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Preservar é preservar-se – e beneficiar-se disto!

por Fábio Müller

1.  A cidade é una, ainda que muitas, e passível de ser interpretada – bem como vivenciada – de diferentes pontos de vista, espacialidades e sentimentalidades.

Como fenômeno cultural – invenção maior de todos os tempos, nas palavras do arquiteto Paulo Mendes da Rocha – congrega, em si, o acúmulo da história, o tudo que fomos, somos e seremos! Faz-se dos nossos choros, risos, (in) felicidades e realizações, de antes e do presente, e do futuro.

Como artefato, resulta da engenhosidade e artisticidade humana, de racionalidade e expressividade tangível e intangível de nós mesmos, uma inigualável síntese coletiva das nossas (in) capacidades. Representa-nos, portanto, exatamente.

Cumpre a consciência da sua essencialidade vital, de sua riqueza imensurável, de sua beleza única rivalizando com a fealdade inerente ao contínuo processo. E a percepção de sua potência toda!

(Re) Conhecê-la é (re) conhecer-se.

 

  1. A cidade real contém a cidade ideal – coexistem, uma dentro e por cima da outra –, em relação dialética desde onde se medem todas as contradições, dificuldades e potencialidades de outrora, dos dias vivenciados e das eventuais aspirações comuns de vir a ser.

Entre preservar e desenvolver pode não existir exclusão, portanto, mas, apenas, a natural tensão das formulações democráticas até o acordo, resultando complementaridade, se houver o comunitário e participativo movimento em busca da cidade que queremos e podemos.

Para tal, importa que os ‘lados’, aparentemente, contraditórios e, mesmo, muitas vezes, em declarado conflito, compreendam isto e constituam processos de debate e ação participando de algumas poucas consonâncias, a saber:

– Conjuntos urbanos, espaços livres e edificações de valor patrimonial são marcos, testemunhos e representações, sentido e significado do que fomos e somos e, portanto, constituem, consciente ou inconscientemente, nossa memória e identidade; não que se deva congelar, fixar ou ‘museificar’ uma área ou cidade inteira a um determinado tempo histórico, mas cabe a compreensão que o ‘literal tombamento’ de muitos deles são sensíveis – e irreversíveis – perdas, com consequências na inexatidão de nós mesmos e afetam sentimentos de estima e pertencimento difíceis de serem reconstituídos, particular e coletivamente;

– Nem sempre é a excepcionalidade histórica, artística, técnica ou tecnológica de um ou outro bem que determina seu valor patrimonial e a relevância de sua preservação, mas, também, a representatividade para um grupo, comunidade ou sociedade, assim como o número e a vizinhança de testemunhos ‘menores’ em conformação conjuntural; compilação, análise e valoração especializada, canalizando impulsos coletivos populares, são essenciais para tal importante reconhecimento, para o que é imperativo fortalecer a política municipal de patrimônio e seu respectivo conselho com pessoal e estrutura compatível; ganham ambos os lados suplantando o empírico por algo de científico;

– A salvaguarda, a manutenção, a conservação e a divulgação desses bens em conjunto, sejam eles públicos ou privados, para além das razões já relacionadas, são potenciais dividendos turísticos à economia local pelo que se revestem de interesse à visitação e consumo cultural, movimentando ampla cadeia de pessoas e serviços, ao passo que aumentam a estima e a satisfação de ter algo significativo, representativo e valoroso para mostrar aos visitantes;

– Bens salvaguardados, recuperados à dinâmica cultural e social através de intervenções arquitetônicas e urbanísticas qualificadas, que estabeleçam diálogo positivo entre o novo e o antigo ao despertarem os valores dormentes na preexistência ao passo que criam novos, através da arquitetura contemporânea, resultam empreendimentos diferenciados que, pela excepcionalidade, incorporam valor multiplicado, com reconhecimento adjetivo por parte dos potenciais consumidores, beneficiando a cultura comunitária, embelezando a cidade e rentabilizando o investidor imobiliário acima da média.

 

  1. Escrevera Argan que “…todos os edifícios, sem exclusão de nenhum, são representativos e, com frequência, representam as malformações, as contradições, as vergonhas da comunidade”, para denunciar a negligência recorrente com a cidade e seu patrimônio edificado, quando não edificadas as consciências sociais com o devir sobre o lugar da vida comunitária por excelência, onde deveria graçar ‘a boa vida e segurança’, como mencionara Aristóteles.

Em todos os pronunciados tempos históricos dominou uma consciência sobre a importância da cidade entre seus governantes, classes dominantes, intelectuais, artistas, projetistas e construtores, pois os investimentos nos edifícios e nos espaços livres da cidade significava edificar a si mesmo, representando-se na medida que se queria ver reconhecido, a cidade como símbolo e status pessoal e coletivo das capacidades econômicas, políticas e sociais.

Assim fora na Florença tornada caput mundi pelas famílias locais no século XV, e apenas para ficar com o Renascimento como exemplo, também na Roma papal do século XVI, na forma das inúmeras obras de saneamento da cidade medieval pálida do áureo passado, na forma da nova São Pedro e nos vários edifícios recuperados, reformados e devolvidos à dinâmica urbana, então.

  1. Vale – e cabe – exaltar e clamar por espírito similar, orquestrando todos os níveis de inferência e agentes envolvidos na Santa Maria de hoje em prol de uma urbs melhor – nunca ideal, reconheça-se – o que passa pelo firme reconhecimento, preservação e potencialização de seu patrimônio.

Incentivos financeiros como redução, ou mesmo, isenção de impostos municipais para edificações patrimoniais, assim como fundos subsidiários para investimentos nesses bens, sejam eles públicos ou privados, são mecanismos eficientes, já comprovados em experiências nacionais e internacionais.

Intervenções arquitetônicas respeitosas e sensíveis no patrimônio são a comprovação e a esperança de que esse é um caminho profícuo quando há consciência cidadã de constituir a cidade de agora, como legado para o amanhã, pelo poder público, proprietários e investidores: veja-se, em Santa Maria, o que, mesmo timidamente, ocorre no centro histórico há cerca de uma década: o supermercado Carrefour, na antiga escola Hugo Taylor, os passeios públicos, iluminação e pintura das casas da Vila Belga, o SICREDI, o Growler, o Tabelionato e o Hotel San Rafael na Avenida Rio Branco, e as Lojas Markant, Americanas e, muito especialmente, para curto prazo, o Cristo Rei, da Construtora Jobim, na antiga Sulbra, na Rua do Acampamento.

Preservar é preservar-se – e há claros benefícios, para todos e em todos os sentidos, com isto!

coluna mensal

 

Fábio Müller (Carazinho, 1974). Arquiteto e Urbanista pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM (1999). Mestre (2005) e Doutor (2011) em Arquitetura pelo PROPAR/UFRGS na área de Teoria, História e Crítica. Professor e Coordenador do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSM, campus Santa Maria. Foi Vice-Presidente e Presidente do IPLAN – Autarquia de Planejamento Urbano de Santa Maria, entre 2010 e 2012. Atualmente, é Conselheiro Estadual do CAU/RS, presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural de Santa Maria e integra a diretoria executiva nacional da Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura – ABEA (2020/2021).
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