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A CADELA ROUBADA E A ILHA DE ARROZ por ROGER BAIGORRA MACHADO.

Eu gosto de ouvir rádio.

É que o rádio tem uma coisa que me atrai, acho que é sua dubiedade. Ao mesmo tempo em que é um espaço plural e de abertura, também é um lugar de fechamento e individualidade.

Podemos encontrar nas rádios muito do que caracteriza uma determinada comunidade.  No rádio ficamos sabendo dos problemas que uma população enfrenta, dos avanços, dos retrocessos, ficamos sabendo até quando um determinado tema é escondido, já que os radialistas se negam em tratar dele.

O silêncio que as rádios fazem sobre políticos que são cassados, crimes cometidos por pessoas da “alta sociedade” e tantas outras coisas, diz tanto quanto um grande discurso. As rádios e suas programações demonstram como uma comunidade pensa, como seus moradores vivem e como grupos dominantes, na economia ou na política, se protegem no silêncio dos microfones. 

Guardadas as devidas proporções, ouvir uma emissora de rádio é tipo aquela coisa do “zeitgeist”. Não sabe do que estou falando?  Bem, o Zeitgeist é uma palavra alemã que significa algo como o “espírito do tempo”. O Hegel, filósofo alemão, idealizava que o zeitgeist compreenderia todas as características que dão identidade para uma sociedade num determinado momento histórico.

No zeitgeist está o espírito de um povo num recorte temporal. 

Dia desses, no caminho para o trabalho, como de costume, eu ouvia uma rádio aqui de Uruguaiana e eu acho que descobri um pedaço do zeitgeist da minha cidade.

E lá estava eu, dirigindo na BR-472 vazia com a voz grave e envelhecida do radialista que falava sobre as ilhas de Uruguaiana. Hein! Ilha em Uruguaiana? Você deve estar se perguntando. Sim. As ilhas que existem no Rio Uruguai. 

Se você não sabia, ocorre que na longa extensão do Rio Uruguai existem várias ilhas, algumas grandes, outras pequenas, umas do lado argentino e outras do lado brasileiro e uruguaio.

Quando vou com o meu caiaque para o rio, de quando em quando eu me atrevo a ir numa delas, a ida é tranquila, a correnteza leva, na volta é que a coisa fica séria. Noutra ilha, a ida é contra a correnteza e a volta é que se faz tranquila. E as ilhas vão surgindo ao longo do rio, ora para um lado da fronteira, ora para outro. A ilha do Pacu, por exemplo, onde o caminho de ida é ao sabor da correnteza, ao menos até onde sei, fica do lado argentino.

Pois não é que o radialista falava exatamente desta ilha. A ilha do Pacu. Perguntava-se se ela era parte do território da Argentina ou era parte do território do Brasil. E eis que de repente o locutor se  lembrou de uma história antiga, coisa pitoresca e que envolveu um presidente, uma cadela, um agricultor e uma das ilhas do bravo Rio Uruguai.

Dizia o radialista que nos idos dos anos 60, um produtor rural aqui de Uruguaiana tinha planos ambiciosos. Ele queria plantar arroz, queria plantar uma lavoura de arroz. Sabe onde? Numa das ilhas do Rio Uruguai. Ao que parece, a ilha em que ele queria plantar era composta por alguns bons hectares de terra muito fértil e, além disso, como ilha que era, estava banhada pelo rio e jamais teria problema com irrigação. Uma ilha de arroz no meio do rio. Seria possível?

Ao buscar informações sobre o lugar, o agricultor uruguaianense tentou saber se a ilha estava do lado argentino ou brasileiro, afinal, se estivesse com os correntinos, a ideia da ilha de arroz se encerrava antes mesmo de iniciar. E eis que agricultor descobriu que a ilha não era argentina, ela estava do lado brasileiro. O problema é que a ilha tinha dono. Ela era um território federal, logo, pertencia ao povo brasileiro. 

Como plantar então? Não seria possível consultar cada cidadão brasileiro sobre o plantio. Diante disso, restaria esperar e tentar dialogar com o representante do povo: o presidente do Brasil. Certo dia, esse produtor soube que o presidente João Goulart, o Jango, viria ao Rio Grande do Sul e estaria por alguns dias na cidade de São Borja. Pronto! Era a chance que ele precisava. Tão logo o avião presidencial chegou na Fronteira Oeste, de pronto o agricultor uruguaianense tomou o rumo do nascer do sol e foi falar com o presidente para solicitar a autorização para plantar na ilha.

Chegando em São Borja, o agricultor rumou para a fazenda onde Jango estava hospedado. Ao chegar na estância, o produtor rural foi avisado que o presidente estava no galpão perto da casa grande. No caminho até onde o presidente se encontrava, o agricultor viu um lindo filhote de cachorro correndo pelo gramado, entrando no galpão viu uma cadela com vários filhotes, deitada num canto sobre um pelego. Todos os filhotes eram bonitos e a cadela era um animal magnífico, coisas que prontamente chamaram a atenção do uruguaianense.

Depois de ser apresentado ao presidente do país, o produtor uruguaianense, sem muitos rodeios, demonstrou a que veio e fez logo quatro pedidos:

Primeiro, e não era sem tempo, foi direto ao assunto, disse que queria plantar arroz numa das ilhas do Rio Uruguai. O presidente havia acabado de encher o primeiro mate. O agricultor explicou cada detalhe de sua mirabolante ideia. Indicou qual seria a ilha, salientou que sua localização era em território nacional, falou dos hectares produtivos que lá estavam sem uso, vangloriou-se da questão hídrica. Enfim, antes mesmo do chiar da cuia do primeiro mate, seu projeto já estava explicado para o Jango.

Depois, aproveitando aquele momento único, disse para o presidente que ao se deslocar até São Borja, havia trazido de Uruguaiana um amigo repórter e, se não fosse incômodo, gostaria de saber se o presidente poderia conceder uma entrevista para o jornalista. Afinal, aquele era um momento único para o jornalismo uruguaianense.

Antes mesmo da resposta aos dois primeiros pedidos, o agricultor já emendou um terceiro: Quando da sua chegada na estância, soube que um avião partiria de São Borja para Uruguaiana no meio da tarde. E que, como era sabido por todos, as distâncias entre as cidades fronteiriças não são pouca coisa e as estradas são ruins, queria saber ser era possível que o presidente lhe desse uma carona de retorno para Uruguaiana.

Por fim, deu uma olhada para um dos cantos do galpão, onde a cadela estava deitada, pegou um dos filhotes no colo, o mais bonito, uma cadelinha gordinha e peluda e, entre uma mordida e outra que o animal lhe dava nos dedos, sorriu e pediu um dos filhotes.

No momento exato em que entrei no Campus da universidade, o radialista, fez uma breve pausa. Respirou um pouco e com a voz em tom divertido, seguiu a história. 

Contou que o presidente, depois de ouvir os quatro pedidos, acomodou-se melhor no mochinho em que estava sentado, encheu a cuia do mate e iniciou as respostas. Em relação ao plantio de arroz numa ilha no meio do Rio Uruguai, dado todos os argumentos apresentados, entendia que não haveria problemas. O que prontamente despertou um sorriso no agricultor uruguaianense e seu amigo jornalista. Ainda complementou Jango que, por sinal, como se tratava de uma ilha, ele até nomearia o produtor rural como o “governador da ilha”. 

Imaginem só. Além de ter a autorização para plantar arroz numa ilha federal, o uruguaianense ainda seria o “Governador da ilha”!

Depois, sobre o segundo pedido, Jango disse que daria a entrevista, sem problemas, contanto que fosse antes do almoço, pois após ele iria dar uma sesteada.

Sobre o terceiro pedido, em relação ao avião, disse que o produtor e seu amigo poderiam voltar de carona, que isso seria um prazer. No entanto, disse-lhes também que ele, o presidente, não iria junto, pois ficaria em São Borja para descansar um pouco junto de sua esposa.

Ameaçando levantar do banco, dando por encerrado o assunto e tentando fugir do último pedido, então o presidente foi interpelado novamente pelo agricultor. O senhor esqueceu de um dos meus pedidos. E a cadela, presidente? Eu gostaria muito de levar um filhote para Uruguaiana.

A expressão de Jango mudou. Sério, o presidente anunciava com o olhar que o último pedido não seria atendido. Sobre o filhote da cadela, Jango negou. Em seguida disse ao caudilho uruguaianense que se ele lhe desse um dos filhotes da sua cadela, teria sérios problemas a Dona Maria Thereza, sua esposa. A cadela não era de Jango, tão pouco os filhote, a cadela pertencia a Dona Maria Thereza, e ao que parece, ela tinha intensão de ficar com toda a ninhada. E sobre isso não havia o que ele pudesse fazer. A resposta era NÃO.

Em seguida, vendo o término da água quente e deixando a cuia sobre o banco, Jango disse ao uruguaianense e seu amigo para que não fossem ainda para São Borja, gostaria que ficassem para comer ali na estância, talvez, já prevendo que esse seria mais um pedido do uruguaianense.

E eu permaneci no carro, mesmo depois de estacionado na sombra de uma das árvores próximas ao Prédio 700,  permaneci com o rádio ligado e ouvindo ansioso pelo término da história. E ela prosseguiu:

De barrigas cheias, com a autorização presidencial para plantar arroz numa ilha do Rio Uruguai e com uma entrevista pronta para publicação, os dois uruguaianenses se despediram do anfitrião e se dirigiram para o aeroporto onde estava o avião. Já no avião, sobrevoando as terras e os rebanhos são-borjenses, um som diferente surgiu dentro da aeronave. Ouviu-se um choro, fraco, abafado, quase um grunhido. Eis que então, de dentro de um casaco surge uma cabeça de cachorro. Era ele, o filhote mais bonito. A cadelinha que o Jango não deu, pois não era sua.

Sorrindo, o uruguaianense voltou para sua cidade. O agricultor, depois de pedir uma ilha, mesmo depois de conseguir uma entrevista, de voltar para casa de carona em um avião presidencial e de ter comido de graça, ainda assim, não satisfeito, havia roubado um dos filhotes de seu anfitrião.

No programa da rádio que eu ouvia, as gargalhadas eram muitas. Todos riam da façanha do agricultor, que além de tudo que conseguiu, ainda voltou com os quatro pedidos atendidos. Ao que parece, todos acharam uma história normal, coisa pitoresca. Não havia nenhum tipo de mal estar, afinal, ele tinha roubado o cachorro do Jango, o presidente comunista. Aquele que sofreria o golpe que daria início ao período de ditadura civil-militar no Brasil. 

Como eu disse antes, ouvir rádio é como ter contato com o zeitgeist e ver que algumas características de uma determinada época persistem, ainda hoje, em nossa sociedade. A história sobre a cadela do Jango fala muito sobre a mentalidade de alguns ricos produtores rurais da Fronteira Oeste e Campanha do Rio Grande do Sul.  São grupos econômicos que há décadas querem um Estado mínimo para os pobres, enquanto salivam por um Estado máximo para os seus interesses.

A força desta história, onde um agricultor usa do Estado para ter vantagens e se apropria de coisas que não são suas para satisfazer seus desejos, representa  um tipo de comportamento predatório, onde a vantagem pessoal é a meta social. E esse comportamento está presente em muitos operários, trabalhadores informais,  “empreendedores” e empresários. Está nas vilas. Como a senhora que ouvi na fila do supermercado, reclamando com outra mulher sobre o estado das ruas de Uruguaiana, buracos, barro, pó. Dizia ela que não iria pagar IPTU, pois de nada adiantava. Ela era incapaz de perceber que a falta de pagamento do IPTU é que gerava os problemas das ruas. Há muita gente que quer resposta do Estado, mas se nega em fazer sua parte. E assim como aquela senhora, os grandes empresários sonegadores de impostos também estão por aí, reclamando e pedindo por um país com menos serviços públicos gratuitos, desde que é claro, eles possam pagar para ter saúde e educação de qualidade para suas famílias. 

Em 2015 eu ouvi uma produtora rural bradar de cima de um caminhão, enfurecida, contra os programas sociais do governo federal, falava do Bolsa Família, “esses pobres que só fazem filhos para não ter de trabalhar”, dizia ela. O curioso foi que uma semana depois vi ela feliz nas redes sociais, comemorando o aumento nas vendas dos grãos de arroz que plantava. Ela era incapaz de perceber que o aumento das suas vendas era porque os pobres estavam comprando mais comida, justamente, com o dinheiro que recebiam através do Bolsa Família. Assim como o homem da ilha de arroz, ela só pensava na própria ilha.

Obviamente que nem todo produtor rural ou empresário se comporta e pensa assim, estou falando de um estrato, uma camada que dá característica para o nosso espírito do tempo. Sei que  há muita gente que está preocupada com a questão social, com o papel do Estado, produtores rurais e empresários que estão gerando riquezas, investindo em nossa região, criando empregos, produzindo renda e buscando sempre um caminho onde o Estado brasileiro seja mais responsável com os direitos básicos de sua população. O problema é que eles não possuem acento na frente dos microfones, não estão nas rádios, ocupando lugares discursivos e falando sobre as possibilidades de se produzir um país menos desigual. Como eu disse antes, as rádios também são lugares de fechamento.

E hoje, como habitualmente faço, fui dar uma repassada nos meus grupos de redes sociais e li, num do Telegram, duas mensagens que me chamaram a atenção. Uma delas dizia que “se o Lula vier de novo no Rio Grande do Sul, os tratores deveriam trancar as entradas das cidades novamente”. E outra que dizia que “tem que meter bala nesses políticos ladrão, da outra vez um tiro foi pouco naquele ônibus”. 

Eles se referem ao Lula, mas e se fosse com o atual presidente. E se lulistas impedissem Bolsonaro de entrar numa cidade? E se fosse com qualquer outro político?

Na hora eu lembrei da história da ilha de arroz e da cadela do Jango. Era o espírito do nosso tempo, novamente se movendo. E o eco desses movimentos cria um  tipo de mentalidade que diz para algumas pessoas que trancar entradas de cidades, como se suas propriedades fossem, é algo tão normal quanto ocupar uma ilha ou roubar um filhote de cachorro.

Acham normal dar tiros em ônibus de um ex-presidente. Acreditam que empunhar relhos dentro de universidades é bonito. Que ocupar esquinas contra uma imaginária “ditadura do comunismo” e clamar pelo retorno da real e dramática ditadura civil-militar é justificável. Esses grupos de pessoas adorariam ser nomeados “governadores da ilha”. 

A cadela do Jango um dia esteve no cio. Já a cadela do fascismo, como escreveu Bertold Brecht, permanece no cio. Eis o nosso zeitgeist.

 

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.

 

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