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A ELZA, O CESAR E A NATÁLIA por ROGER BAIGORRA MACHADO

O primeiro tapa que tomei na cara, lembro-me bem. Eu acho que eu tinha uns 14 anos na época. Era uma manhã fria, o sol aquecendo tudo aos poucos. Eu estava no ensino médio, naquela manhã a geada mal havia se derretido sobre a grama que ficava na frente da minha escola e eu já buscava algum motivo para ir embora. É que a primeira aula tinha sido de química e a próxima seria de matemática. E estava muito frio e eu curtia mesmo era literatura e história.

A casa da minha avó era perto da minha escola, por isso, sempre que eu matava aula, era para lá que eu me dirigia. O bolicho do Adair que ficava na esquina, vê-lo indicava que o caminho estava quase vencido.

Perdi as contas de quantas vezes matei aulas para ficar na casa da minha avó. A vó Maria sabia que eu tinha que estar na escola, mas ela não ligava. E eu me sentava na cozinha e ali ficava, tomando um mate que a minha avó fazia, ouvindo um causo ou inventando um final absurdo para alguma novela que ela gostava.

Na boca do fogão ela acendia o cigarro, a fumaça sumia e reaparecia no ar – minha avó só fumava uma marca, acho que se chamava Luxor – , a linha de fumaça ficava pairando contra a luz do sol que entrava pela janela da cozinha e aos poucos ia tomando conta da sala. A cuia do mate ficava indo e vindo num eterno retorno, eu tomava dois mates e passava outro para minha avó, enquanto ela cortava a carne ainda congelada para o carreteiro do almoço.

E quem diria que o tapa aconteceria logo em seguida. Levantei da cadeira e fui em direção aos discos na sala. Liguei o toca-discos e coloquei o primeiro vinil da pilha que estava na estante. Tinha a foto de um homem negro rodeado por uma moldura branca e em letras vermelhas estava escrito “Cesar Passarinho”. Coloquei no Lado B, na segunda faixa, mania minha de sempre começar pelo lado b e pela segunda faixa. E a agulha foi pulando como que se tropeçasse em algo, era um aviso. Então uma gaita serena foi surgindo. Era uma mistura de coisas boas, um som agradável, a casa de vó, a gaita calma, o som da Maria cortando a cebola na tábua de madeira, manhã fria, o mate quente e a fumaça que restava na bituca do Luxor voando pela casa. Tudo se comportava muito bem, até que veio o tapa:

“A negritude trazia a marca da escravidão!”.

E quando a mão sonora do tapa desgrudou da minha cara, ouvi num zumbido:

“Quem tinha a pele polianga, vivia na escuridão. Desgarrado e acorrentado, sem ter direito a razão”.

Tempos depois, descobri que “poliango” era um tipo de gado, um boi de pelagem preta, bom para o abate e que nem chifres tinha para se defender. O negro na canção era visto como um animal, acorrentado, sem direitos, sem razão e sem armas para poder lutar.

Se você esperava pela narração de uma luta, uma discussão, a mão de alguém acertando meu rosto, isso não aconteceu, desculpe. É que a sensação de tomar um tapa na cara veio de uma canção do César Passarinho. E de lá para cá, a música “Negro de 35” até hoje me machuca.

E enquanto ouvia a voz envelhecida de Cesar Passarinho, a história acontecia em cada verso. Os lanceiros negros, o ventre livre, as promessas de liberdade, as lutas.  E eu pensava nos meus amigos de infância que foram crianças negras, pensava nos seus avós e nos que vieram antes deles. O quanto sofreram e o quanto trabalharam para que nossa sociedade fosse erguida. As estradas, as lavouras, os ciclos econômicos, os prédios, as igrejas, a minha sala de aula, suas mãos pretas estavam em tudo.

Quando a canção terminou, eu desliguei o toca-discos e fiquei quieto por um tempo. Fiquei pensando nos meus amigos lá da Cidade Alegria, bairro onde cresci: Pensava no Robson, no Ederson, no Alexandre, no Chico, no Adão, no Anderson, na Cristiane e na Rúbia, no Xirú. Amigos que cresceram ao meu lado, crianças experimentando um mundo totalmente diferente do que eu experimentava. Juntos na mesma rua, mas em mundos diferentes.

Enquanto eu seguia estudando, vários deles não puderam, sequer podiam se dar ao luxo de matar uma aula na casa da avó. Vários precisaram trabalhar desde bem cedo, descarregando caminhão, limpando pátios.

Na minha sala de aula no ensino médio, eu só tinha um colega negro. Em toda minha vida escolar eu tive só uma única e insólita professora negra. Na graduação, também não tive nenhum negro como professor e no mestrado também não. Como pode isso? Num país em que mais da metade da população se declara preta ou parda? Onde eles estavam?

“Negro de 35” é uma canção pesada, forte e emocionante. Uma canção sobre a diáspora da história negra, uma canção sobre a nossa história e que foi um tapa na minha jovem cara branca.

“Apesar de racional, vivia o negro na encerra”, feito um animal era tratado um homem cheio de inteligência e de sentimentos. E hoje o negro ainda é trancado, só que em jaulas invisíveis. Ainda é preso na falta de educação de qualidade. Encerrado na falta de trabalho digno. Preso e morto nas periferias invisíveis ao poder público. Encarcerado em espaços sociais que não lhe dão abertura para ter representação política mínima. Segue sendo acorrentado pela exclusão.

Todo domingo eu ouço “Negro de 35”, ela está numa playlist que rola aqui em casa quando faço churrasco. E escuto sempre com a mesma atenção. Outro dia, enquanto ela tocava, o Gabo, meu filho de sete anos, sentou do meu lado e ficou ouvindo junto comigo, depois me perguntou sobre algumas partes da letra. Falei da escravidão, das violências, das charqueadas, da subalternidade, lembrei do Frantz Fanon, falei do Milton Santos, citei a Djamila Ribeiro, falei sobre o racismo estrutural do Silvio de Almeida, contei sobre o Zumbi dos Palmares e falei do Pelé. No fim, toquei “A carne” da Elza Soares. Ele ficou impressionado: “Pai, não sabia que podia caber tanta coisa numa música!”.

Daí nessa semana, liguei a TV para assistir outro Big Brother que estava começando. E eu curto assistir, na minha cabeça é tipo um termômetro social que mede a temperatura daquilo que eu não percebo direito, além de que o Big Brother serve também como um afago ao ego, pois nos sentimos menos idiotas. É tipo ler a Zero Hora, assistir ao Jornal Nacional ou uma live do Bolsonaro. É bom? Às vezes não. Mas é preciso. E no dia seguinte eu me deparo com um vídeo de uma participante chamada Natália falando sobre a questão racial no Brasil, sobre seu início. Natália é bolsonarista, mulher, modelo e, sobretudo, negra. E no vídeo ela aparece falando sobre a escravidão. Ela disse:

“Sou preta. Realmente tem a história que a gente veio e viemos como escravos, sim. Por quê? Porque a gente era eficiente. Por quê? Porque a gente era forte. Por que é que a gente veio como escravo? Porque a gente era bom no que a gente fazia. Por isso, porque talvez se colocasse uma pessoa lá pra fazer aquilo, talvez não conseguiria.”

Uma tentativa de amenizar o genocídio e a diáspora negra, característica presente em boa parte das falas de pessoas ligadas ao bolsonarismo, especialmente, quando o assunto é racismo. Há pouco tempo, outro bolsonarista, Sérgio Nascimento de Camargo, homem e negro, presidente da Fundação Palmares, defendeu que a escravidão foi benéfica para os negros, do contrário, “ainda estariam lá na África”. O mesmo Sérgio disse que o “Brasil tem racismo nutella (…) A negrada daqui reclama porque é imbecil e desinformada pela esquerda”. O próprio Bolsonaro já defendeu a ideia absurda de que os portugueses sequer pisaram na África, que todo o sistema escravagista era organizado pelos próprios negros.

Então é fácil compreender a fala da jovem negra bolsonarista do Big Brother, qual o contexto que a envolve, quais as premissas políticas que a condicionam. Ao tratar a escravidão de forma amena, supondo que foi uma questão meritocrática, pois os negros só foram escravizados por serem competentes e bons em ser escravos, ela busca desconstruir todos os estudos que dão conta de que a escravidão foi um crime contra a humanidade. Esse tipo de narrativa tem objetivos claros, destruir direitos, deslegitimar os movimentos negros, manter a população negra subalterna, acabar com o sistema de ações afirmativas que reservam cotas para pessoas negras e buscar sustentar a defesa da meritocracia como sistema de seleção.

E na mesma semana que a Natália falou absurdos em rede nacional, morre uma mulher chamada Elza, mulher forte, inteligente e, sobretudo, negra. Elza Soares foi valente em tudo o que fez, enfrentou a pobreza, a fome e todos os machismos e racismos do nosso Brasil varonil. Sua obra se choca frontalmente com a fala de Natália. Elza sempre denunciou o machismo e o racismo. Ela foi uma mulher negra que viveu a negritude de uma forma bem diferente do que Natália.

Ainda criança, aos doze anos, um homem chamado Alaordes abusou sexualmente de Elza, ao saber do ocorrido, o pai de Elza tomou uma decisão: Ela precisaria se casar para “limpar a honra” da família. Assim, aos doze anos, Elza é obrigada a se casar com o abusador. Aos 13 anos ela já está grávida e dá luz ao primeiro filho. Aos quinze anos, Elza já está na segunda gestação. Antes dos dezesseis anos, ela vê seu segundo filho morrer de fome.

Elza começou a cantar por comida e algum dinheiro. Nessa época o filho ficou doente e ela foi tentar a sorte num programa de calouros que era apresentado por Ary Barroso. Elza não tinha roupas para ir ao programa, então pegou emprestado uma roupa com a própria mãe, que era maior e pesava o dobro de seu corpo franzino.

A sandália que Elza usava sempre arrebentava quando ela andava rápido, por isso entrou no palco do programa andando bem de vagar. Ao ver aquela menina tão jovem, muito magra e com roupas maiores do que seu tamanho, Ary Barroso quis saber o que ela fazia ali: “Eu vim cantar”, disse Elza. “E quem disse que você canta?”, perguntou Ary. A plateia ria sem parar, gargalhadas e mais gargalhadas, riam daquela menina negra e franzina com duas “marias chiquinhas” no cabelo.

Ary Barroso quis fazer mais graça sobre a desgraça de Elza: “De que planeta você vem?”,  perguntou Ary. Com os olhos cheios de lágrimas e fúria, Elza responde: “Venho do planeta fome”. Os risos da plateia foram diminuindo e pararam completamente quando ela começou a cantar, todos ficaram chocados. Ary Barroso, antes da música terminar, abraçou Elza e disse: “Senhoras e senhores, nesse exato momento nasce uma estrela!”.

Alaordes ao descobrir que Elza andava cantando para comprar comida e remédios, dá dois tiros nela. Elza teve de fugir com a terceira filha no colo. Aos vinte anos, para poder trabalhar, Elza precisa deixar a filha mais nova com um casal de conhecidos. Quando volta do trabalho, não há ninguém na casa, eles fugiram, sequestrando a criança. Elza só foi reencontrar a filha quase trinta anos depois.

A negritude de Elza é diferente da negritude de Natália, sem dúvidas, muito diferente. A negritude de Elza traz a marca da escravidão, já a de Natália sequer sabe o significado de escravidão.

Depois, a vida de Elza segue a trajetória que todos conhecem, os preconceitos que sofria enquanto cantora negra, aí vem o Garrincha, a morte da mãe, o aborto do filho, as ameaças, a casa apedrejada, o alcoolismo do marido, o divórcio.  Elza sai do casamento com Garrincha sem levar nada, nem uma pensão sequer. Então a morte de Garrincha. Elza nunca mais se casou, no entanto, ela peleou e muito. Lutou como pôde pela sua independência. Lutou com as armas da inteligência.

Elza cantou. E como cantou. Sua voz bradou contra as injustiças e os preconceitos, nas letras de suas canções ela fez humor sobre as críticas que recebia e sobre a própria pobreza, no final de sua obra, quase sempre encontramos músicas com caráter político ou com alguma crítica social.

A negritude de Elza Soares é fruto da escravidão e do empobrecimento de um povo, não se trata de uma questão meritocrática. A fala de Natália é triste, quase um deboche, especialmente, por ter ocorrido na mesma semana da morte de uma das mais importantes cantoras brasileiras, sobretudo, uma mulher negra.

Canções como “A carne”, “O que se cala”, “Exu nas escolas” ou “Hienas na TV” colocam a obra de Elza Soares num lugar onde a maioria dos cantores evita pisar. Letras que falam da violência contra as mulheres e contra o povo negro  e que questionam pensamentos como o defendido por Natália. O Cesar Passarinho me deu o primeiro tapa de consciência social na cara, a Elza seguiu batendo depois. Obrigado por cada tapa, Elza.

 

 

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana.É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.
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