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8 POEMAS DE ANA ELISA RIBEIRO

Aprenda a ler #1

aprenda a olhar ao redor:
a casa a cortina o piano – fechado –
os sofás os sapatos as almofadas
as janelas abertas e um sol entardecido
as roupas o cinzeiro cheio
as sombras de quem não posou
mas ficou a angariar sorrisos dos outros
os lembrados e os esquecidos
os vistos e os que dependerão da memória alheia

aprenda a observar:
a pompa as poses os cabelos da moda
os cortes de colarinho e as poucas gravatas
as calças os lenços os esmaltes
as peças em cima das mesas pequenas
os copos com restos de bebidas claras
os olhares esparsos para fora da foto

faltam apenas as cores
roubadas desde o clique
em um filme que só poderia
obter a cena em cinza

a sua memória
será capaz das cores?

Luz

vamos agora
que esta luz está boa
este dia de nuvens
melhor que o sol
estourado
este dia azul
mais que amarelo

vamos que é agora
esta foto
para a posteridade
mais que nós mesmos
podemos saber

se nem estivermos
mais juntos
nela, estaremos

nenhuma fotografia
se mede
em segundos

Menos duas

sete irmãos
e irmãs
quase abraçados
tímidos no ato
da fotografia

meio posados
meio não
muito limpos
em suas roupas
bem passadas

cinco moças
dois rapagões
orgulhosos de suas
calças suspensas

sete irmãos e irmãs
na fotografia
em cima do piano

as duas irmãs –
mortas em acidentes –
continuam limpas
e desafiadoras
sobre o negro
piano fechado

os demais
irreversivelmente
envelhecem

Instantâneo #5

Só mesmo uma foto
para nos flagrar
no auge
de um quase

Mãos

só vou envelhecer
quando as mãos
se mancharem
e se enrugarem
e ganharem pintas
de puro desgaste

não vou envelhecer
com vincos ao redor dos lábios,
nem com peitos caídos de leve

não envelhecerei
com fios brancos
no alto da cabeça trêmula
nem com pernas
sem firmeza
um andar de lentidão
e olhos baixos

não serei velha
enquanto as mãos
mantiverem a pele
firme e morena

não serei velha
apenas se contar os anos
nos dedos endurecidos
doloridos à toa

e nem porque
não queira mais
saber de sexo algum

por isso olho minhas mãos
com medo
com cuidado
e as examino

quando eu for velha
realmente velha
o avesso das palmas
mostrará manchas e pintas

e uma pele transparente
e as veias
visíveis contra os dias de sol
me impingirão o tempo
que nunca antes
quis me convencer
de que os anos passam
enquanto simplesmente
desbotamos

Janela

escolheu olhar de soslaio
menos sincero, ao menos
ou menos cínico, depois

olhar diretamente
poderia queimar-lhe
as retinas as entranhas

e se olhasse de cima?
por baixo a visão
parecia-lhe interrompida

ajeitou-se no mundo
como que a medir
o tamanho do desvão

e mirou de soslaio
as inquietudes todas
que pousaram no parapeito

Palimpsesto
Substantivo masculino

a poeta escreve um poema sobre o outro
um verso se apaga sob outro verso
escreve um poema em cima de outro
que, sob o manto de novas palavras,
pode parecer não ter existido.

a poeta desescreve um poema sob outro
e pretende não deixar rastro, uma vez que
faz isso empregando uma tecnologia
que finge não deixar vestígios
de um poema arrependido sob outro.

enquanto a poeta escreve um poema novo,
um poema antigo some ou se apaga ou
se inunda ou se desveste ou se desmaterializa
embaixo dos versos de um poema neonato,
e ambos se perguntam, como se fossem poetas:
quem será o melhor?

Imenso
Adjetivo

A palavra imenso deve se relacionar a algo sem medidas,
assim, meio particípio,
está feita e é questão acabada, aplicando-se ao que se deseje,
em especial ao amor (a poeta tem falado muito nisso e não é
bom exagerar).
Imensurável é o que não se pode medir, geralmente porque é
grande,
em escala desumana, acima do razoável para nossos limites.
Imensurável é talvez o universo, a velocidade de algo e até um
sentimento.
Esse radical, que vem de medir, incomoda os mais
românticos,
que por isso mesmo preferem o desmedido e a desmesura.
Desafortunados os que podem medir certas coisas, sem
dificuldade,
já que resolvemos tratar aqui da ordem mais poética dos
excessos.
 

Ana Elisa Ribeiro é mineira de Belo Horizonte (1975), onde vive e trabalha. É professora da rede federal de ensino, doutora em estudos linguísticos. É autora de livros de poesia, conto, crônica e infantojuvenis. Seus títulos mais recentes na poesia são Álbum (Relicário, 2018, prêmio Manaus 2016) e Dicionário de Imprecisões (Impressões de Minas, 2019, finalista do prêmio Jabuti 2020). Os poemas Aprenda a ler #1, Luz, Menos duas e Instantâneo #5 são do Álbum; os poemas Mãos e Janela estão na coletânea Boca na palavra, vias do canto, publicada pela Impressões de Minas; Palimpsesto e Imenso são do Dicionário de Imprecisões.

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