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MAR ABERTO | URUBICI por BOCA MIGOTTO

Minha primeira coluna é uma aventura

 

            Meu enteado, Arthur, tem sete anos e, como todo menino nessa idade, adora “aventuras”. Eu também curto aventuras.

Para mim, no entanto, uma aventura não necessariamente demanda descobrir um cálice sagrado e resgatar uma donzela em apuros após sobreviver a uma longa jornada heroica com todo tipo de perigos e provações. Uma viagem para algum lugar diferente, mesmo que por perto, conhecer pessoas novas e seus hábitos já é uma grande aventura. No entanto, observar o quanto o Arthur se diverte com suas peripécias fantásticas, imaginando os mais improváveis roteiros a partir de uma simples caminhada, me fez perceber o quanto, provavelmente, tudo isso também tem potencial para nos definirmos como cidadãos. Por isso, desde que o Arthur entrou na minha vida, retomei um hábito da época quando, adolescente, ainda morava em Carlos Barbosa: caminhar no mato.

O olhar curioso e o sorriso vibrante do Arthur, ao perceber-se em uma trilha na “floresta”, me fez refletir sobre o quanto nos desconectarmos da natureza afeta, negativamente, nossa essência humana. Não é por acaso que em muitos países, onde realizar caminhadas é um traço cultural e um hábito que passa de pai para filho, existe até palavras específicas para designar tal prática. No francês, randonnée e no inglês, trek ou trekking, essas caminhadas são mais do que uma brincadeira – para as crianças – ou um esporte – para os adultos. São momentos únicos que permitem nos aproximarmos de nós mesmos, seja através do contato com a natureza, seja através do diálogo com as nossas crianças. No meio do mato não há sinal de wi-fi que atrapalhe a magia que flui entre a imaginação e a realidade. Talvez por isso os índios – Bugres, como os imigrantes europeus genericamente os denominavam – nunca se preocuparam em “girar a roda” mais rápido do que o estritamente necessário. Aliás, não se preocuparam nem em descobri-la. Não porque não tinham capacidade mas, simplesmente, porque não havia um motivo que justificasse tal descoberta. Mesmo os grandes impérios americanos como os Maias, por exemplo, até conheciam a roda, mas não a usavam. Assim como não se preocupavam com a metalurgia, o que prova que o progresso tecnológico não é algo universal e inexorável. Isso tudo também é História. Nossa História. E que outra forma mais empolgante de conta-la a uma criança do que em meio a uma aventura?

Por isso, no final de julho, naquela semana marcada pela meteorologia como a mais fria dos últimos não sei quantos anos, quando, finalmente, a Serra Gaúcha entregou a tão aguardada nevasca que sempre promete aos turistas, fomos para Urubici, em Santa Catarina. Não para vermos neve, mas para nos aventurarmos em uma região nova, empolgante pela sua natureza, ainda menos turística e cheia de histórias. Para o Arthur, aqueles cânions simbolizaram a maior de todas as aventuras possíveis e, para nós, pegar uma carona na sua imaginação era uma forma de nos desligarmos um pouco de tudo isso que estamos vivendo no Brasil. E não é que nos desligamos tanto que, um dia, ao chegarmos na nossa cabana e os nossos celulares reencontrarem o wi-fi, uma avalanche de notificações nos surpreendeu com o incêndio que atingiu a Cinemateca Nacional? Pensando bem, nenhuma surpresa. Afinal, já faz tempo que a classe cinematográfica alerta sobre os perigos de se perder boa parte do acervo audiovisual brasileiro da mesma forma que vimos o Museu Nacional ser consumido pelo fogo em setembro de 2018. O descaso do Brasil com a sua cultura e, portanto, com o seu próprio futuro, é surreal. E isso evidenciou-se ainda mais agora, com mais essa tragédia que, de tantas vezes anunciada, deixou de ser apenas um acidente para se apresentar como um projeto de governo. É bem verdade que a cultura nunca foi prioridade de nenhum governo anterior mas, nesse caso, Bolsonaro, e seus asseclas, faz questão de explicitar seu desprezo pela cultura. Tanto fez – ou melhor, não fez – que conseguiu.

O incêndio na Cinemateca consumiu mais do que rolos de filme. Consumiu parte da nossa memória e, com isso, mais uma vez, o direito de as próximas gerações acessarem e conhecerem a sua própria História.

O sol já havia se posto há horas e o frio tornava-se insuportável. Era preciso acender o fogo para nos aquecermos. Buscar lenha no porão da cabana, empilhar gravetos e serragem para que o fogo vingasse. Tudo isso é difícil para uma criança mas, ao mesmo tempo, faz parte da “aventura” do aprendizado. Uma lenha um pouco mais úmida, um graveto a menos, e o fogo se recusa a acender. Mais um obstáculo para uma longa jornada de caminhadas e descobertas. Portanto, ensinava,  metodologicamente, o processo ao Arthur. Primeiro para que ele aprendesse e, finalmente, para logo ver o fogo vivo e, assim, esquentando a cabana. Fazia isso enquanto pensava na facilidade com que, no Brasil, ao contrário daquela lareira, nossos museus, cinematecas, fauna e flora ardem criminosamente e ninguém é responsabilizado. Lembrei dos Bugres que haviam deixado suas inscrições nas pedras da região – as mesmas que hoje são exploradas turisticamente pelos atuais proprietários dessas terras – friccionando gravetos ou pedras para, também eles, se aquecerem e cozinharem suas comidas. Ao contrário da roda, a tecnologia do fogo era essencial à sua sobrevivência e, inclusive, fazia parte da cosmologia indígena. No Cerrado, por exemplo, diversas tribos o utilizavam para abrir clareiras para uma futura plantação. Entretanto, ao contrário das queimadas indiscriminadas que vemos hoje, entre os índios, esse processo era definido pelo ancião da aldeia. Ou seja, era a experiência e sabedoria dos mais vividos que determinava quando e como o fogo deveria ocorrer. Então, controlando o fogo e utilizando-o para nos aquecer, como faziam os índios, acendemos a lareira. Era o ponto final da nossa aventura.

No dia seguinte a cabana ainda cheirava à fumaça quando carreguei o carro. Era hora de voltar. Chamei o proprietário para lhe entregar as chaves e dele ouvi pedidos de desculpas por conta dos canos estourados pela água congelada. O frio excessivo provoca contratempos, mas é graças a ele que, cada vez mais, pessoas procuram Urubici como destino turístico no inverno. Esse comentário veio acompanhado de uma constatação. Segundo o que me disse o proprietário das cabanas, a cidade mira o case de sucesso de Gramado e Bento Gonçalves como target. Estava a ponto de comentar que nem sempre um turismo de massa é interessante ao turista e que, apesar do “desenvolvimento” econômico, esse tipo de turismo também cobra o seu preço quando fui surpreendido pelo seu comentário “lacrador”: “[…] e sabe por que Urubici, em poucos anos, deslanchou enquanto São Joaquim não evoluiu? Porque aqui, assim como lá na Serra Gaúcha, a cidade foi colonizada por europeus. Diferente de São Joaquin, que foi fundada por Bugres”.

            Liguei o carro e dirigi para casa me perguntando quantos incêndios ainda serão necessários para queimarmos de vez o futuro dos nossos pequenos brasileiros.

No banco de trás, Arthur dobrava e desdobrava o mapa turístico da região o qual, nas suas mãos – e na sua imaginação – mais se assemelhava aos mapas de caça ao tesouro que tanto vemos no cinema.

Falando em cinema, a partir do próximo texto pretendo, também, indicar algum filme aos leitores dessa nova coluna. Espero revê-los em quinze dias.

BOCA MIGOTTO
I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design.
Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Como professor de Documentário ajudou seus alunos a ganharem prêmios importantes como Kikito de Melhor Curta-metragem, no Festival de Gramado, e Melhor Curta-metragem pelo Voto Popular, no Festival de Tiradentes.
Hoje não é mais professor, mas acabou de finalizar seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção; Na antessala do fim do mundo.Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens; Filme sobre um Bom Fim, Pra ficar na história, O sal e o açúcar e Já vimos esse filme. No momento prepara uma adaptação “menos acadêmica” da sua tese de Doutorado; Um tal cinema gaúcho de Porto Alegre ou como essa cidade mata seus artistas, livro que pretende publicar paralelamente ao seu quinto longa-metragem, o documentário homônimo, que realizou junto à pesquisa de Doutorado.
Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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