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MAR ABERTO | SOBRE CERTAS COISAS

por Boca Migotto 

Percebi que dar a luz a uma coluna quinzenal é um desafio. É tanto assunto que me vejo quase na iminência de sobre nada escrever. Eu sou meio assim, ou tudo ou nada.

Me imagino, por exemplo, com tempo e dinheiro para viajar, uma das coisas que mais gosto de fazer na vida. Seria uma angustia danada ter que escolher entre, segundo a ONU, mais de 190 países no mundo. Ou todos, ou nenhum. Por isso, penso que alguma restrição é, também, liberdade. No caso de ter que contar as economias e fazê-las render o máximo possível em um período de férias de apenas quinze dias, vários países, por conta do tamanho, da distância ou de quanto custa visita-los, facilmente seriam cortados da “lista de desejos” e, assim, um primeiro passo poderia ser dado com mais facilidade. Percebi que uma coluna quinzenal é um pouco assim. São tantos temas a escrever como países, povos e culturas a conhecer.

Após muito ler, escutar e ver, ao longos das últimas semanas, sobre os efeitos do aquecimento global, finalmente decidi tratar este que é, certamente, o mais urgente dos temas. Inclusive para quem planeja conhecer alguma estação de esqui, certas ilhas paradisíacas do Pacífico ou, até, o Pantanal mato-grossense. Para estes, inclusive, aconselho decisões rápidas e assertivas. Afinal, não há mais muito tempo a esperar.  Recentemente li, na Folha de São Paulo, que a falta de neve registrada na Cordilheira dos Andes, nos últimos anos, está inviabilizando a prática de esportes de inverno em locais até então tradicionais. O mesmo eu já havia escutado sobre os Alpes onde, inclusive, os proprietários de estações de esqui estão precisando se “reinventar” para adaptarem seus negócios aos “novos tempos”. O turismo se adaptou até à pandemia, mas e a vida?

Na Argentina e no Chile, para ficarmos com um exemplo próximo, regiões inteiras apenas são habitáveis – e cultiváveis – por causa do degelo das Cordilheiras. Se não há neve no inverno, não há degelo na primavera e, consequentemente, não haverá água para plantações, animais e para as pessoas. Esqueça aquele “duranzo” importado do Chile e prepare-se para receber hordas de imigrantes os quais, uma vez mergulhados em uma crise hídrica – perdoem-me o pleonasmo – serão obrigados a deixarem suas terras. Esse privilégio, no entanto, não será apenas de argentinos e chilenos. Aqui no Brasil, país que conta com algumas das maiores reservas hídricas do planeta, conforme um estudo recente realizado pelo MapBiomas a partir de imagens de satélites registradas desde 1991, constatou-se que, em apenas 30 anos, perdemos 15,7% da superfície de água existente no país e, pasmem, apenas no Pantanal essa redução foi de 74%.

Se isso não bastasse, algumas semanas atrás a ONU divulgou um estudo sobre os efeitos alarmantes que as mudanças climáticas terão sobre a Terra a partir de agora. Segundo o IPCC, sigla em inglês para Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, é inequívoco e indiscutível que nós, seres humanos, somos os principais responsáveis pelo aquecimento global. As estratégias dos negacionistas em negar – perdoem-me novamente – as transformações climáticas, parece, não estão sensibilizando o planeta. Apesar da recente nevasca e temperaturas negativas na Serra Gaúcha, bastou alguns dias para “aproveitarmos” um domingo com quase 35 graus em pleno inverno. Nada comparado, no entanto, com os 48,8 graus registrados na Sicília. Um recorde para o continente europeu, acompanhado de incêndios devastadores em inúmeros países como a Grécia, Turquia, Argélia e a própria Itália. Já nos Estados Unidos, os incêndios na Costa Leste devastaram cidades inteiras enquanto o calor derretia também os canadenses. Mas nem só de fogo vive o aquecimento global. Alemanha, China e Bélgica sabem bem disso. Ao mesmo tempo que parte da Europa queimava, esses três países tiveram cidades arrasadas por chuvas torrenciais jamais ocorridas anteriormente.

No Brasil, já tivemos uma amostra do quão os incêndios descontrolados são trágicos e impiedosos. Não faz tempo acompanhamos, por dias seguidos, animais, plantas e casas sucumbirem ao fogo no Pantanal. Enquanto escrevo esse texto, novamente, bombeiros, brigadeiros e voluntários tentam controlar novos incêndios naquela região enquanto, na Amazônia, como bem sabemos, todo dia é dia para se provocar novas queimadas em nome da criação de gado. Depois, os próprios criadores reclamam da falta d’água para seus animais. Como entender essa gente? E como entender um Ministério do Meio Ambiente que trabalha contra a natureza? No Brasil de Bolsonaro tudo isso ganha contornos ainda mais surreais. Embora nosso Presidente seja o retrato da decadência humana, não é ele o único responsável por estarmos quase tocando o ponto de não-retorno dessa “pandemia ambiental”. Cada um de nós carrega um pouco dessa culpa nas costas quando escova os dentes sem fechar a torneira, joga o lixo nas ruas e calçadas das cidades, usa o carro para ir até a padaria que fica na esquina ou, claro, desenvolve foguetes para um possível – e rentável (?) – turismo espacial.

Parece piada, mas o mundo parar para ver um bilionário dar uma banda no espaço, em um foguete em forma de pênis, em um momento quando a humanidade atravessa sua, possível, pior crise na História, possivelmente é o que melhor define a experiência do homem sobre a Terra. Não tem como ser diferente, as piadas sobre o formato fálico da nave de Jeff Bezos, fundador da Amazon – outra ironia, o nome da empresa é uma homenagem ao Rio Amazonas – fala tudo sobre como chegamos até aqui. Viva a Semiótica.

Recentemente li o best-seller “Sapiens – uma breve história da humanidade”. Seu autor, Yuval Noah Harari, descreve bem como o ser humano é uma espécie de vírus que, na medida que foi avançando sobre a Terra, contribuiu para com a extinção de incontáveis espécies de animais. Na Austrália, por exemplo, bastaram alguns poucos milhares de anos para que animais como cangurus e coalas gigantes, pássaros do tamanho de avestruzes, lagartos com aparência de dragões, cobras com mais de cinco metros de comprimento e o gigantesco diprotodonte, que pesava em torno de 2,5 toneladas, simplesmente desaparecessem a partir do momento quando o homem finalmente venceu o mar e pisou seus pés nas praias australianas. O mesmo ocorreu aqui nas Américas quando, há aproximadamente 16 mil anos, o homem aproveitou uma ponte de terra surgida por conta do nível baixo do oceano e atravessou do nordeste da Sibéria para o noroeste do Alasca. Desde então, conforme foi avançando em solo americano, o homem foi exterminando mamutes e mastodontes, roedores do tamanho de ursos, felinos como o mítico tigre-dente-de-sabre e preguiças tão grandes que chegavam a medir seis metros de altura e pesar até oito toneladas. Além de todo tipo de aves, répteis, peixes e roedores que simplesmente desapareceram como se nunca tivessem existido. Fiquei estupefato, esses animais viveram milhões de anos em total equilíbrio até o momento quando, de repente, chegou o homem. A partir desse momento todos estes gigantes viraram lendas e não foi preciso metralhadoras, canhões, bombas atômicas ou foguetes para que isso ocorresse.

Portanto, esses três bilionários – além de Bezos, Elon Musk e Richard Branson – utilizarem suas fortunas para passear no espaço como quem vai, de iate, até Ilha Bela, enquanto o planeta Terra e toda sua população sucumbe a uma pandemia e à destruição sem precedentes do meio ambiente, em nada me surpreende. Menos ainda, me surpreende ver o resto da humanidade aplaudir – e se emocionar com – tal desnecessária exibição fálica. Esses três “piazotes”, juntos, me lembram quando éramos crianças crescidas e competíamos para ver quem mijava mais longe. Algo que me surpreenderia, no entanto, seria ver esses bilionários utilizarem suas fortunas – estas construídas, também, a partir da exploração de milhares de outros seres humanos – para, verdadeiramente, eliminar a fome no mundo, limpar os oceanos, proteger animais em extinção, levar saúde e educação aos povos mais oprimidos do planeta, enfim, trabalharem por um melhor equilíbrio social. Projetos não faltariam e certamente seríamos outra humanidade se as disputas para ver quem tem o pau maior tivessem essas ações como objetivo. Mas não, seguimos reféns do “pau duro”, seja ele a lança que subjugava as tribos vizinhas – e com o passar do tempo foi se transformando em armas de fogo, carros esportivos, motos, iates, bombas químicas e foguetes turísticos – ou o órgão reprodutor masculino que, ironicamente, se tornou refém de si próprio.

Por isso tudo – e apesar de todas as coisas lindas e belas que também somos capazes de produzir – penso que talvez o homem nunca devesse ter deixado o útero materno. Afinal, desde esse divino momento de luz – na verdade, um verdadeiro trauma – quando somos expulsos dos corpos quente e protetores de nossas mães, até a hora da nossa morte, nossa existência é marcada, sobretudo, pela nossa total incapacidade de apenas vivermos. Inversamente proporcional, não deixa de ser um pouco aquela passagem do Velho Testamento, quando Adão e Eva são expulsos do paraíso após comerem do fruto proibido. Quem mandou curtir a vida, né? Desde então, “no more paradise for all of us”. Haja terapia para minimizarmos tanta culpa Cristã. Afinal, por que viajar o mundo, conhecer pessoas e curtir as diferenças culturais harmoniosamente quando podemos gastar bilhões num bate e volta ao espaço enquanto o planeta, lá embaixo, arde nas chamas do inferno? Não me surpreende que choramos ao nascer.

 

BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design.
Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Como professor de Documentário ajudou seus alunos a ganharem prêmios importantes como Kikito de Melhor Curta-metragem, no Festival de Gramado, e Melhor Curta-metragem pelo Voto Popular, no Festival de Tiradentes.
Hoje não é mais professor, mas acabou de finalizar seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção; Na antessala do fim do mundo.Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens; Filme sobre um Bom Fim, Pra ficar na história, O sal e o açúcar e Já vimos esse filme. No momento prepara uma adaptação “menos acadêmica” da sua tese de Doutorado; Um tal cinema gaúcho de Porto Alegre ou como essa cidade mata seus artistas, livro que pretende publicar paralelamente ao seu quinto longa-metragem, o documentário homônimo, que realizou junto à pesquisa de Doutorado.
Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.

 

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