamou muito a atenção, na época, que a sua campanha dizia para “não olhar para o retrovisor”, algo assim. Lembro de ter dito a um pemedebista que não olhar para o retrovisor seria burrice, uma vez que poderia gerar acidentes. E que seria uma obviedade um candidato do PMDB, partido responsável por governos catastróficos no Rio Grande do Sul, como Antônio Britto e Germano Rigotto, pedir para não olharmos para trás. Afinal, todos esses governos foram trágicos acidentes de percurso na história política do Estado. Dizer isso me rendeu uma “amizade desfeita” mas o mais triste, mesmo, foi constatar que o eleitor gaúcho novamente obedeceu aos apelos do conservadorismo mais tacanho que, há séculos, dá as cartas na Província de São Pedro, e Sartori foi eleito.

Após quatro anos de inequívoca contribuição para o legado desastroso dos governos do PMDB gaúcho, desesperado, o “gringo que faz” tentou a reeleição associando seu próprio nome ao do Bolsonaro. Nenhuma biografia resiste a isso. Um professor de filosofia – imaginem o nível das discussões filosóficas em sala de aula – chamado “Sartonaro”. Ele perdeu. Mesmo assim, quase metade do Rio Grande do Sul votou no cara – e mais do que a metade no Bolsonaro – que pediu para esquecermos o passado. Mas, afinal, de qual passado deveríamos esquecer?

Mesmo para o mais enferrujado dos pescoços, mesmo para o mais embaçado dos retrovisores, mesmo para o mais negacionista dos vizinhos, o passado é como uma assombração que sempre nos alcança em algum cruzamento futuro.

“Anistia geral e irrestrita. Não se fala mais nos crimes da Ditadura Militar”. Resultado: trinta anos depois, os corredores da nossa política estão tomados por pijamas mofados e pesados, com seus bolsos abarrotados de dinheiro público.

“Acabou a escravidão. Bola pra frente, sem ressentimentos, toquem suas vidas”. Resultado: um dos países mais desiguais do planeta, possivelmente o mais racista, onde pobres vivem nas encostas de morros – e Petrópolis nos jogou na cara, mais uma vez, o que isso significa – enquanto a classe-média se esconde em condomínios cercados até os dentes, acreditando em sua frágil liberdade financeira.

“Corta a verba da Educação e da Cultura, isso não dá voto”. Resultado: em 133 anos de República tivemos pouco mais de uma década de um governo que atendeu, minimamente, as questões sociais do país. Mesmo assim, fomos para as ruas pedir o Impeachment da provável única Presidente honesta que esse país já elegeu e colocamos, no seu lugar, um governo neofascista.

Em seu livro, “De pernas pro ar”, em espanhol, “Patas arriba: la escuela del mundo al revés”, o escritor uruguaio, Eduardo Galeano, escreveu: “A história se repete? Ou é repetida apenas como penitência para aqueles que são incapazes de escutá-la? Não há história muda. Por mais que a queimem, por mais que a rompam, por mais que mintam, a história humana se recusa a calar-se. O tempo que passou continua latindo, vivo, dentro do tempo que é, embora o tempo que é não o queira ou não o saiba. O direito de recordar não está entre os direitos humanos consagrados pelas Nações Unidas, mas hoje é mais do que nunca necessário reivindicá-lo e colocá-lo em prática: não para repetir o passado, mas para impedir que se repita; não para que os vivos sejam ventríloquos dos mortos, mas para que possamos falar com vozes não condenadas ao eco perpétuo da estupidez e da desgraça. Quando verdadeiramente viva, a memória não contempla a história, mas nos convida a fazê-lo. Mais do que nos museus, onde o pobre se entendia, a memória está no ar que respiramos; e ela, do ar, nos respira.”*

Um pequeno fragmento deste texto foi atualizado em “Madres paralelas”, do espanhol Pedro Almodóvar – imperdível e está no Netflix – para ressaltar uma das situações limites do seu filme, e da História da Espanha, – por simpatia ao leitor evito “spoiler” – e nos lembrar que nada está mais presente que o passado. Por isso, por mais que um dia queiramos todos esquecer, será impossível esconder dos nossos filhos e netos a vergonha de termos eleito Jair Messias Bolsonaro Presidente da República. Um dia, será inevitável quebrar o pescoço para acertar as contas com este e tantos outros equívocos determinantes da nossa História. E, quanto mais adiamos esse encontro, mais demoramos para alcançar o tal futuro.

Por isso que Saturnino Rocha complementa seu comentário dizendo que de nada adianta olhar para o passado se não for para ressignificar o presente e estabelecer as bases para avançar rumo ao futuro. No auge da sua vivência, ele sabe o que isso significa. Não fazê-lo é a certeza de que, na primeira chuva mais forte que o normal, toda a precariedade da nossa improvisação desabará e soterrará nossa esperança. Uma sociedade construída sobre a mentira é tão frágil quanto uma palafita frente um tsunami. Impossível permanecer de pé.

Dói olhar para trás, é verdade, E, agora, nem falo do meu pescoço enferrujado mas sim da necessidade de encará-lo com seriedade. Estudar, pesquisar, refletir, tudo isso dói também. Demanda tempo, empenho, concentração e compromisso.

Mas, infelizmente, não se resolve o passado com frases lacradoras ou políticas populistas. E também não se constrói um futuro justo para todos sem esforço. Fugir do passado é dar as costas para o futuro. E, às vezes, basta girar minimamente o pescoço para perceber o perigo à espreita. E ele sempre está lá, à espreita. Afinal, “a História sempre se repete, como tragédia ou como farsa”. A célebre frase de Karl Marx não poderia ser mais perfeita para definir o Brasil. A dificuldade está em definir de qual forma a nossa história contemporânea está a se repetir.

Bolsonaro nunca se comprometeu com a honestidade, embora se colocasse como aquele que acabaria com a corrupção. Mesmo com o pescoço atrofiado era possível ter percebido isso. Mas, uma mirada um pouco mais prolongada ao retrovisor já seria suficiente para nos lembrarmos que dois outros políticos – para ficarmos apenas na nossa História recente – também vieram com o mesmo papo furado. Jânio Quadros, e sua vassoura da moralidade, permaneceu apenas seis meses no poder e abriu as portas para o Golpe Militar de 1964. Já o desconhecido Fernando Collor de Melo, e seu slogan de “Caçador de Marajás”, jogou areia nos olhos recém abertos da democracia brasileira e renunciou à Presidência para evitar a própria cassação.

Mesmo assim – e apesar disso – os anos passaram e ambos foram novamente eleitos. Jânio virou Prefeito de São Paulo e Collor foi eleito Senador da República. Definitivamente, nada aprendemos. Seja como for, fica a dica. As eleições estão próximas e as pesquisas indicam que Bolsonaro não se reelegerá. No entanto, a História do Brasil nos mostra que, por aqui, não há garantias para a democracia. Fiquemos atentos. Nunca é tarde demais para olharmos para trás.

* “¿La historia se repite? ¿O se repite sólo como penitencia de quienes son incapaces de escucharla? No hay historia muda. Por mucho que la quemen, por mucho que la rompan, por mucho que la mientan, la historia humana se niega a callarse la boca. El tiempo que fue sigue latiendo, vivo, dentro del tiempo que es, aunque el tiempo que es no lo quiera o no lo sepa. El derecho de recordar no figura entre los derechos humanos consagrados por las Naciones Unidas, pero hoy es más que nunca necesario reivindicarlo y ponerlo en práctica: no para repetir el pasado, sino para evitar que se repita; no para que los vivos seamos ventrílocuos de los muertos, sino para que seamos capaces de hablar con voces no condenadas al eco perpetuo de la estupidez y la desgracia. Cuando está de veras viva, la memoria no contempla la historia, sino que invita a hacerla. Más que en los museos, donde la pobre se aburre, la memoria está en el aire que respiramos; y ella, desde el aire, nos respira. (Tradução livre do autor)

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design. Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Finalizou seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção “Na antessala do fim do mundo”. Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens “Filme sobre um Bom Fim”, “Pra ficar na história”, “O sal e o açúcar” e “Já vimos esse filme”. No momento trabalha no seu próximo livro “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”, que pretende publicar junto ao seu quinto longa-metragem sobre o mesmo tema. Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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