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“GREGÓRIA: A VIDA NUMA CAIXA DE SAPATOS” POR ROGER BAIGORRA MACHADO

Há algum tempo eu iniciei um projeto pessoal. Estou organizando as fotografias da minha família num único lugar, em cada acervo que tenho acesso, seleciono, tento localizar temporalmente e vou escaneando, a ideia é guardar o passado familiar num álbum digital, online, onde todos meus familiares possam acessar, imprimir e colocar mais fotografias.

Essa fotografia é antiga, vê-se facilmente, ela é dessas coisas que no tempo desfalecem, mas que não se entregam. Não sei quem a fez e nem sei quando foi feita, ela ainda estar aqui, por hora, é o que importa. Parece uma foto de carteira de identidade, um recorte de uma vida em 3×4,acontece que ela é mais que uma tentativa de identidade. 

Eu encontrei essa fotografia numa caixa de fotos, destas tantas que sobrevivem por aí, em caixas de sapatos, caixas de madeira no interior dos guarda roupas. Achei ela nas fotos da minha tia Chica. A tia Chica tem muitas fotografias, nos álbuns dela estão recortes da história da minha família, pedaços que vão se colando conforme ela vai contando sobre cada personagem.

Essa senhora na fotografia se chama Gregória Fagundes Marques, ela nasceu na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul. A Gregória é a cara do nosso povo fronteiriço, tinha rosto e espírito mestiço, sangue indígena misturado com sangue espanhol. Ela era uma “pelo duro”, como assim diziam os “brancos” da fronteira. Ela era uma bugre: uma brasileira quase em desterro no próprio país. 

A Gregória viveu na região do Plano Alto, um distrito aqui de Uruguaiana. No tempo em que o Plano Alto era um pedaço do Alegrete, num tempo em que a vida era outra coisa, coisa feita noutro ritmo, ritmo vivido como se a vida fosse apenas o tempo.

A Gregória nasceu em 1878. Ela foi uma criança que cresceu nas nossas coxilhas, pés descalços nas rosetas, olhos sem energia elétrica, ouvidos sem telefone, pele sem chuveiro quente, com os sentidos todos postos ao serviço de um mundo sem escola. Ela foi criança num tempo em que pobre não estudava. No interior de Uruguaiana ela não viu a Revolução Russa, nem a 1° Guerra, nem a Segunda, mas ela via outras coisas tão importantes quanto. Quando adolescente, no isolamento do campo, ela pensava no futuro, e tinha sonhos, queria ser costureira, queria ser parteira, mas não foi, apaixonou-se por um alambrador, casaram-se e virou mãe.

Gregória foi vivendo no ritmo do tempo. A vida é assim, simplesmente vai indo. E para a Gregória, viver era carregar o mundo como se fosse coisa leve; Era alimentar os bichos ao redor das casas; Tirar leite no tacho e carregar comida até os filhos; Era lavar roupas na sanga, levando a vida com a bacia na cabeça; Limpar a casa de chão batido com a vassoura de guanxuma; E sempre, sempre cuidar das crianças. E a vida foi indo em seis filhos. Ser mãe para Gregória, como para tantas mulheres, virou a profissão e o destino de uma vida. 

Uma das filhas de Gregória, a mais bonita, também era a mais brava, furiosa feito camotim. Ela se chamava Tiotima Marques. E a Tiotima, lá pelo início do século XX, conheceu um uruguaio, sorriso bonito, um domador, apaixonou-se. E a vida foi indo, Tiotima engravidou, uma menina. Maria, nasceu em fevereiro de 1923. Tudo parecia ir bem, mas Tiotima não cabia na vida que se impunha a força. O campo aberto de um Plano Alto pode ser tão opressor quanto uma cela de cadeia. 

Quando a Maria fez sete anos, Tiotima escolheu ir embora, suicidou-se. Tomou um veneno qualquer, mas veneno nunca é qualquer coisa. Quando uma mãe desiste, a culpa não é dela, a vida ao redor tem que se explicar também. E assim Maria, órfã de mãe, ficou com o pai. E nem sempre pai é como uma mãe. Uns dias depois da morte de Tiotima, a Maria foi abandonada, largada na casa da avó. E assim voltamos para a fotografia: a Gregória.

Maria cresceu na mesma vida da avó, agora, a Mãe Gregória. Vida do Plano Alto, vida do interior, Maria cresceu. Num dia, em Corrientes, outra localidade quase esquecida lá do Alegrete, ela conheceu um uruguaio, homem alto, sorriso farto, um domador. Seu nome era Delmar Baigorra. Maria teve medo de repetir a história da mãe, ainda assim, fechou os olhos e foi. 

Casou-se em 1943. Maria, a órfã, a filha abandonada, a filha ilegítima da avó, foi vivendo. E a vida é assim, ela vai indo. E a Maria também virou mãe, mas não qualquer mãe: Ela teve 14 filhos. Sim, seu ventre gerou 14 vidas, num mundo onde parir era um risco sempre presente a cada novo choro.

Maria alimentou, cuidou, educou, fez tudo o que podia. Carregando a vida de todos como se o mundo coubesse numa bacia sobre a cabeça, enquanto tirava leite no tacho, lavava roupas na sanga e alimentava os bichos ao redor das casas. Nenhum dos filhos morreu, nenhum se perdeu, nenhum foi abandonado. Pelo contrário, Maria cuidou de suas sete filhas e de seus sete filhos de tal maneira que se tornou o centro da sua própria família, foi a grande matriarca, até morrer no seu quarto, cercada pelos filhos, aos 93 anos.

Mas antes disso, voltando um pouco no tempo da vida, lá em 1955, a Maria teve uma filha. E Maria também olhou para o tempo e decidiu pensar na mãe, a mulher que foi embora tão cedo da sua vida. Maria batizou a filha com o nome dela: Tiotima. Depois, uns bons anos depois, eu nasci do ventre da segunda Tiotima. 

Obrigado minha trisavó Gregória, por ter sido tão mãe entre as nossas mães, obrigado minha bisavó Tiotima, mesmo embora a vida tenha sido tão difícil para ti, tu foi tão importante para tantos. E obrigado minha amada vó Maria, que falta tu ainda faz aqui. Saiba que cuidar de 14 vidas, tarefa para ti tão leve, é a coisa mais incrível que eu já presenciei. E por fim, obrigado minha mãe, Tiotima, bisneta da Gregória, neta da Tiotima, filha da Maria, tu que me cuidou tão bem. 

Em tempos onde as imagens são tão importantes, onde os celulares fazem milhares de fotos por ano, e no entanto, quase nenhuma é impressa, precisamos parar um pouco e olhar com mais calma para o que já foi fotografado antes. Abram suas caixas de sapatos, retirem as fotografias de dentro dos guarda-roupas, dos armários. Vejam cada rosto em preto e branco, imagine as cores que tinham,  fale com seus parentes, pergunte. Retirar a imagem de Gregória de dentro de um envelope, em meio outras fotos antigas perdidas numa caixa de sapatos, foi uma das coisas mais legais que fiz nesse pandêmico ano.

 

 

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.

 

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