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BAÚ DO SÓTÃO | Canções no exílio

Quando recebi os originais de Depois do canto do gurinhatã, não podia imaginar o que estava para descobrir.

Quando recebi os originais de Depois do canto do gurinhatã, não podia imaginar o que estava para descobrir. Já conhecia de leve e passagem alguns poemas da Viviane de Santana Paulo, uma poeta brasileira que mora em Berlim e não perdeu os perfumes tropicais. Nesse livro pude conviver com 55 poemas sem trégua nem fissura. São 55 surpresas que não deixam o êxtase baixar para um descanso. Ninguém sai do mesmo tamanho do outro lado deste livro.
São tais e tantos os recursos poéticos que ao longo do caminho se vai encontrando que a passagem de um poema a outro torna-se a aventura das descobertas. O Surrealismo da Viviane incorpora figuras que vale a pena mencionar.
A exploração sonora das palavras (recurso eminentemente poético) como a assonância do verso

me tento cada vez que arrebento a membrana
ou aliterações como as destes outros versos
correndo sobre as cordas da correnteza
um fio de caule um fino de folha
ou ainda ecos como segue
rabiscos minúsculos no músculo do papel

Mário de Andrade, músico de formação, criou a expressão “versos harmônicos” para os versos em que “as palavras (um conceito que vem de longe e passa por Aristóteles) que são ditas sem combinação”, isto é, que não se combinam para formar orações, são substâncias que, no tempo, ocorrem simultaneamente, como um acorde na música. Um exemplo do que se afirma está no verso
Trilhas buracos vales clareiras pântanos
A paisagem, que é puro espaço, é captada num único olhar, torna-se instantânea.
Desse exemplo de verso, pode-se derivar para a pontuação da autora, que, sendo poé-tica e não gramatical, cria em cada verso uma unidade rítmica tensa, em que nada sobra ou falta. Há momentos em que a Viviane cria pausas e expectativas pelo simples espa-çamento das palavras entre si, como acontece no verso acima um fio de caule um fino de folhas.
Na poesia de Depois do canto do gurinhatã, rica em metáforas, as combinações sem-pre novas são modos de dinamizar os sentidos. Veja-se o exemplo abaixo, em que se fala de memória:

te perseguem ontens
enxame de abelhas ̶
picando a polpa da tua memória
ou mão de mel que afaga
São recorrências, na poética da Viviane, entre outras, a viva plasticidade, com apelos visuais muito fortes.
o sol repetia brilhos no ventre da manhã
multiplicava sombras crescidas e as perdidas no afã
das horas
uma sombra escorregava pela haste da árvore
somente para alcançar a pétala de uma flor branca

E nisso, pode-se dizer que Viviane de Santana Paulo, em traços às vezes fragmentá-riios de sua memória, continua a filha de um país quente: mais dado à sensorialidade. Mas nada tão universal como sua temática, o plano do conteúdo, aquilo que se descobre na maioria de seus poemas, como o tempo, a água e os mistérios da existência, que ela, com sua gazua de palavras vai a todo instante tentando arrombar para ver o que tem dentro.
O tempo, sua passagem e os rastros que vai deixando em todos os seres, que nenhum escapa à sua ação, aparece em boa parte dos poemas. Lembranças, distâncias e água. Água riacho, mar, oceano: a imensidão. Porque a poesia da Viviane, usando mais uma vez Aristóteles, é construída toda ela no estilo elevado. E a água, desde sempre vida, sensualidade.

te perseguem os riachos de lembranças
água cristalina e fria que revela o leito
pedras e terra e plantas dançando
lá este falar das coisas que aconteceram
se repetem no fluir das recordações

A poesia da Viviane é seu modo de estar no mundo, sua tentativa de desvendá-lo e entendê-lo. É o passado sul-americano das recordações e das distâncias; é o presente de seu exílio, com preocupações ontológicas em linguagem poética, da melhor poesia.

 

 

Menalton Braff 

Nasceu em Taquara (RS) e radicou-se em São Paulo (Capital e interior) Formado em Letras, com pós lato sensu exerceu o magistério superior antes de mudar-se  para o interior onde se dedicou ao ensino médio. Tem 27 livros publicados, sendo nove infantojuvenis e catorze de literatura geral (contos e romances). Conquistou o Jabuti, livro do ano em 2000, com À sombra do cipreste, foi finalista da Jornada de Passo Fundo em 2003, finalista do Jabuti (contos) em 2007 e finalista do Jabuti e do Prêmio São Paulo de Literatura (romance) em 2008. Pela Editora Reformatório teve publicados Amor passageiro (coletânea de contos) e Além do rio dos Sinos (romance), livro com que conquistou o Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional.  

 

 

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