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Imagem de Sarah Richter por Pixabay

BAÚ DO SOTÃO | Canoa emborcada

por Menalton Braff

Daqui dessa distância posso ver um grupo de crianças brincando, mas estou longe demais para perceber qual é a brincadeira. Elas pulam e o movimento de seus braços parece jogar alguma coisa para o alto. Também não consigo ouvir seus gritos e risadas; posso, contudo, muito bem supô-los.

Com os pés enterrados na areia, não saio do lugar e algumas ondas me atingem as panturrilhas que se regozijam com o frio da água.

Além das crianças e mais perto dos cômoros um pouco afastados do mar, uma canoa emborcada, uma canoa escura que deve ter sofrido sol e chuva de muitas estações. Daqui a impressão que me dá é a de uma carcaça de baleia, mas de uma baleia já muito morta que mantém a pele seca recobrindo seu arcabouço. A distância dá ao barco um aspecto de brinquedo infantil.

Com seus farrapos, uma nuvem pequena ainda vela o sol, sua principal força, por alguns instantes, e permite que uma brisa fresca e fraca passe a caminho da terra, alvorotando  meus cabelos. Preciso sair daqui. Aquelas crianças podem estar em perigo. Elas provavelmente desconhecem as ciladas que se escondem por trás da aparência inofensiva das ondas ao trazerem sua espuma para depositar na areia.

Meus pés afundam.

Seria necessário arrancar meus pés da areia e me dirigir aonde estão as crianças para afastar qualquer perigo. Há algo em um movimento estranho sem que consiga identificar. Não sei se é perigoso. Nunca tive vocação para os atos heroicos, no entanto sempre soube que, no caso de me deparar com alguma situação extrema, uma tragédia iminente, eu saberia como agir. Nunca fui dos primeiros em nada tampouco dos últimos. Não fiz parte da comissão de organização da formatura, não fui o orador da turma, mesmo assim sempre tive o respeito dos colegas, pois eles também deveriam estar convencidos de que eu, em caso de necessidade, saberia como me comportar.

O sol volta a brilhar, abandonado pelos farrapos em que a pequena nuvem se transformou, e com a nova claridade, olhando com atenção, parece-me ver entre as crianças um cão saltando, com o qual elas brincam. Suponho que seja uma bola jogada para o alto que ele pule tentando apanhá-la no ar. Mas ele é baio, possivelmente, e se dissolve no amarelo da areia. Não posso ter certeza.

A maré me deixa um tanto apreensivo: as ondas, algumas, já cobrem a parte mais bojuda da panturrilha. Mesmo assim, continuo no mesmo lugar. Naquela época, não me desagradaria ser o orador da turma. Tinha um discurso pronto, muito melhor do que o outro, o proferido. Acontece que na hora de me candidatar, fiquei indeciso, sem saber se valeria a pena, porque o texto eu vinha produzindo fazia uns quatro meses, tocando, retocando, mudando aqui uma palavra, ali invertendo a ordem de uma frase. Até me parecer perfeito. O esforço de encarar colegas, suas famílias, os amigos e uns tantos curiosos, esse esforço previsto foi que me deixou imobilizado.

Desde os tempos de colégio, acredito que desde sempre esta indecisão. No último ano do curso, o professor de geografia me chamou no fim da aula, me levou para um lugar isolado do corredor e me disse, Meu filho, você nunca se decide! A resposta teria de ser a opção por um ou outro caminho. Você ficou parado na encruzilhada. Não pode, isso não pode, a vida exige tomada de posições. E ainda fez uma brincadeira: você deveria ser exitante em lugar de hesitante. E me explicou seu neologismo.

Outra nuvem apareceu flutuando para empanar o sol. Essa mais densa e muito mais extensa. Agora o grupo de crianças quase desaparece. Mesmo assim tenho a impressão de que não estão no mesmo lugar.

Muitas vezes na vida me lembrei dos conselhos daquele professor de geografia. E isso não significa que o tenha levado a sério mais do que o necessário. Enfim, não se tratava de um psicólogo, de um assistente social, qualquer um desses profissionais que têm a obrigação de saber mais da vida do que nós, os simples mortais. Mas tentei aceitar sua sugestão, muitas vezes, fechando os olhos e me jogando de cabeça na primeira ideia que me ocorresse. Em algumas ocasiões obtive sucesso, ou seja, fui exitante, em outras, quebrei a cara. Conclusão, a verdade absoluta não existe. E isso me bota algum medo, e o medo é que me faz vacilar entre duas alternativas.

O mundo volta a cobrir-se de claridade. O grupo não parece mais compacto como era. Dois meninos devem estar jogando frescobol, pelo modo como correm; uns três ficaram muito pequenos e imagino que estejam construindo algum castelo de areia ou alguma coisa do gênero; o suposto cão que saltava para pegar uma bola no ar desapareceu.

A água me cobriu os joelhos. Não vejo outras crianças. Isso me paralisa, pois minha obrigação, como adulto, seria protegê-las, contudo não consigo mais arrancar os pés da areia onde estão enterrados.

Esta dificuldade em me decidir foi também a causa de meu celibato. Numa época não me decidi entre duas candidatas. As duas tinham virtudes e defeitos. De uma forma tão equilibrada, entretanto, que não via vantagem em escolher nenhuma das duas. E elas resolveram suas vidas casando com sujeitos que eu nem conhecia. Quando arranjei uma namorada, e era só ela que eu namorava, me consumi no medo de que fosse me trair. Era honesta ou desonesta? Como saber? Escolhi continuar solteiro.

As crianças agora brincam na canoa emborcada, pois a água ocupou toda a faixa de areia onde elas jogavam seus jogos, e as ondas maiores vêm brincar no meu peito.

 

 

Menalton Braff 

Nasceu em Taquara (RS) e radicou-se em São Paulo (Capital e interior) Formado em Letras, com pós lato sensu exerceu o magistério superior antes de mudar-se  para o interior onde se dedicou ao ensino médio. Tem 27 livros publicados, sendo nove infantojuvenis e catorze de literatura geral (contos e romances). Conquistou o Jabuti, livro do ano em 2000, com À sombra do cipreste, foi finalista da Jornada de Passo Fundo em 2003, finalista do Jabuti (contos) em 2007 e finalista do Jabuti e do Prêmio São Paulo de Literatura (romance) em 2008. Pela Editora Reformatório teve publicados Amor passageiro (coletânea de contos) e Além do rio dos Sinos (romance), livro com que conquistou o Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional.  

 

 

 

 

 

 

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