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QUATRO DIAS PARA O FIM DO MUNDO – PARTE II

Um conto de Melina Guterres (Mel Inquieta)

Sempre ouvi dizer que o caos está dentro de nós. Talvez!

Ora quantos anos foram de repressão sobre o que de fato sinto?
Agora, eles têm a força que pode me tirar desse coma. Talvez um sonho erótico ou as notícias ruins ajudem.
Chegou aquela moça simpática que se diz minha advogada. Ela com um olhar de pena que me angustia. Minha aparência deve estar terrível. Passa as mãos no meu cabelo como se fosse uma filha, uma filha que nunca tive.
– Eu não sei se você me escuta, mas há muitos anos numa viagem sua lá no interior do Nordeste, lá no sertão você presenciou uma cena terrível, cena que eu vivia diariamente. Mas você agiu diferente das outras pessoas. Com uma só mão, segurou a mão do pai com a outra colocou uma arma na cintura dele e você disse:
– Se você bater mais uma vez nessa mulher, eu vou matar você! Você sabe quem eu sou?
Meu pai respondeu que não e você disse:
– Eu sou a lei!
Eu não sabia o que aquilo queria dizer, mas só pensava que queria ser igual a você. Minhas brincadeiras dali em diante sempre foram as mesmas, ser a lei. Foi engraçado crescer querendo ser policial e na adolescência descobrir que na verdade você era uma diplomata. O que uma diplomata estava fazendo naquele caos, armada e ainda salvando a minha mãe?
Meu pai temia tanto o seu retorno que até achava que era uma maldição que aparecia quando ele bebia. Por sorte, um padre disse a ele que Deus e o demônio usam diferentes disfarces, mas só um homem sóbrio seria capaz de distingui-los. Uma mulher armada enfrentando um homem numa cidade cheia de fome, violência e seca logo se tornou uma lenda. Uns achavam que você era Santa, outras o demônio, mas eu sempre dizia que você era a lei. O povo começou a entender que a lei era mais justa do que a gente conhecia como céu ou inferno. Sua manifestação era usada nas igrejas, nas escolas, nos bairros toda vez que um homem era agressivo, diziam “cuidado que a lei vai te pegar.”
Logo você, sua imagem se tornou um bicho de 7 cabeças com garras afiadas e capaz de cuspir fogo. A lei era cultuada e temida. Foram muitas histórias contadas porque você fez o que ninguém fazia  numa cidade que mal pão na mesa tinha, quanto mais educação. Lembro até hoje de me olhar bem nos meus olhos e perguntar o que eu queria ser quando crescer e eu prontamente responder a palavra que acabara de conhecer:
– A lei!
Você se tornou responsável pelos meus estudos até a faculdade. Meu pai e a cidade inteira acreditavam que os forasteiros que traziam comida e educação eram enviados por você, a Lei, um ser que transitava pelo céu e o inferno e poderia tanto ajudar como matar. Ele nunca mais bebeu de medo. “A lei pode ficar braba” – repetia toda semana minha mãe.
Parece engraçado, mas é horrível, minha tia não teve a mesma sorte. Um fofoca de traição, um tiro na testa, a vizinha foi esquartejada, minha amiga de infância estrangulada, eu me mantive viva. Disse para mim que nunca iria me envolver com ninguém até sair daquele lugar.  Me formei para ajudar as mulheres e nunca mais parei.

Ela me abraçou, ficou alguns segundos encostada em mim. Senti as lágrimas correrem pelo meu rosto. Mais uma vez, o afeto vinha de estranhos. Eu sentia muita vontade de abraçar e quando percebi a abracei. Ela se assustou, se emocionou. Chamou a enfermeira. Mas eu já não conseguia mexer mais nada.

Logo os médicos já estavam mais confiantes na minha recuperação. Minha amiga cachaceira trouxe até mais flores secas quando soube.
Não tardou para meu ex-marido chegar dizendo.
– Você não vai morrer!
Minha amiga afastou as flores secas que trouxera, tirou uma mini pistola da canela e apontou a ele.
– Qual o seu problema? Já não causou caos suficiente?
Ele se virou pra ela e perguntou:
– Quem é você? O que sabe sobre nós?
– Alguém que sabe demais. Some!
Eu confesso que não lembro tudo que disse a ela naquele trago em seu bar, mas parece que disse tudo que estava há anos engasgado. Ela parecia não ter mais ninguém no mundo, vinha quase todo dia como uma guardiã.
Meu ex-marido era um Judas, não por ser infiel no casamento, mas por ser desleal na vida. Uma traição de corpo não é nada diante de uma traição da alma. Nossas ideologias foram se tornando cada vez mais incompatíveis. Ele tinha sede de poder, eu tinha sede de paz. Ele usou a mais perigosa das armas, a palavra!
Quando nosso país elegeu democraticamente, pela primeira vez, tal governo, ele se tornou ministro. Eu passei a ser perseguida pelos meus posicionamentos, acabei sendo demitida. Ele não mexeu uma palha, não fez nada, o covarde, e nesse instante eu tive a certeza de que ele não era mais o mesmo e talvez nunca tivesse sido quem eu acreditava. Pedi separação, parecia a coisa mais bizarra do mundo, toda família ficou contra, foi escândalo midiático inclusive na época. Quando me perguntaram numa reportagem as razões do divórcio eu prontamente disse:

– Uma humanista e um homem que se tornou fascista jamais darão certo.

Foi aí que meus filhos pararam de falar comigo. A errada era eu. Todos os dedos estavam apontados para mim. Até os amigos tinham suas pérolas estruturais que me alcançavam feito pedras. Todos pareciam cegos, ignorantes, defendendo um sistema absurdo que evidentemente gerou esse caos de hoje. Na época me senti como estou hoje, paralisada! Mas eu não parei, saí daquela bolha elitista e fui ver um país mais real.

Fundei uma ONG chamada Luta Educação Independência – LEI. Eu nunca quis ser professora, mas posso dizer que espalhei algumas escolas por esse país e uma delas foi a que estudou a minha atual advogada. Nossas escolas tinham o diferencial de ensinar a questionar. Nunca gostei de aluno mudo em sala. Nosso intuito era provocar.  Levamos conhecimento diferenciado e comida para quem não tinha nada. Eram conversas, trabalhos sobre filosofia, sociologia, história, política, economia, teatro, música, dança, literatura, arte e o ensino de 4 idiomas eram fundamentais. Muito diálogo, nenhuma prova. Foi um tempo feliz.

Mas, num mundo que se encaminha ao fascismo, o progresso será sempre boicotado. Logo fomos vistos como formadores de uma quadrilha perigosa, que planejava destruir o governo. Evidente que acredito que uma boa educação poderia de fato fazer isso, mas eles diziam que nós tínhamos armas. E as implantaram em nossas escolas. Foi então que viramos líderes perigosíssimos para o sistema.  Professores e alunos foram presos. A mim coube voltar a morar com meus filhos, ser a dona de casa que eu nunca fui. Não era uma escolha minha, era uma “prisão” escolhida por eles para evitar escândalos internacionais. Presa numa família com tendências fascista, num condomínio de luxo. Enlouquecer não era difícil, minha voz não era ouvida, ninguém ali queria saber das minhas ideias.

Depois de meses, fugi e desesperada, eu só queria mesmo cigarro e sexo, afinal o mundo já estava um caos. O que mais se poderia desejar?

Virar uma bruxa, é claro! Tomar uma surra de um bando de moleques, que se estivessem estudado numa das nossas escolas jamais teriam feito isso, e ficar em coma num quarto de hospital.

Deus existe? Não sei, mas toda vez que penso em Lilith me sinto melhor.

E agora eis que surge essa menina do nordeste me dando uma luz de esperança, me protegendo como se fosse uma filha nesse caos. Um senhora dona de um boteco e de uma coragem imensa, me protegendo como se fosse uma mãe. Duas estranhas. Duas estranhas!
Eu só queria um cigarro e um pouco de sexo, e talvez aquela casa no campo com minhas novas amigas e nada mais. E cachaça e flores secas, é claro.

Uma trilha para acompanhar até o próximo capítulo…

LEIA a primeira parte:

QUATRO DIAS PARA O FIM DO MUNDO (PARTE 1) – Melina Guterres/Mel Inquieta

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