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A morte dos ídolos curva-se ao sentido da vida por Graziela Miolo

Os tempos são difíceis para quem assiste a morte de seus ídolos. Assistir o desaparecimento de Gal Costa, Rita Lee, Tina Tuner, Mercedes Sosa, Paulo Gustavo, Luiz Carlos Borges, e tantos outros, tem me feito pensar sobre meu envelhecimento. Não se trata de uma ode melancolica ao possível endurecimento das articulações. Mas sim as limitações da alma.

Tudo bem, podemos até garantir que nada do que esses gênios produzem vá se acabar. Claro que não. A existência de cada um e cada uma, desses e dessas entidades da nossa cultura talvez ganhe ainda mais intensidade e força.  Afinal, não é qualquer coisa ouvir a voz de Whitney Houston. Mas ouvir  sua voz ecoando em The Greatest Love of all, depois de sua morte, pode ser considerado uma intervenção. Uma ação que modifica o modo como se pode olhar a vida, e a condição de existência. Assim como ouvir a doçura rebelde da Rita Lee entoando:

“Eu não tenho nada pra dizer, por isso digo
Que eu não tenho muito o que perder, por isso jogo
Eu não tenho hora pra morrer, por isso sonho…” em um tempo póstumo, só pode passar desapercebido para quem transita pela vida, e não considera a vida a partir da sua finitude.

Claro, olhar a finitude da vida não é tarefa simples para sociedade ocidental. Nossa cultura explora acima de tudo que possamos produzir. E não que possamos sentir a existência e o viver. Se considerar a produção acima da existência é um apelo dos nossos tempos, torna-se quase impossível pensar que podemos um dia terminar, acabar, encerrar. E mais, que podemos nos debilitar. Que possamos estar impedidos de sustentar essa produção, mesmo em vida.

Eu admiro a velhice. Mas não se trata de um romance. Eu ressalto: não se trata de uma ode melancólica, mas também não é um romance a tipo “chega de saudade, a realidade é que sem ela não há paz, não há beleza, é só tristeza…”, na voz estonteante da Gal. Não! Trata-se de uma admiração que considera a dificuldade do caminho, mas também entende que a velhice tem um tom de elegância para quem entende a juventude como o verão de nossos dias. Tem qualquer coisa de alegre e festivo. Um convite à festa. Mas ao mesmo tempo o sol escaldante acaba revelando uma intensidade que, por vezes, pode ser insuportável. O suor. O torpor do corpo. E a falta de recursos naturais para enfrentar a suposição de um dia de verão, podem seduzir, porém inebriar a ponto de impedir que os dias possam ser olhados com atenção. É um vislumbre frenético que nem sempre reconhece sabor. É uma compulsão de novas experiências que desengata a energia, sem medir o significado e a direção dos dias.

Por isso, a velhice, ou o passar dos anos podem significar um lugar de pudor no abrandamento das intensidades. Um reconhecimento do frenesi como sustentação espontânea para momentos. Mas nunca para sustentação de uma vida. E como o vento mais gelado que o outono carrega, para desmanchar folhas e pétalas. Mas nunca sem reconhecer a beleza daquelas folhas agora amarronzadas que tomam conta do chão. Um dia foram verdes e viris. Hoje são beges e serenas. Depois do outono vem o inverno, que pode ser entendido como um encerramento de dias. Como um anoitecer antecipado. Como um efeito nublado que evoca a chegada da chuva, gelada e intensa.

Mas esse mesmo cenário invernil, pode reconhecer aconchego e calor humano. O aquecer do fogo, como sustentação de uma promoção de vida. É dali que brota o refinamento de desfrutar da vida partilhada. Contudo, seja na juventude ou na velhice, estar junto e partilhar traz consigo o desafio da interlocução com a diferença, na flexibilidade que ela exige. Um dançar entre nuvens, oferece a estética da velhice um arco visceral. Aquele que reconhece o peso da vida, mas com a sabedoria busca alternativas para viver.

A velhice por vezes traz consigo um leve arco nas costas, que enfatiza a elegância daquela caminhada. Não se trata de uma consideração ao peso dos anos nas costas. Ao contrário, considero aquela pequena corcunda quase como um gingado malemolente, que pode garantir a existência em vida. Tem uma elegância confortável, que desconstrói a imagem do que é esguio como belo.

É na curvatura da vida que considera-se a pluralidade das experiências e dos sentidos. Não há maneira de garantir vida com sentido, sem reconhecer as mudanças das paisagens, e os desequilíbrios que podem engajar a condição física curvada.

Aquilo que muitos veem como decadência, para mim é acima de tudo a sinuosidade dos tempos, que adquire passagem na expressão particular de quem transporta-se no tempo, assumindo a dimensão do olhar de si como garantia. Afinal, quanto mais tempo, menos tempo. E isso impede muita coisa. Mas garante muitas outras. Dentre elas a definição do agora. Aqui é agora, como tempo que se curva à escolha de reconhecer-se como numa vivência ou em um legado. Afinal, o que determina que quando aquele corpo termina, a existência acaba?

Penso que a única certeza de que as existências podem significar contornos prósperos, mesmo na ausência de vida, seja a condição da palavra que foi deixada por quem parte. A palavra como expressão, que refere a lembrança e nostalgia do ato impregnado de sentido de quem em vida sustenta um significado de vida.

Na presença robusta das palavras do Gil, observa-se que nada além de qual lugar a vida pode ter na vida de alguém é que sustenta-se um sentido para a vida. Ele diz que não tem medo da morte, mas sim de morrer….” morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no Sol, no ar
Ainda pode haver dor
Ou vontade de mijar”
Quem pode duvidar que Gil permanecerá alimentando a alma, na medida em que um dia nos deixe? Quem pode duvidar que morte é acima de tudo vida? Quem pode duvidar que a vida possa ser condição para morte? Quem pode duvidar que o sentido da vida é antes e acima de tudo, uma das maneiras de como enfrentar a morte?
Para fazer jus a “lá negra”, Mercedes Sosa, agradecer a vida é poder curvar a alma, considerando o riso e o pranto. Manter-se vivo é dar sentido a possibilidade de garantir-se em curva, mesmo quando o ponto final é apenas uma reta, monótona e fria,  dura e estática, sem gingado e sem poesia.
Viva a palavra e a poesia! Do início até o final!

 

Graziela Miolo é Psicóloga e Psicanalista. Especialista em Clínica Psicanalítica, Mestre em Psicologia Clínica. Experiência na docência superior por 14 anos, entre cursos de graduação e pós graduação. Amante de leitura e de música. Sou inquieta com tudo que mobiliza e toca o ser humano e suas complexas formas de expressão. Me considero alguém atenta à vida. Mulher e mãe.

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