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QUE MULHER VALENTE! por ROGER BAIGORRA MACHADO.

Uma crônica de Roger Baigorra Machado

Minha avó faleceu aos 93 anos. Nesses dias de tantas partidas, volta e meia eu me pego pensando nela. É que eu nunca lhe disse que desde adolescente, na minha imaginação, eu tinha lhe dado uma canção.

Um grande pedaço da vida da minha avó foi vivido no interior, na zona rural de Uruguaiana. Quando criança, cresceu no fundo dos campos do Plano Alto, viveu em casas antigas de pedra e barro e num mundo de pessoas que eu não conheci.

Um mundo que só ouvi falar. Quando adulta, minha avó viveu nas rotinas rurais de uma mulher casada, morou em lugares como o Passo da Cruz e a Barra do Quaraí. Trabalhou em Estâncias centenárias, lugares como a “Santa Adelaide”, a “Estância Progresso” e “Estância Floresta”. Sempre acompanhando seu marido, meu avô Delmar Baigorra, um domador e capataz de estância.

Minha avó nasceu em Corrientes e recebeu o nome de Maria. Era uma mulher de estatura pequena e de valentia tamanho grande, no rosto os traços indígenas emolduravam um olhar suave, no corpo pequeno ela carregava uma alma gigante e forte, uma alma valente, como carregam boa parte das mulheres descendentes indígenas.

Minha avó faleceu aos 93 anos. Nesses dias de tantas partidas, volta e meia eu me pego pensando nela. É que eu nunca lhe disse que desde adolescente, na minha imaginação, eu tinha lhe dado uma canção.

Sim. Existem pessoas que eu associo à músicas e ao fazer isso, tornam-se donas das canções. Minha avó tinha uma canção que é e será sempre dela. E fazia tempo que eu não ouvia a “música da minha avó”. Não é que ontem ela tocou numa rádio.

Onde quer que eu esteja, eu certamente pensarei na Maria sempre que a música dela tocar. É automático, não controlo, vejo a vida da minha avó numa letra de música.

E a música que eu dei para minha avó se chama “Campesina”.

Ela foi composta pelo Chico Saratt e ficou tatuada nos meus tímpanos com a voz do saudoso Mário Barbará. Música de “Califórnia da Canção Nativa”, música sobre pessoas, canção que narra a vida que nem sempre é percebida.

Na letra de “Campesina” está a descrição da vida de uma mulher rural em seu pequeno grande mundo e, para mim, a descrição de um pedaço da vida da minha avó. A divisão social do trabalho que se impôs no campo é exposta sem dramas ou coreografias tradicionalistas. A vida campesina que minha avó viveu (e que tantas outras mulheres ainda vivem) era quase uma servidão voluntária, um eterno retorno ao mesmo e cansativo universo.

“Campesina” é uma canção sobre a importância do trabalho das mulheres no desenvolvimento da vida de todos nós que descendemos de mulheres do campo, seja aqui na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, seja em outra parte qualquer do mundo.

Em tempos onde a violência contra as mulheres só cresce, onde o machismo está presente em quase tudo, essa canção sempre me surge poderosa. Ontem, ela me apareceu no meio de ruídos de estática, tocando baixinho numa rádio AM, enquanto a BR-472 me levava.

A vida no campo não é tão romântica. É uma relação de trabalho que nem sempre é leal, que nem sempre se faz generosa, onde muitas vezes, é apenas injusta e opressora. Meu avô foi um homem do campo e lidou com a vida na lógica da sobrevivência rural, foi tropeiro, peão, capataz, dono de bolicho. Foi de um tudo, mas só o foi, pois tinha ao seu lado minha avó, uma campesina. Por isso a canção do Chico Saratt me provoca as memórias afetivas, às vezes enfraquecidas, assim como a voz do Barbará no chiado de uma rádio AM.

“Levantar-se a tempo de acordar o sol” é acordar de madrugada, na escuridão que precede o dia, a regra que se impõe à vida rural, sem feriados, sem domingos. Na música, o ritmo antes do sol é arrebatador, “preparar a erva para o chimarrão, leite para os guachos, roupa no varal, água na cacimba e varrer o chão.”.

Uma solitária rotina que preenche os dias de cansaço e é experimentada, muitas vezes, em solidão, diante de um mundo onde as mulheres são subalternizadas enquanto, curiosamente, são o centro de tudo. Em “Campesina” a rotina rural da vida feminina nunca diminui o ritmo:

“Bate a roupa, torce o corpo, enreda o campo”. Nessa parte eu sempre penso na minha avó e imagino ela, caminhando numa trilha, levando as roupas numa bacia pelo meio do campo, uns filhos na frente, outros atrás. Agachada na beira do rio Quarai ou de alguma sanga, debaixo do sol estonteante, lavando e as roupas batendo num som de estalo seco. Vejo sempre ela quarando as roupas sobre as pedras quentes.

A vida campesina para uma mulher é um trem em disparada: “Bebe o sonho, esfrega a vida, enxuga o tempo.” Quando adolescente eu ficava repetindo essas frases rapidamente até ter a impressão do som de uma locomotiva: “Bebe o sonho, esfrega a vida, enxuga o tempo.” Era assim que eu pensava minha avó Maria, uma locomotiva, a força que empurrava nossa família.

Da primeira vez em que ouvi “Campesina”, eu me lembro bem, foi num disco de vinil de uma tia, a agulha pulando num pequeno arranhão, olhei para a Maria, e a minha avó estava sentada fumando um pito e tomando mate, tranquila, velha e valente. A fumaça do cigarro subindo lenta contra a luz do sol que entrava pela janela. Desde então, a música e a imagem da minha avó se fundiram na minha imaginação.

A campesina bebe o sonho num mate amargo, o momento em que a imaginação sai da lida da estância e sonha livre no chiado do chimarrão. O corpo descansando e a vida passada a limpo, esfregada sobre as pedras do tempo. Acontece que no campo o tempo é enxuto para se pensar nessas coisas, na canção tudo volta de novo e com toda força.

“Forja o riso, enrola os sonhos, esfrega os olhos, torce a vida, bate o medo, esfola as mãos”. O riso numa vida cansativa é um trabalho de forja, de modelação, de aprender a tirar graça de onde não parece ter nada de bom. Os sonhos enrolados numa massa de pão, misturados, crescendo. Sempre um novo trabalho que faz esfregar o suor salgado nos olhos. De novo a roupa torcida, de novo o rio no meio da vida. Numa hora bate o medo. E se o marido não voltar da doma? E se ele cair do cavalo e morrer? E ela e os filhos o quê farão? Como viverão? Bate a roupa e o medo, nas pedras do rio, ela esfola as mãos.

De repente, um momento de tranquilidade, ele voltou: Ao meio dia “a comida quente para o seu peão”. Vejo minha avó e meu avô, juntos, companheiros. E o medo se dissipa no meio da rotina, a presença do marido faz da família a segurança de uma mulher cansada. “Que mulher valente!”, “Buena companheira!” que assume a vida dela, cuida da casa, dos bichos, da vida do marido e dos filhos, tudo sem se perceber como o eixo que sustenta as vidas ao seu redor: “suas mãos são asas, seu olhar me guarda, me repara a casa e me enfeita a cama”. O refrão é a voz de um homem em sua versão das coisas, sempre pensei que podia ser a campesina, dando um grito e mandando todo mundo se virar, “vão lavar a própria roupa!”. Mas não, até nisso a canção é forte. A mulher sempre precisando ser “validada” pelo juízo de valor de um homem.

Na canção o intervalo é sempre curto e a vida rural é de novo a locomotiva empurrando tudo: “Atiçar o fogo para fazer o pão. Milho para os pintos, depois semear. E mexer o tacho e socar pilão. E a gurizada para reparar”.

Minha “Avó Maria” teve 14 filhos para “reparar”. “Reparar” é de uma leviandade masculina e de um machismo  nojentos, hoje eu percebo. Atualmente, nós homens dividimos as atividades de “reparar” a gurizada, “reparar” os filhos não é fácil, e sabemos o quão cansativo é: Limpar, cuidar, educar, alimentar, ensinar, banhar, corrigir e, sempre, sempre se preocupa.

Não bastasse toda a lida ao redor da casa, a campesina é uma mãe que passa a maior parte do tempo sozinha. Hoje eu percebo que a lógica campesina cruzou as porteiras. As mulheres urbanas, todas, também, são campesinas modernas e sobrecarregadas com o excesso da vida.

No fim, “nada mais lhe cabe em seu pequeno mundo” é o que nos afirma a canção. Mas o mundo da mulher campeira nunca foi pequeno, ele sempre foi um lugar grandioso e de resistência, e tanto caberia mais coisas que foi oprimido pela lógica da produção imposta no campo e pelo mundo machista do gaúcho.

A minha avó era uma campesina, mulher que do alto da sua pequena estatura fez brotar no seu “pequeno mundo” uma grandiosa mulher, que permanece nas histórias da sua vida e nas vidas que criou, os filhos, filhas, netos, bisnetos, tataranetos. Na foto, uma imagem que me acalanta, as mãos dela entrelaçadas nas minhas numa tarde de Natal. Minha vida nas linhas das suas mãos, nas minhas mãos as saudades tuas Vó Maria, minha eterna campesina.

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana.É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.

 

 

 

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