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A CHACINA DOS QUATRO A’S: O MEDO COMO FERRAMENTA POLÍTICA por ROGER BAIGORRA MACHADO

Uma crônica de Roger Baigorra Machado

Neste mês de setembro, mais precisamente no próximo dia 24, completaremos 71 anos da chacina de quatro pessoas nas ruas de Sant’Ana do Livramento-RS, quatro vidas assassinadas entre pincéis, tintas e tiros. Abatidos no chão da Praça Internacional, mortos na Fronteira da Paz que divide as cidades de Rivera (Uruguai) e Livramento. Mas qual o motivo de falar sobre mortes de 71 anos atrás?

É que a chacina de Livramento é atual. Ela se deu em nome de um medo que ainda hoje sobrevive entre nós, medo que é alimentado constantemente por atores políticos que só se mantém na política através dele. O medo de um inimigo imaginário que nunca mata, só morre. E sem perceber, somos jogados numa espécie de jogo de tabuleiro repetitivo, colocados frente a frente, peças desproporcionais em força, feito torres e peões, para um enfrentamento desleal.

O JOGO E O MEDO.

Nesse jogo, uma boa parte do dogma do medo se transformou num roteiro que nem sentido mais consegue fazer. No Brasil, muitas pessoas que se acreditam liberais, defensoras da democracia e da liberdade, adotam, conservadoramente, um tipo de “jornada do herói” nas suas falas, defendendo um enredo de medo para legitimar erros, onde sequer um herói existe, pois na jornada só importa a existência do inimigo.

Um inimigo que deve provocar uma histeria moral e, principalmente, que seja irracional, servindo como ferramenta política de manutenção do medo e multiplicação de votos. E na contabilidade política, o medo é um passivo valioso para os que nada sabem propor.

O medo é assim, um cabresto intelectual que decide o voto e faz o voto ganhar a eleição. O medo é ofuscante, feito uma lanterna apontada na cara de alguém. Ele pode estar em qualquer lugar e se vestir de qualquer coisa, até em bandeiras e camisetas de seleção. O medo não anda, ele desfila.

E assim, num tipo de “vale à pena ver de novo” eleitoral, de tempos em tempos, o medo vai para a rua e o comunismo vira o vilão dessa história tragicamente repetida. E também viram “comunistas” todos aqueles que se negam a acreditar no discurso do medo.

Comunistas, todos aqueles que se negam em crer num messias incapaz de qualquer milagre. Tornam-se comunistas todos os que recusam fechar os olhos para a tragédia econômica e política que sangra o povo na pobreza. Comunistas, estes todos que insistem em justiça social, universidade pública e em agricultura familiar forte.

Transformam-se em comunistas àqueles que insistem em defender a democracia para além do liberalismo messiânico. Comunistas, todos os que não se comovem diante de rompantes ditatoriais de pretensos patriotas ansiosos por entregar a nação aos desmandos de homens e suas fardas.

E mesmo sem nunca ter sido responsável pela gestão do país, o medo do comunismo afirma que eles, os comunistas, é que são os responsáveis por qualquer crise, responsáveis pelas péssimas gestões daqueles políticos que não são comunistas.

O discurso do medo diante dos comunistas é antigo. Olhando para o passado dá para ver a trilha das pegadas por onde ele andou, tão logo a Revolução de 1917 se tornou notícia no mundo, todos os que tinham privilégios acima do normal, diga-se, grandes riquezas, heranças, propriedades, muito dinheiro, títulos de nobreza, todos se sentiram ameaçados.

Nas sociedades capitalistas, quando os detentores do poder econômico se sentem ameaçados, geralmente, uma das estratégias é recorrer à violência do fascismo como tática de autopreservação. Assim aconteceu com Getúlio Vargas e Eurico Gaspar Dutra, assim foi nos anos de ditadura civil-militar no Brasil. Assim ocorreu nos anos de Guerra Fria e seguirá acontecendo até o dia em que as nossas sociedades compreendam o engodo do roteiro desta farsa que se repete como história e usa o medo como arma e tática política.

E aqui nas nossas cidades da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, o medo do comunismo tem esse mesmo uso, espraiado como discurso, ou melhor, como uma prática política que sustenta grupos no poder há muitas décadas.

Para compreendermos como esse jogo começa e como quatro corpos vão sangrar em Sant’Ana do Livramento, precisaremos, inevitavelmente, olhar para o passado numa rápida digressão.

O TABULEIRO É UM PAMPA.

Nas cidades fronteiriças é comum as distâncias excessivas entre uma cidade e outra. Imagine, por exemplo, um triângulo entre Uruguaiana, Alegrete e Livramento. Se você saísse de Uruguaiana até Alegrete, e de lá fosse para Livramento e retornasse novamente para Uruguaiana, a soma das distâncias entre as três cidades é de aproximadamente 579 quilômetros, quase a distância de Uruguaiana até Porto Alegre. A distância também é um instrumento da política. A distância evita o diálogo, destrói a comparação entre realidades distintas e sustenta o medo daquilo que se desconhece.

E nessas distâncias fronteiriças existem grandes extensões de terras que dramaticamente invadem o horizonte, uma invasão sem vida humana aparente, escondendo no verde do pasto, muitas vidas amedrontadas. Nestes espaços verdes, existem dezenas de propriedades rurais, as mais antigas, fruto de doações de terras, coisa lá do tempo do Império, estâncias que deram início aos povoados que hoje são cidades. As propriedades mais novas, resultado do investimento de novos sujeitos no cenário econômico local.

Em relação ao surgimento das estâncias através das doações de terras, cabe lembrar que elas foram uma estratégia, ou melhor, uma tentativa portuguesa, durante o século XIX, para demarcar o território brasileiro, colocando enormes extensões de terras sob os cuidados de ex-militares e afiliados políticos da nobreza, ex-combatentes ou degredados que acabaram ficando na região após os períodos de guerras. As estâncias foram se formando sem maiores planejamentos, tendo como papel frear as constantes tentativas espanholas de tomar conta do território onde hoje é a Fronteira Oeste.

Seguiu-se ao processo de demarcação territorial, a necessidade da domesticação de gado selvagem que ficou no pasto depois das guerras jesuíticas, assim como, houve uma política de extermínio das populações indígenas que ainda habitavam as suas próprias terras, o território gaúcho. Depois, veio a subordinação do “el gaucho” – o filho da índia estuprada pelo europeu – , aos interesses dos grandes estancieiros. Surgia assim a figura dos gaúchos changueadores, viventes que habitavam o pampa, morando em qualquer lugar, com o sangue mestiço no braço e levando a vida sobre o próprio cavalo. Trabalhando ora aqui, ora acolá. Pois os changueadores também foram domesticados, feito gado, e ao se aliarem aos interesses dos caudilhos, foram assumindo um novo papel no tabuleiro verde, servindo como força paramilitar, uma milícia rural utilizada pelos caudilhos, tanto para cuidar dos rebanhos, quanto para demarcar através força novas fronteiras para as estâncias.

Os pequenos ranchos nas beiras dos rios, os vilarejos, as vendas, as pequenas propriedades, todos deveriam estar em acordo com os interesses dos estancieiros. Se um caudilho tivesse medo de algo, todos ao redor deveriam ter medo também, o medo virava um valor dominante e que tem finalidade política. E em nome desses interesses dominantes é que se deu, por exemplo, a chamada “Revolução Farroupilha”, esse evento bélico que tanto orgulha o nosso Estado em cada mês de setembro. “Revolução” que envolveu em suas lutas, pobres, mestiços, negros, peões e que, ao seu término, não revolucionou absolutamente nada, pois manteve a mesma ordem social: os proprietários das terras no topo, os peões e seus farrapos na base.

Logo, a região da Fronteira Oeste se tornou um terreno fértil para a agricultura do medo. Os medos dos privilegiados se constituíram numa ideologia, cobrindo a vida de todos os desprivilegiados, um pensamento dominante que sustentou práticas persecutórias contra os que questionavam os privilégios dos caudilhos.

O pampa é este amálgama de interesses e medos, onde as elites políticas e econômicas se atribuíram o controle da vida de todos que orbitam as grandes propriedades rurais, cabresteando todos num mesmo rebanho.

Neste tabuleiro verde, onde nossas cidades cresceram e onde a lógica fundiária estabeleceu os marcos de um desenvolvimento econômico baseado nas atividades pastoris, o peão tem papel fundamental na efetivação da sociedade como a conhecemos, não só como o “peão de estância”, mas também como peão proletário e urbano.

E mesmo que no centro do tabuleiro estivessem as torres, os donos das terras, os donos do poder político e econômico, a maior parte do tabuleiro sempre foi ocupada por peões, o problema é que a quantidade de peões é inversamente proporcional ao poder político e econômico que possuem.

E nesse xadrez imaginado, a ideia de um xeque-mate sempre esteve presente na vida dos peões da Fronteira Oeste. E é aqui que o comunismo surge como um conjunto de ideias capaz de aterrorizar os donos do poder, ao ponto de fazê-los recorrer à violência e ao medo.

A TORRE.

Durante o século XIX, a pecuária, prática tão comum na Campanha gaúcha, quando posta em termos industriais, não passava de uma atividade econômica secularmente desorganizada e voltada hegemônicamente para o mercado do couro e do charque. Somente no início do século XX é que os estancieiros começaram a buscar na comercialização da carne processada ou congelada uma atividade com maior retorno de capital. Mas para isso, era preciso um mercado consumidor maior e, é claro, um parceiro de negócios com potencial de investimento e que soubesse processar e distribuir a carne.

Em 1917, não era só na Rússia que uma revolução começava. Na fronteira do Brasil com o Uruguai, iniciou-se uma transformação que mudaria a história da cidade de Sant’Ana do Livramento. Foi nesse ano que uma empresa estadunidense, da cidade de Chicago, chegou e ergueu no tabuleiro uma nova Torre: era um frigorífico chamado Swift Armour.

A Armour era uma empresa de investidores americanos ansiosos por fazer multiplicar seus dólares nos campos do sul do Brasil e no Pampa argentino e Uruguaio. Em 1917, assim como com a cidade de Pelotas, Sant’Ana do Livramento era um centro de abate de animais. Milhares de cabeças de gado sendo levadas para os frigoríficos. Logo, não tardou para que outra Companhia estadunidense se estabelecesse na cidade: a Companhia Wilson.

Os frigoríficos da Armour e da Wilson impactaram profundamente a economia santanense, pois buscavam, além da matéria-prima farta, também a mão de obra barata, e Livramento tinha os dois em abundância. Brasileiros e uruguaios passaram a trabalhar nos frigoríficos das duas empresas, a cidade experimentava quase que um pleno emprego, pois ao redor dos frigoríficos também surgiram dezenas de pequenas empresas e indústrias ligadas ao setor secundário.

Surgia em Livramento um grande número de pessoas assalariadas, uma nova classe de peões, peões operários, com sentimento de pertencimento comum e objetivos partilhados. Uma classe.

Mas não tardou para que a elevada jornada de trabalho, os baixos salários, as condições insalubres, os dedos cortados e as mãos amputadas fizessem com que estes operários se organizassem e, como os peões do tabuleiro, enfrentassem a torre.

Ocorre que ao enfrentar organizadamente os dois frigoríficos, os peões enfrentavam também os interesses dos grandes produtores rurais que vendiam o gado para o abate e posterior exportação. Ao se organizarem diante das empresas estadunidenses, os peões operários teriam de enfrentar também o discurso do medo da elite pecuária local, o medo do comunismo, ainda e mesmo que a maioria dos operários não fosse comunista.

Na base dessa organização sindical proveniente dos frigoríficos estavam, além dos comunistas, também socialistas, liberais, anarquistas e todo um ideário que punha em dúvida as reais intenções das duas empresas americanas e dos estancieiros, estes, os fornecedores de carne, que lucravam muito enquanto a desvalorização da mão de obra local se impunha como regra inevitável na cadeia produtiva.

OS PEÕES.

Em 13 de março de 1919 as ruas de Livramento e Rivera (Uruguai) presenciaram um evento único, mais de 1.000 trabalhadores dos frigoríficos cruzando a fronteira, com faixas e bandeiras em punho, exigindo que as empresas americanas aumentassem seus salários e melhorassem as condições de trabalho.

Pessoas sem os dedos, sem as mãos, cortadas pelas serras dos frigoríficos, erguiam os braços mutilados exigindo algum tipo de indenização. Entre os grevistas, não apenas trabalhadores, mas familiares deles também, todos exigiam que as empresas americanas fossem responsabilizadas. Na passeata havia dois jovens, um se chamava Abdias e o outro Aladim, dois dos homens que seriam mortos pelo medo alguns anos depois. E ambos, junto com comunistas, liberais, anarquistas e socialistas tentavam enfrentar, armados apenas de ideias, duas torres gigantes. Um dos líderes desta greve se tornou uma das figuras mais importantes dos movimentos sindicais e dos movimentos comunistas da Fronteira Oeste, ele se chamava Santos Soares e era a liderança que indicou por vários anos o caminho a ser seguido por milhares de operários.

E os anos foram passando pelo tabuleiro verde e os peões do proletariado santanense seguiam cada vez mais combativos. Após a “Revolução de 30” os mandatários locais sentiam-se ainda mais confortáveis para ditar as regras e os salários para os trabalhadores. Nacionalmente, os comunistas, organizados em partido político, depois de 1935, passaram a ser perseguidos, perdendo seus direitos políticos e vivendo sob a sombra da violência, virando o alvo de um período ditatorial getulista que era só o início do discurso do medo como conhecemos hoje.

Getúlio, com o seu “Estado Novo”, usava o medo frente ao comunismo como ferramenta política para se manter no poder – qualquer semelhança com o presente é mera coincidência –, era o velho jeito caudilho de fazer política e tornar inimigos todos os que contrariavam seus interesses. Ainda assim, mesmo na clandestinidade, os comunistas estiveram presentes em quase todos os movimentos, sindicatos e greves operárias do período.

Em 1943, Getúlio Vargas vendo que as relações trabalhistas poderiam ser o foco de um grande incêndio nacional, resolve mediar as relações trabalhistas no país, tentando equilibrar interesses de patrões e de empregados, e assim surge a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT.

Quando Eurico Gaspar Dutra assumiu a Presidência, o que era ruim ficou ainda pior, pressionado por interesses internacionais, Dutra optou por colocar os comunistas novamente na ilegalidade, promovendo uma perseguição tão brutal quanto a que fez Getúlio. No entanto, mesmo marginalizados, os comunistas seguiram lutando por melhores condições de vida para os trabalhadores, em Livramento isso não era diferente.

Em 1947, os trabalhadores do frigorífico da Armour não receberam o abono de Natal, seguiam perdendo os dedos nas lâminas e queimando a pele dos seus corpos no gelo das câmaras frias. Pouca coisa havia mudado, as torres seguiam fortes e os peões seguiam insatisfeitos.

Em 1949, uma outra greve ocorre no Frigorífico da Armour e a empresa deixa de lucrar por dias. A Torre estava sendo submetida novamente pelos peões. Os trabalhadores seguiam reclamando dos baixos salários e das péssimas condições de trabalho, o que deixava a empresa numa situação difícil, pois demitir funcionários que reclamassem não adiantava, havia um espírito de classe que permeava tudo, inclusive, o novo funcionário.

Em 1950, a empresa americana fechou contratos com o governo dos EUA para vender carne enlatada para as forças armadas. Os contratos previam que a Armour deveria abastecer os soldados na Guerra da Coreia com a carne de seus frigoríficos, e o frigorífico de Livramento também deveria fazer isso. Logo, a produção não poderia parar sob hipótese alguma, cortem-se os dedos, as mãos ou os braços dos trabalhadores, desde que os anéis fiquem nos bolsos dos patrões e rentistas.

E sabendo que não poderia reprimir os grevistas/comunistas com violência, a Armour faz uma jogada de mestre. Como reprimir um funcionário que está inconformado com seu salário e com as condições insalubres de trabalho? Ora, usando as forças repressoras do país do próprio trabalhador.

A gestão do presidente Eurico Gaspar Dutra, alinhada com a Doutrina Truman, era ainda mais brutal do que a experiência getulista, caindo como uma luva sobre os interesses estadunidenses e das oligarquias locais. A Armour utilizaria o aparato estatal para lhe servir, através de policiais, militares e políticos de Santana do Livramento. Além de Dutra, a política entreguista do Partido Social Democrata colocava também a sua doutrina diretamente no Estado, pois tinha no governador do Rio Grande do Sul, Walter Jobim, outro de seus representantes.

Quase um ano após a última greve no frigorífico da Armour, os ânimos seguiam exaltados e as eleições eram agora o foco do país. Getúlio Vargas tentava ser presidente novamente e os comunistas tentavam ganhar espaço político depois de anos. Muitos trabalhadores, que eram militantes comunistas em Livramento, adotavam a prática das pichações como expressão política, colocavam textos com o nome dos candidatos que apoiavam e que eram contrários à exploração feita pelos frigoríficos americanos.

Em Livramento, haviam dois progressistas que eram candidatos a vereador, os “candidatos de Prestes”, Lúcio Soares Neto e Sólon Pereira, tidos como comunistas pela polícia política de Dutra e que eram apoiados pela militância comunista local.

Ao entardecer do dia 24 de setembro de 1950, um grupo de pessoas estava reunido na Praça Internacional, na divisa entre Rivera e Livramento. Eram os comunistas santanenses se preparando para pichar os nomes de seus candidatos. Estavam prontos para ir até as ruas Rivadavia e Andradas, queriam também distribuir santinhos e fazer campanha política, sem perceber que, de longe, eram observados pela polícia.

Enquanto estavam escrevendo num tapume, onde era construído o prédio do Palácio do Comércio, foram abordados pelo delegado de Livramento, Miguel Zacarias e outros policiais. No entanto, mesmo com a presença policial, ninguém parou de pichar, o que deixou o delegado enfurecido, ele chutou uma lata de tinta contra as pessoas e em seguida deu um tiro no rosto de um homem, era Ari Kulmam.

Ari Kulmam era dono de um restaurante na cidade, uma pessoa querida pelos moradores, foi o primeiro dos A’s que caiu sangrando e morto. Depois disso, chegaram mais soldados do exército, pistoleiros contratados por latifundiários locais, o comandante da Brigada Militar, Eleú Gomes da Silva, Ciro de Abreu, que era o comandante do Exército, um advogado chamado Mário Cunha e o inspetor de polícia, Ário Castilhos. A desproporção entre as peças do tabuleiro era clara, a desproporção é uma das regras do jogo.

E o tiroteio tomou conta do centro das duas cidades fronteiriças. Era o início da chacina. Naquela noite de 24 de setembro de 1950, além de quase uma dúzia de feridos, foram assassinados também: Aladim Rossales, um funcionário da Armour, liderança local desde a greve de 1919, que morreu abraçado num poste. Aristides Leite, dono de uma livraria, que tinha como única arma, numa das mãos, um pincel, morreu sobre ele. Abdias da Rocha, também foi executado. Abdias era um agricultor, lutando longe da lavoura, morreu caído na calçada.

Um agricultor, um dono de restaurante, um dono de livraria e um funcionário da Armour. Ari, Abdias, Aladim e Aristides: os “Quatro A’s”. Assim como na Coréia, onde os soldados americanos comiam as carnes de Livramento, no centro da cidade gaúcha os comunistas também eram tratados com medo e tiros. E assim, quatro pessoas foram assassinadas por questões exclusivamente políticas. Foi sobre estas quatro pessoas que o discurso do medo foi jogado, pesado, ignorante e violento.

Os comunistas, ao representarem uma posição crítica dentro do tabuleiro verde da Fronteira Oeste, colocaram em risco a posição de poder que historicamente era ocupada pelas “torres”, pelos detentores do poder econômico e político, com isso, tornaram-se os peões que não poderiam se mover livremente pelo jogo. Assim, os interesses dos donos dos bois imperavam novamente por sobre os interesses dos peões, trabalhadores que só queriam salário justo e condições mínimas de trabalho digno.

Este texto é sobre várias coisas, sobretudo, é sobre o medo como retórica política. É sobre Sant’Ana do Livramento, onde houve um tempo em que os peões se organizaram de tal forma que deixaram as torres morrendo de medo. Este texto é sobre o paradoxo de se falar de um frigorífico num país onde a maioria das pessoas não tem dinheiro para consumir carne, sobre o paradoxo de se culpar o comunismo num país que nunca teve um presidente comunista.

Este texto é sobre os políticos que insistem em usar o medo como plataforma de campanha e fazer da política o quintal de sua família. Escrever sobre os “Quatro A’s” – Abdias, Aristides, Aladim e Ari – , talvez, seja tentar lutar contra a repetição política de uma tragédia histórica que novamente está aqui, repetida na tela do celular, na TV, no rádio e nas redes sociais.

Uma tragédia histórica que vai estar nas ruas de nossas cidades, novamente, no dia 07 de setembro, uma farsa, desfilando de verde e amarelo, roubando as cores e se apropriando da bandeira de um país inteiro em nome do medo compulsivo e irracional.

Este texto é sobre como o poder econômico e político recorre ao fascismo como forma de combater aquilo que pode colocar em xeque seus privilégios. É sobre como os presidentes brasileiros utilizam o medo como ferramenta política para sugerir golpes de Estado e atacar suas instituições.

No próximo ano teremos eleições, novamente. Uma nova oportunidade de buscar transformações que fujam do discurso do medo ao comunismo, medo ao que é diferente, do medo irracional e que só tem como métrica computar votos. Não tenhamos medo.

Já é tempo dos peões se organizarem novamente, senão para um xeque-mate em busca dos direitos trabalhistas e previdenciários que foram cortados pelas lâminas do mercado, ao menos, para uma jogada estratégica, que possibilite a retomada de um país com perspectivas de crescimento sustentável e direitos básicos garantidos. Um país sem medo, com educação, vacinas e democracia para todos. Não tenha medo.

Como dicas de leitura sobre a chacina dos comunistas de Livramento, há o trabalho de mestrado de Oneider Vargas de Souza, “As lutas operárias na fronteira: A chacina dos quatro As (Livramento / RS 1950)”, dissertação defendida na UFSM. Também o ótimo trabalho de doutoramento de Marlon Gonsales Aseff, “No portão da fábrica: Trabalho e militância política na fronteira de Santana do Livramento/Rivera (1945-1954), tese defendida na UFRGS. Sobre o frigorífico e sua relação com a cidade de Livramento, o trabalho de Michele Nunes da Silva, “Frigorífico da Armour: Poder e influência em Sant’ana do Livramento”, monografia defendida na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

 

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação. Preside o Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e é membro do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana. É conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.
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