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A VIDA E MORTE DE DIACUÍ por ROGER BAIGORRA MACHADO

Uma crônica de Roger Baigorra Machado

(…) às vezes, as histórias vivem num meio caminho, numa espécie de dívida, sempre entre aquilo que a memória deixa para trás e as coisas que a imaginação joga para a frente.

A história de Diacuí Kalapalo e Ayres Câmara Cunha é destas coisas que fazem parte da memória e do imaginário uruguaianense. A história dos dois também é parte do imaginário nacional, mas não ocupa espaço na sua memória. E como sabemos, às vezes, as histórias vivem num meio caminho, numa espécie de dívida, sempre entre aquilo que a memória deixa para trás e as coisas que a imaginação joga para a frente. Este texto está assim, plantado nesse lugar, vivendo entre a memória e a imaginação de uma cidade.

Acho que uma das primeira vezes em que ouvi o nome de Diacuí e Ayres foi pela boca de minha avó, tomando mate de leite com erva doce debaixo de um cinamomo. Minha mãe também já me falou deles. Ouvi sobre eles na escola. Aqui, ainda hoje, tem gente que acha que Diacuí morou em Uruguaiana e que viveu até a morte num casamento feliz com o Ayres Câmara Cunha: “E tem até a morada da índia Diacuí!”, afirmam os desavisados nas conversas de esquina. Diacuí revive assim, entre a memória e a imaginação de uma cidade, nas esquinas e debaixo dos cinamomos.

Diacuí tinha uns 22 anos quando conheceu Ayres, ela morava bem longe de Uruguaiana, sua casa ficava numa aldeia no Alto Xingú. A tribo de Diacuí pertencia aos Kalapalos, um dos 14 povos que compõe o Xingú. Um dos tantos povos que teve sua cultura invadida pelas expedições dos homens brancos.

Ayres Cunha era um desbravador, um gaúcho nascido no extremo do Estado, em Uruguaiana. Desde jovem, Ayres tinha paixão pelo desconhecido, assim, viajava pelo Brasil desde o fim da década de 1930, um sertanista desbravando o Oeste e o Norte do Brasil e que já tinha participado de expedições com os irmãos Villas Boas.

Esse prólogo eu nunca soube, a história que me contavam quando criança era mais simples: Um uruguaianense (homem branco) se apaixona por uma mulher (índia) e luta para casar com ela, no fim, depois de um casamento de conto de fadas, a história se bifurca, de um lado a memória conta que uma tragédia shakespeariana acabou com tudo, de outro lado, a imaginação conta que foram felizes para sempre.

Da vida de Ayres e Diacuí eu fui saber tempos depois, bem depois dos mates com erva doce lá da minha infância. Foi numa tarde quente de verão em Santa Maria, garimpando as prateleiras do “Sebo do Bin Laden” – como era carinhosamente chamado o sebo de livros que tinha na General Neto, pouco antes da Pinheiro Machado -, num tempo em que eu ainda estava no início da graduação em História pela UFSM. E foi lá que eu me vi com um livro nas mãos, escrito por ele: Ayres Câmara Cunha. Era “A história da índia Diacuí: seu casamento e sua morte”.

O livro tinha a capa em péssimas condições, mas as páginas estavam boas. Os cinco reais que paguei pelo livro não diminuíram os anos de apagamento histórico de Diacuí, mas apagou com as falsas imagens que em Uruguaiana construímos sobre ela e sobre Ayres.

O livro eu não tenho mais, emprestei para um conhecido. E livro para “conhecidos” jamais devem ser emprestados. O livro de Ayres Câmara Cunha nunca mais voltou, mas a história de Diacuí ficou para sempre.

Lembro das impressões que tive quando da leitura, lembro da necessidade de Ayres contar suas memórias como forma de construir a sua versão da história, uma história para além do imaginário.

Aos 22 anos, Diacuí (Flor do Campo na sua língua nativa) era uma mulher bonita, ela tinha os traços fortes, marca dos indígenas do Xingu, a baixa estatura alongava os cabelos pretos. E com esse combo, ela não deve ter tido dificuldades em chamar a atenção de Ayres Câmara Cunha.

A região onde estava a aldeia de Diacuí era atendida pela Fundação Brasil Central (FBC), órgão público criado em 1943 e onde Ayres trabalhava. A FBC tinha como objetivo planejar e implantar políticas de ocupação e expansão territorial. Suas atividades se mantiveram até 1979, quando foi extinta, dando lugar Superintendência do Desenvolvimento da Região Centro-Oeste, no entanto, seguindo com políticas voltadas para a desconstitucionalização dos direitos indígenas, assim como, uma desterritorialização constante das aldeias e a busca pela assimilação dos indígenas nos valores culturais e capitalistas da sociedade brasileira.

Hoje, os traços desta política devastadora para os povos indígenas, ainda podem ser vistas em órgãos do governo federal, nas porteiras abertas da expansão das atividades madeireiras, no desmatamento de áreas de reserva para criação de gado, nas atividades de extração de minérios, nas grilagens e numa concepção de que o índio não quer ser índio, mas uma espécie de homem branco às avessas.

Mas voltando ao casal, o primeiro contato de Ayres Câmara Cunha com os índios Kalapalos, ocorreu em outubro de 1946, ainda no início das atividades da FBC. Embora a aura criada em torno de Diacuí e Ayres trouxesse a ideia de que a vida de ambos fosse um conto de fadas, essa aura nunca existiu. A versão de Ayres dá conta que ele e Diacuí não tiveram um “amor à primeira vista”, Diacuí tinha muito medo de Ayres e de qualquer homem branco que se aproximasse. Ayres relatou que eles tinham a vida normal dos humanos, tanto que, na aldeia, eles já moravam juntos muito antes do casamento no Rio de Janeiro. Tinham sua própria cabana e suas rotinas.

Quando Ayres resolveu se casar com Diacuí, a FBC e seus gestores não acharam uma boa ideia, pois um homem branco e uma mulher indígena não seriam bem vistos pela sociedade brasileira da época, com isso, ameaçaram Ayres com a demissão se ele continuasse com a indígena. Na versão oficial, quando soube que seria demitido em função de sua relação com Diacuí, Ayres inventou o casamento como forma de minimizar a pena. E para não ser demitido, Ayres apelou para a imprensa. Qual delas é a verdadeira? Sinceramente, não me interessa. Gosto de acreditar apenas no amor que havia entre os dois.

Em 1952, a notícia de que um homem branco queria se casar com uma mulher indígena foi um prato cheio para a imprensa nacional. A imagem de uma mulher indígena nua, ao lado de um homem branco sorridente, chamou a atenção e alimentou o fetiche colonial dos homens brancos do Iapoque ao Chuí, do Rio de Janeiro à Uruguaiana.

No Rio de Janeiro, a história de Diacuí e Ayres foi contada aos quatro cantos pelo rico e famoso Assis Chateaubriand. Uma de suas revistas, a Cruzeiro, fez inúmeras matérias vendendo a história do casal, cada nova história sobre Diacuí vendia muitas revistas. Quando da negativa do pedido de casamento pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), Assis Chateaubriand usou de sua influência e conseguiu com que o Ministério da Agricultura, onde o SPI era subordinado, autorizasse o matrimônio. E fez o mesmo para conseguir uma igreja para o casamento. A história vendia e o empresário Assis Chateaubriand lucrava bastante com isso.

As fotos do casal tinham na erotização da mulher indígena o foco. Essa era e é uma estratégia histórica de destruição da mulher indígena, uma via machista de etnocídio, afinal, nos mesmos jornais onde a história de Diacuí, quase sempre nua, era vendida, os homens da tribo dela nunca apareciam igualmente nus. Nas paginas da Revista Cruzeiro surgiam sempre as mulheres, sempre despidas e erotizadas. Para boa parte da sociedade brasileira que acompanhava a história do casal, a imagem de Diacuí e seus seios, contrastava com a de Ayres, o conquistador deles.

O casamento foi um dos maiores acontecimentos do Rio. A Igreja da Candelária ficou cheia. Ricos. Famosos. Curiosos. Assis Chateaubriand entrando com Diacuí pelo braço e a levando até o altar, as fotos, flashes, os jornalistas, um casamento de desenho da Disney. Depois de casada, Diacuí nunca veio em Uruguaiana, ao menos que eu saiba. Nunca morou em nenhum pedaço de terra no Rio Grande do Sul. A única coisa que retornaria, seria um homem enlutado com uma filha nos braços.

Um ano depois, em 1953, já grávida, Diacuí estava sozinha na aldeia enquanto Ayres havia viajado a trabalho, deixando ela às vésperas do parto. Na aldeia não havia médicos, nem parteiras, nem remédios, não havia nada. Durante o parto, Diacuí morreria, sangrando. Mas deixaria uma filha, batizada com o mesmo nome da mãe.

Ayres, antes tratado como um herói, transformou-se num vilão, nas páginas dos mesmos jornais e revistas que tanto venderam sua vida e de Diacuí. Agora ele era tido como o responsável pela sua morte. Sua versão nunca foi publicada, sua voz nunca foi ouvida. Para Chateaubriand a lógica seguia a mesma, assim como com as índias nuas, os vilões também vendiam muitos jornais e revistas. Assis Chateaubriand lucrou de novo…

Há uns cinco ou seis anos, lembro de assistir uma matéria no Jornal do Almoço daqui de Uruguaiana, onde aparecia ela, a filha de Diacuí, já uma senhora de idade, moradora de Uruguaiana e que estava imbuída de uma expedição ao Xingu, tal qual o pai.

Na matéria, ela relatou que veio para Uruguaiana com alguns dias de vida e que por aqui viveu, ao lado de Ayres Câmara Cunha, até sua morte. No Jornal do Almoço, a filha de Diacuí contou que estava retornando para a aldeia da mãe, queria conhecer essa parte da sua vida, da vida de uma mãe que tanto ouviu falar, mas que ela nunca conheceu.

No governo FHC, Ayres foi homenageado e recebeu a “pomposa” quantia de R$600,00, como forma de recompensa por seus serviços de sertanista. Em Uruguaiana, a filha deve ser confundida com a mãe até os dias de hoje, pois tanto ela, quanto a mãe, vivem nesse espaço entre a memória e a imaginação.

A história da “índia Diacuí” não foi uma história de amor com final feliz, como ainda hoje algumas pessoas contam em Uruguaiana. Diacuí foi a personagem/vítima de uma história já conhecida, sobre como no Brasil os brancos tratam os índios, sobre como vendem suas vidas e destroem suas culturas e invadem suas terras.

Diacuí deve ser uma memória viva em nossas comunidades, dita como tema de aula, lembrada como puxão de orelha e sentida como soco no estômago.

Depois de conhecer a história de Diacuí, após ler a versão das memórias de Ayres, depois de estudar a história das Reduções Jesuíticas, ler sobre os Bandeirantes, depois de saber dos oito mil indígenas mortos pelos governos militares e suas políticas de etnocídio sobre as centenas de aldeias destruídas pela faraônica Transamazônica, não é possível calar. Não é possível deixar que a história de Diacuí viva na imaginação de Uruguaiana como se ela fosse um conto de fadas. Ela é tudo, menos um conto de fadas. Diacuí deve ter uma cadeira cativa na história, pois lembrar da forma como tratamos nossos povos originários é o que nos fará ter memória enquanto país.

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana.É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.
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comentários

About Roger Machado

One comment

  1. Duclerc João da Silva

    Comentário relacionado à crônica de Roger Baigorra Machado:
    Em primeiro lugar quero dizer do meu apreço pela exposição de tão importante fato da história recente do Brasil. Respeito o contraditório sempre e vejo aqui uma opinião pessoal calcada principalmente no imaginário e no “contado” por outros atores. Mas entendo que as afirmações e argumentações também são construídas assim. Concordo e apoio grande parte da explanação, principalmente no que diz respeito a devastação dos povos indígenas, mas ressalto a necessidade de se aprimorar o pensamento e até enriquecer o debate. Entendo que o desconhecimento pode ter atrapalhado um pouco a escrita, pois apresenta algumas falhas, mas, enfatizo, não reduz a importância do tema e da própria crônica. Digo isto porque sou o coordenador geral do projeto da Expedição Xingu 2015 – Duacuí Kalapalo/Diacuí Cunha Dutra que levou a filha do casamento oficial de uma indígena com homem branco a conhecer o lugar onde nasceu e encontrar os parentes distantes, no ano do centenário de nascimento do desbravador Ayres. Repeitando meus ancestrais indígenas e com aquiescência dos caciques e líderes xinguanos envolvidos, atuo, desde 2014, como apoiador e produtor cultural da Aldeia Ngahunga Matipu, no Alto Xingu, e assim estou “desenrolando” este acontecimento, trazendo à tona a necessidade, sim, de reconhecimento da personagem viva da história brasileira. Apesar das contradições, sinceramente, vejo no autor da crônica um apoiador e alicerce para que possamos, além de toda reforçar a história de Diacuí, levar ao cumprimento das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 – Artigo 26A da LDB. Roger, a partir deste meu comentário, te convido, assim como a todos os leitores, que acompanhem a sessão solene da Câmara de Vereadores de Uruguaiana, que será realizada na noite de 2 de setembro de 2021, quando por indicação do vereador Egídio Carvalho, Diacuí Cunha Dutra vai ser agraciada com “Medalha de Ouro” em reconhecimento e honraria. Na oportunidade pretendo estar oferecendo ao público uma fala informativa e esclarecedora, apresentando um pouco do resgate que já fiz até agora e que será todo explicitado em livro que tem lançamento previsto para o início do mês de novembro. Não queremos mudar opiniões e conceitos simplesmente pelo fato e pretensão falha de ser o “dono da verdade”. Nosso intuito é colaborar com a manutenção da veracidade da história e reconhecendo os valores e os reais fatos que enaltecem os seres, as pessoas e as sociedades envolvidas. Caso alguém se interessar em ampliar o debate diretamente comigo, meus contatos são e-mail duclercsilva@gmail.com e telefone/Whatsapp 054 996563558. Grande abraço a todos!

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