por Boca Migotto
Estive afastado da Rede Sina nas últimas semanas. Acredito, no entanto, que o motivo era nobre. Estava precisando revisar o texto final para a publicação do meu próximo livro, “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre”. Sou um tanto disléxico, então, em determinados projetos, se não mergulho de cabeça, o processo não anda. Nesse caso, além do prazo curto, de outros projetos paralelos que não poderiam parar de forma alguma e das coisas da vida – namorar, brincar com o Arthur, ler, ir ao cinema, cozinhar, comer, dormir, arrumar a casa e lavar a roupa – precisei abrir mão dos textos quinzenais. Mas agora estou de volta e, uma vez que passei tanto tempo ausente por conta do livro, nada mais justo que retomar a coluna falando sobre ele.
A ideia é publicar o texto há tempo de lançá-lo no Festival de Cinema de Gramado que, este ano, comemorará meio século de vida e, obviamente, foi o evento que mais impulsionou o cinema gaúcho a partir, principalmente, dos anos 1980. Acho que vai dar certo, embora ainda falte bastante coisa para fazer até o livro chegar, definitivamente, às minhas – e suas, espero que o comprem – mãos. Adaptado da minha tese de doutorado, o livro terá aproximadamente 500 páginas através das quais abordarei uma parte da história do cinema gaúcho. No caso, inicio o recorte – sim, porque o cinema gaúcho, obviamente, é muito maior que o recorte do meu livro – com a realização do icônico “Deu pra ti anos 70”, de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti, passo pela criação da Casa de Cinema de Porto Alegre, pela geração dos anos 1990 que, parte dela, vai formar a Clube Silêncio, e fecho com aquela que eu batizei, na minha pesquisa, de “Novíssima geração”. São aproximadamente 40 anos de história que eu pesquisei através da leitura de livros, artigos – acadêmicos ou não –, análise de arquivos e, principalmente, entrevistas realizadas com mais de 50 profissionais, críticos, teóricos e historiadores do cinema gaúcho. Estas entrevistas, inclusive, também deram luz a um documentário longa-metragem, homônimo ao livro, o qual será lançado no ano que vem.
Desde que ingressei no PPGCOM da UFRGS, o processo todo durou mais de quatro anos, sob orientação da professora Miriam Rossini, além de um “doutorado-sanduíche” de um ano na Sorbonne-Nouvelle, em Paris. No entanto, ainda mais que isso, há quase uma vida por trás dessa pesquisa. Isso porque, de alguma forma, ela nasceu na minha adolescência, quando escutava a rádio Ipanema FM no quarto da minha casa, em Carlos Barbosa, passou pela minha mudança para Porto Alegre, pelas minhas experiências profissionais, pelo meu mestrado sobre a Casa de Cinema, pela realização do “Filme sobre um Bom Fim”, pelo meu período como professor e pela própria pesquisa no doutorado. Por isso, mais do que abordar a história do cinema gaúcho através do recorte especificado acima, também falo da relação deste cinema com o Rio Grande do Sul, com a cidade de Porto Alegre, com a própria história do cinema e, ainda, com a minha vida pessoal e profissional. As fronteiras – conceito que trago para pensar esse cinema – estão presentes em suas mais variadas possibilidades: fronteiras geográficas, fronteiras políticas, fronteiras tecnológicas, fronteiras narrativas, fronteiras realizador/pesquisador, fronteiras abertas da América Latina.
Da tese – ou seja, do texto entregue à UFRGS – para o livro que estou prestes a publicar, a tentativa foi de desconstruir, um pouco, também a fronteira acadêmica. Para isso, busquei simplificar a linguagem utilizada na tese para um texto mais leve, sem que isso prejudicasse, no entanto, o aprofundamento das questões importantes por trás da mesma. Nisso, de alguma forma, talvez até me aproxime da própria história do audiovisual produzido no Rio Grande do Sul pois, historicamente, o cinema gaúcho (quase) sempre se preocupou mais em atingir público e, na medida do possível, estruturar um mercado cinematográfico, do que experimentar novas abordagens narrativas. Para isso, portanto, a relação do nosso cinema, inclusive daquele que surge a partir do “Deu pra ti anos 70”, no início dos anos 1980, está bem mais próxima da linguagem do chamado cinema clássico de Hollywood do que com os cinemas “desconstrutivos” como, principalmente, a Nouvelle Vague francesa.
Nesse sentido, quando propus a minha pesquisa, lá no final de 2017, a hipótese inicial estava calcada da percepção de que uma desconstrução da linguagem clássica do cinema – em longas-metragens, claro –, no Rio Grande do Sul, teria ocorrido apenas no início dos anos 1990, através de projetos realizados pelos sócios de uma produtora chamada Clube Silêncio.
Na minha percepção, Gustavo Spolidoro, Fabiano de Souza e Gilson Vargas – o quarto sócio era o montador, Milton do Prado – seriam os primeiros cineastas gaúchos a proporem longas-metragens que fugissem, minimamente que fosse, da linguagem clássica em nome de realizarem filmes os quais, justamente, tensionassem as fronteiras narrativas da sétima arte em solo gaúcho. Portanto, no âmbito acadêmico, a Clube Silêncio foi meu “objeto de estudo”. No livro, isso foi propositadamente um tanto dissolvido em nome de uma obra que abrangesse esses 40 anos de história de uma forma mais equilibrada mas, mesmo assim, segue lá, pois sua importância para o “novo cinema gaúcho”, direta ou indiretamente, é fundamental.
A Clube Silêncio durou poucos anos e realizou, inteiramente seu, apenas um único filme; o plano-sequência de Gustavo Spolidoro, “Ainda Orangotangos”. Mesmo assim, teria influenciado a geração seguinte que, através de nomes como Davi Pretto, Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, além da Cristiane Oliveira – que, embora mais jovem, está ligada à geração da Clube Silêncio – realizadores(a) os quais, pela primeira vez na história do cinema gaúcho, teriam emplacado longas-metragens em festivais internacionais importantes a partir de obras um tanto quanto desvinculadas da essência do que seria a linguagem clássica hollywoodiana. Ou seja, se antes da Clube Silêncio nós, gaúchos, trabalhávamos em função de um público o qual, nem sempre, dava o retorno esperado e, também por isso, nossos filmes não chamavam a atenção dos principais festivais internacionais – e até brasileiros –, após a curta experiência da Clube surgiram novos realizadores(as) que se preocuparam em propor diferentes abordagens narrativas para este mesmo cinema gaúcho.
Todo esse movimento, obviamente, é carregado de inúmeras nuances. Detalhes, exceções, contradições e ironias que têm relação, também, com questões socioculturais inerentes à história do Rio Grande do Sul e da capital, Porto Alegre. Para compreender isso melhor, a primeira coisa que fiz foi resgatar os estudos da historiadora – infelizmente falecida em 2009 – Sandra Pesavento.
A partir desse resgate, surgiram inúmeras outras percepções sobre questões inerentes a nós, gaúchos. Algumas delas, inclusive, já compartilhadas em textos meus publicados anteriormente aqui na Rede Sina. Nesse estudo, salta aos olhos a necessidade histórica de Porto Alegre se constituir como uma cidade moderna, vitrine de um estado que pretendia conquistar mais relevância no cenário nacional, embora seguisse arraigada às tradições conservadoras oriunda da sua elite essencialmente rural. Foi nesse sentido, inclusive, que ganhou forma a importância do Positivismo, do francês Augusto Comte, para o projeto do Partido Republicano de Borges de Medeiros e, principalmente, Júlio de Castilhos. “Conservar melhorando” era o lema que eles propunham e, de certa forma, é o que define a política, economia e cultura do Rio Grande do Sul desde então. Assim, embora a elite gaúcha, ligada ao campo, pretendesse se mostrar contemporânea aos principais centros urbanos do mundo através de uma capital “moderna”, ao mesmo tempo, pretendia fazer isso sem perder seus históricos privilégios obtidos ainda nas primeiras décadas do Brasil Império. A ideia era transformar Porto Alegre em uma espécie de vitrine para exibir o sucesso financeiro e cultural de uma elite gaúcha ligada ao que havia de mais conservador, ao mesmo tempo que pudesse consumir uma cidade minimamente parecida com as grandes metrópoles europeias onde passava suas férias. Obviamente, por várias motivos, isso não deu muito certo.
O mais significativo, talvez, seja perceber que o projeto urbanístico da capital gaúcha, inspirado na Paris projetada por Georges-Heugène Haussmann, no final do século XIX, o qual foi replicado, em maior ou menor sucesso, em cidades como Nova Iorque, Rio de Janeiro e Buenos Aires, não aconteceu em Porto Alegre pois, aqui, os recursos eram bem mais limitados que nessas cidades acima citadas. Isso, por consequência, contribuiu para com um sentimento de frustração dos porto-alegrenses para com sua cidade o qual, A) associado ao conceito de “complexo de vira-lata”, típico de países colonizados e, B) uma histórica dor-de-cotovelo, pois o Rio Grande do Sul apenas era lembrado, na corte, quando era preciso guarnecer as fronteiras das investidas “Hermanas”, acabou por definir uma característica local que nos acompanha até hoje. Desde então, nos dividimos entre aqueles que exaltam a capital e aqueles que à diminuem, conforme o andar da conversa, ao mesmo tempo que, (quase) sempre, aguardamos ansiosamente a opinião otimista de algum estrangeiro de plantão para respaldar nossas virtudes e, assim, melhorar nossa autoestima (quase) sempre lá embaixo, nos cascos dos cavalos. Mesmo que o nosso hino rio-grandense tente convencer o mundo do contrário. O estrangeiro, Albert Camus, que o diga.
Já a relação do cinema do pós-anos 1970 com essa frustração porto-alegrense se dá porque foi justamente o “Deu pra ti anos 70” que conseguiu captar esse desejo urbano da cidade – e seus habitantes – e construir, a partir da sua abordagem sobre uma Porto Alegre “moderna”, um imaginário que a aproximava dos “novos tempos”.
Para a juventude gaúcha – mas, principalmente, porto-alegrense – da época, finalmente se reconhecer na tela do cinema através de um filme que mostrava jovens em um espaço urbano, movimentado, em detrimento ao campo, foi algo inédito e revigorante. É claro que é preciso levar em conta, aqui, o momento histórico do surgimento do “Deu pra ti anos 70”, que se deu justamente quando estávamos começando a reconquistar a democracia, com a campanha das Diretas Já e, associado, também, às consequências de um planeta que, pós-Segunda Guerra Mundial, passava a apostar no liberalismo econômico e, assim, na queda das fronteiras internacionais em nome daquilo que viria a ser conhecido por Globalização. Não é por acaso que o jornalista e pesquisador, Juremir Machado, em seu livro “A miséria do cotidiano”, fruto da sua dissertação de mestrado primeiramente recusada na UFRGS, mas que num segundo momento contou com a orientação de um dos grande pensadores franceses contemporâneos, Michel Mafessoli, defendeu que o bairro Bom Fim, em Porto Alegre, seria “o portão de entrada da pós-Modernidade no Rio Grande do Sul”. Tudo isso precisa ser levado em conta ao pensarmos o nascimento desse novo cinema gaúcho produzido, basicamente, por realizadores(as) fixados na capital. Também não é por acaso, portanto, que a história do bairro Bom Fim dos anos 1980 – resgatada (também) por mim através do documentário “Filme sobre um Bom Fim” – é o pano de fundo desse movimento urbano porto-alegrense o qual, ao meu ver, representa o maior movimento cultural jovem do sul do Brasil.
O sucesso disso que, no seu principio, era quase como um passatempo de alguns jovens da classe-média porto-alegrense que estudavam, basicamente, nas faculdades de Comunicação e tinham pretensões artísticas, acabou abrindo as portas para aquilo que, logo mais, acabou por também se configurar como o melhor período da cinematografia gaúcha. Outras questões, claro, fazem parte desse período: 1) As administrações petistas na Porto Alegre dos anos 1990, que investiram fortemente nas coisas da cultura, 2) as novas tecnologias, que surgiram a partir dos anos 2000, com o advento do digital, 3) a democratização da produção audiovisual, que permitiria, inclusive, a abertura de faculdades de cinema em algumas universidades da grande Porto Alegre e, assim, qualificou a produção local, 4) o intercâmbio internacional, intensificado por essa mesma tecnologia associada, ainda, 5) ao desenvolvimento da internet no período, 6) o inédito investimento da RBS TV na produção audiovisual do Rio Grande do Sul ao longo de mais de uma década, até 2013 e, ainda, 7) o investimento do governo federal em todo o setor audiovisual, associado a uma nova legislação minimante voltada para o cinema nacional, algo que, certamente, repercutiu também no Rio Grande do Sul.
Conceitualmente, é desse cenário que nasceu a experiência da Clube Silêncio, no início dos anos 2000 e, a partir dela, direta ou indiretamente, o surgimento de uma proposta narrativa menos clássica que também vai reconfigurar a relação da produção audiovisual porto-alegrense com a forma como a própria cidade será retratada pelo próprio cinema. Isso porque, se para a geração que realizou “Deu pra ti anos 70” a busca era por retratar uma cidade cosmopolita, em sintonia com as principais metrópoles do mundo – algo tão aguardado por gerações de porto-alegrenses –, nos anos 2000 isso sofreu um ponto de virada quando Beto Brant e Renato Ciasca – dois “estrangeiros” de São Paulo – vieram para Porto Alegre realizar, em coprodução com a mesma Clube Silêncio, o longa-metragem “Cão sem dono”. Nesse filme, adaptado da obra do escritor paulista radicado em Porto Alegre, Daniel Galera, a cidade já é percebida como um lugar hostil, injusto, sem oportunidades e, de certa forma, até opressor.
Dessa forma, se “Cão sem dono” inaugurou esse novo olhar sobre Porto Alegre, o qual será uma tendência praticada por outros cineastas a partir de então, “Ainda orangotangos”, realizado – e dirigido por Gustavo Spolidoro – logo depois, parece enterrar definitivamente a tendência do cinema porto-alegrense em exaltar a cidade transloucada, libertina e progressiva que existiu ao longo da década de 1990 e primeiros anos do novo século. Assim, Brant e Ciasca inauguram um ciclo que é encerrado, logo depois, por Spolidoro. Essa cidade – e esse tempo – retratada em “Ainda orangotangos”, que é de 2007, ao meu ver, morreu ainda em 2005, quando ocorreu o último Fórum Social Mundial na capital – aquele que reuniu mais de 150 mil pessoas para discutir “um novo mundo possível – e o início da administração de José Fogaça que, por sua vez, inaugurou uma sequência de quatro mandatos – até agora – de prefeituras administradas por partidos de direita.
Assim, encerrado mais esse ciclo, que também antecipou o fim da própria Clube Silêncio, vemos Fabiano de Souza sair da capital para realizar uma viagem à praia através do seu primeiro longa-metragem, “A última estrada da praia”, Gilson Vargas ir ainda mais longe, em busca de um resgate com a paisagem da fronteira sul do estado através do seu “Dromedário no asfalto” e o próprio Spolidoro, ressacado pela loucura que foi realizar um longa em plano-sequência, se isolar na pequena Cotiporã, na Serra Gaúcha, para realizar o intimista “Morro do céu”. Ironicamente – não falei que o cinema gaúcho é cheio de ironias? – os três ex-sócios da Clube Silêncio, cada um a sua maneira, deixam Porto Alegre em direções opostas: litoral, fronteira e serra.
Esse movimento de fuga da capital vai, consequentemente, inaugurar duas tendências do cinema gaúcho de Porto Alegre desde então: 1) de um lado, realizadores que filmam Porto Alegre como uma cidade preconceituosa, opressora e conservadora, através de filmes densos e obscuros como “Castanha”, de Davi Pretto, “Desvios”, de Pedro Guindani e “Tinta bruta”, de Marcio Reolon e Filipe Matzembacher ou, 2) por outro lado, filmes que seguiram a tendência inaugurada pelos realizadores da Clube Silêncio e deixaram a capital para realizarem filmes como “Rifle”, de Davi Pretto, “Beira mar”, de Marcio Reolon e Filipe Matzembacher e, principalmente, “Mulher do pai”, de Cristiane Oliveira. Destes últimos, dois são cruciais pois, além de tudo, também resgatam o diálogo da capital com o universo da fronteira/pampa o qual era o cenário preferido das produções gaúchas ligadas ao chamado cinema de “bombacha e chimarrão” – cujo principal expoente foi Teixeirinha – e foi interrompido com a realização de “Deu pra ti ano 70”, ocorrido há exatos 35 anos da realização de “Rifle” e “Mulher do pai”. Novamente, aqui também as nuances são inúmeras e apenas podem ser discutidas, minimamente, através de um obra mais extensa, o que ajuda a explicar as mais de 500 páginas do livro e 110 minutos do documentário.
Por tudo isso, espero, esteja valendo a pena o trabalho que essa pesquisa vem me dando já há bastante tempo. A minha intenção em publicá-la na versão livro, mais acessível ao público em geral, é também por poder discutir tudo isso e, dessa forma, tentar contribuir com a história do audiovisual gaúcho. No entanto, este não será um livro apenas sobre cinema. Será, também, um livro sobre Porto Alegre, sobre o Rio Grande do Sul, sobre o Brasil e sobre a América Latina. Muita coisa? Pode ser, mas neste livro coube, até, um pouco sobre a França e, resumidamente, até sobre a própria História do Cinema Mundial. Afinal, o cinema não tem pátria, não tem fronteiras. E o cinema gaúcho não paira no ar, isolado de um todo que o cerca e o complementa. Por isso, este livro pretende também discutir as inúmeras fronteiras que nos apartam, mas que também nos unem. Nesse sentido, este livro é, também, um pouco sobre o pesquisador, que também é realizador (e um pouco escritor), Boca Migotto. No final, então, já não será mais uma tese acadêmica, não será apenas sobre cinema e também não será uma autobiografia, mas será um pouco de tudo isso e, justamente por tudo isso, espero, que seja revelador sobre o quão é complexo esse “certo cinema gaúcho, de Porto Alegre”. O qual, por sua vez, também desnuda nossa própria capital, e a nós mesmos, como só a arte tem condições de fazer.
I. BOCA MIGOTTO
Importante resgate! Curiosa para ler o livro! Sucesso!!!