por Boca Migotto
Inicio esse texto já antecipando que escrever sobre a Argentina é um enorme desafio. Não sou historiador, muito menos especialista no tema. Quanto muito viajo com frequência para lá. Gostaria.
Mas a Argentina não é assim tão perto quanto o Uruguai – esse sim, um destino mais assíduo – e, de avião, por conta do valor geralmente impraticável das passagens, também fica difícil. Poderia não ser, afinal, Buenos Aires é uma cidade linda e tão próxima de nós, gaúchos. Por isso, apenas uma vez sobrevoei a grandeza do Rio da Prata o que é, em si, já uma sensação indescritível. No entanto, sou um apaixonado pela América Latina e dentre tantos países e culturas fascinantes, confesso, tenho uma queda pela irmandade dos uruguaios e pela complexidade sociocultural dos argentinos.
Devo dizer que tive algumas incursões marcantes pela Argentina. Quando jovem, conheci parte do centro do país de carona e, mais recentemente – não tão recentemente assim, ressalto – viajei de carro e ônibus desde a capital, passando por Rosário, Córdoba, em direção ao sul, através da mítica Ruta 40. Cortei a Patagônia de norte a sul, leste a oeste, cheguei atravessar a fronteira para o Chile e voltei, atravessei o Estreito de Magalhães, dirigi por toda Terra do Fogo e cheguei ao Fim do Mundo, também conhecida como Ushuaia. Essa sim, uma viagem de tirar o fôlego. Tanto foi que até rendeu meu primeiro livro, “Na antessala do fim do mundo”. Aliás, o mesmo segue a venda nas melhores livrarias e online. Foi, também, quando passei a me interessar mais efetivamente pela história da Argentina. Primeiro, pela Patagônia e pelas Malvinas. Só nessa viagem li quatro ou cinco livros sobre o tema. Depois, pela história geral, quando passei a ler sobre a formação do país. É por isso que digo que escrever, mesmo que um texto informal, sobre os hermanos, é um desafio inatingível. E os historiadores especialistas no tema sabem sobre o que falo.
A Argentina é extremamente complexa em sua história carregada de dicotomias, nuances e contradições. É quase uma obra de ficção, um roteiro de série escrito para a televisão. Infelizmente, apesar da sua importância como principal vizinho do nosso país, muitos de nós sabemos mais sobre a história da França ou dos Estados Unidos do que dos hermanos. Síndrome do colonizado? Pode ser. E isso é lamentável, pois conhecer melhor o passado da Argentina também é uma forma de imaginar nosso próprio futuro. E é sobre isso que gostaria de refletir, brevemente, nesse texto. Para isso, me utilizo da experiência que tive, recentemente, de retornar à terra dos caudilhos. Dessa vez, no entanto, cortando o norte do país, de leste a oeste, em direção aos Andes.
Fazia tempo que pensava nessa viagem. Estou falando de Santa Fe, Salta, San Miguel de Tucumán e o lado leste dos Andes.
Estamos falando de uma parte do país que, há até pouco tempo, os próprios argentinos desconsideravam ou negligenciavam, pois trata-se de uma região mais pobre que o sul e, de certa forma – impressão minha – serve aos hermanos como espécie de espelho, pois os faz lembrar que a Argentina também é latino-americana. Na sua mais profunda essência andina. Esta parte do país, portanto, em nada ou muito pouco, lembra aquela Argentina Bariloche, de paisagens quase suíças e fisionomias europeias. Ali, em cultura e paisagens, estamos mais próximos do Atacama, de Cusco, de Uyuni, do que de Buenos Aires.
Esta é a Argentina profunda, região que, inclusive, fez parte do Império Inca. Assim como boa parte da América Latina, os primeiros assentamentos humanos na região norte do país datam de algum momento entre 15.000 AC e 10.000 AC, no entanto, segundo o livro, “Argentina – a história e o legado da nação desde a era colonial até hoje”, de Charles Rivers, a relação destes povos nômades com os Incas teve início pouco antes da chegada de Cristovam Colombo à América Central, por volta do ano de 1471, depois que Tupac Inca Yupanqui empurrou as fronteiras do seu poderoso império para as regiões que, hoje, seriam o sul do Equador e norte do Chile e da Argentina. Segundo o autor, “a história arqueológica dos Diaguitas [como os Incas denominavam os povos que viviam nas extremidades sul do seu império] é um tanto esparsa, mas os historiadores sabem que a região hospedou um grupo de línguas sofisticadas que ocupou os vales transversais do árido norte da Argentina e Chile”. Ainda segundo o autor, as terras por onde viajei recentemente era “o lar de uma sociedade que teria sido atraente para o Inca por sua riqueza mineral”.
Iniciamos a viagem, minha namorada e eu, a partir de Bento Gonçalves. Intermináveis quase oito horas de estrada até Uruguaiana, acompanhando o caminhar do sol, mas levando a chuva conosco. Quanto à distância, logo mais perceberíamos ser “mamão com açúcar” frente o horizonte que se descortinaria ao atravessarmos a fronteira. As distancias terrestres da Argentina são colossais, e o norte reforça, em nós, a certeza de que não se trata de um país qualquer. Estamos falando da segunda maior nação da América do Sul e a oitava em extensão no mundo. Mesmo para brasileiros, nascidos num país continental, dirigir pela Argentina é impactante. E também pode ser extremamente cansativo. Portanto, quem quiser seguir por essas rutas que se prepare para intermináveis horas dirigindo por pampas, semi-desertos e, claro, as amedrontadoras montanhas dos Andes. Para mim, aliás, um dos lugares no mundo onde uma paisagem mais honestamente me revelou a pequenez humana frente a natureza.
Mas voltemos ao princípio, Uruguaiana. Estive nessa cidade duas vezes na vida. Nas duas chances mal pude conhecê-la bem. Uma vez foi a trabalho, para realizar a série “Na trilha dos rios”, para a RBS-TV – nos bons tempos de produção audiovisual local – e outra ao retornar de uma frustrada viagem de carona pela Argentina, quando planejava alcançar Buenos Aires para, vejam só, protestar contra a formação da ALCA – Área de Livre Comércio das Américas. Depois de dias viajando no dedo, chegou o momento de aceitar a derrota e retornar ao Brasil, sem conseguir chegar à capital, na carona de dois caminhoneiros mucho locos. Foi assim que atravessei a ponte entre Paso de Los Libres e Uruguaiana pela primeira vez. Mas essa é outra história, fica pra próxima.
Dessa vez, portanto, com um pouco mais tempo na “Sentinela da Fronteira”, impressionou-me o quanto um rio – tudo bem, o Uruguai não é qualquer rio – dificulta a integração. Em Paso de Los Libres, ao contrário do que ocorre nas cidades fronteiriças do sul do Rio Grande do Sul com o Uruguai, onde não existem rios para apartar as culturas e línguas de um lado e outro da fronteira, a relação com o Brasil é bem menos intensa. Aqui, embora, obviamente, haja uma certa integração, em algum nível, as relações não são tão líquidas e o português já não é tão fluente como ocorre na fronteira com o Uruguai. Isso me impressionou e reforçou minha convicção de que a nossa fronteira sul é a porta de entrada para uma verdadeira integração latino-americana entre o Brasil, português, e quase toda a América Latina, hispânica. Embora sejamos vizinhos diretos de dez entre os doze países da América do Sul – inclusive não-falantes do espanhol – o único ponto, nesses mais de 16 mil quilômetros do norte ao sul, onde não há qualquer obstáculo para o ir e vir entre um lado e outro da fronteira ocorre aqui, no Rio Grande do Sul com o Uruguai.
Mas sigamos viagem, pois de Uruguaiana vamos levar em torno de sete horas, de estrada e de chuva, até Santa Fe, nosso primeiro pernoite (?) argentino. Através do rádio, que logo sintoniza o espanhol e deixa o português para trás, fica claro o quanto a atual crise econômica afeta as vidas e a pauta dos argentinos.
Com uma hiperinflação de quase 300% ao ano, o peso não vale mais nada e todos os dias os produtos aumentam de preço. Isso me despertou até um sentimento nostálgico, pois me fez lembrar da infância, nos anos 1980, quando meu pai recebia o pagamento e a mãe corria para o supermercado fazer o tal rancho. Naqueles anos tínhamos estoques de azeite, açúcar, café e outros produtos alimentícios não-perecíveis pois fazer isso, quando possível, garantia uma certa saúde financeira para as semanas seguintes. A Argentina está nessa situação. Só que, infelizmente, ainda mais pobre. Para nós, viajeros, a desvalorização do peso é positiva. Foi a primeira vez que me senti rico em uma viagem internacional. Cada real, na cotação pela Western Union, está valendo 57 pesos. Assim, uma garrafa de excelente vinho, que no Brasil nem me arriscaria a olhar o preço, por lá nos custava em torno de 50 reais. Para encher o tanque de gasolina premium, 8 mil pesos, ou seja, em torno de apenas 150 reais. Então, imaginem como se sente um americano ou europeu, que chega na Argentina de hoje com um dólar – ou euro – valendo aproximadamente 320 pesos. Assim é bom fazer turismo. Principalmente se tu não tiveres consciência social e empatia pelo próximo e, por isso, nada ou pouco se importar com o fato de que, para estar bom assim para alguns, é porque está um muito ruim para muitos outros. Aliás, essa é a lógica capitalista em qualquer lugar do mundo. Não importa o país, para cada BMW circulando pelas estradas ou Iphone no bolso de uns, milhares de outras pessoas passam fome. Por isso, embora pudéssemos nos dar alguns privilégios, o sentimento era sempre de contrariedade. Hoje, lamentavelmente, a pobreza faz parte da paisagem turística da Argentina. Além de lamentável, é aterrador, se levarmos em conta que falamos de um país que foi, entre o final do século XIX e início do século XX uma das cinco maiores economia do planeta.
Tudo bem que é preciso relativizar essa informação, afinal, a Argentina – assim como o Brasil em processo de desindustrialização – teve – e, essencialmente, segue assim – sua economia fundamentalmente estruturada na produção de trigo e carne bovina. Em uma época quando o seu principal parceiro comercial era o poderoso Império Britânico, cuja matriz, a Inglaterra, é uma ilha que, da terra, ainda hoje pouco retira, produtos como o trigo eram considerados fundamentais, inclusive, para fundamentar a Revolução Industrial. Afinal, sem pão na mesa não havia energia para o trabalho. Em virtude disso, para os poucos latifundiários argentinos, em relação a uma população ainda diminuta, os lucros astronômicos faziam com que a renda per capita da Argentina alcançasse níveis de países desenvolvidos. Entretanto, assim como ocorre no Brasil, os lucros provenientes do agronegócio são extremamente concentrados, o que significa dizer que, embora no papel a Argentina apresentasse números invejáveis para qualquer país latino-americano isso, não necessariamente, significava qualidade de vida para toda a população. Nesse sentido, a produção primária argentina, somada a um processo de liberalismo econômico iniciado nos anos 1970, e intensificado nas décadas seguintes, ajudam a explicar as sucessíveis crises econômicas que renderam, ao país, a alcunha de “caloteiro serial”. Como me disse um argentino, em Cafayate, brincando com a época quando eles vinham para o Brasil com o peso em paridade ao dólar e compravam tudo em dobro, agora somos nós, brasileiros, que “estaríamos dando o troco”.
No entanto, em nada fico feliz em “dar o troco”. Obviamente que é bom viajar sem precisar contar cada real gasto, como ocorre quando vamos para a Europa. Mas, a situação dos nossos vizinhos é tão lamentável que essa viagem também me serviu como uma oportunidade de refletir sobre o Brasil pois, me parece, estamos seguindo pelo mesmo caminho.
Com um relativo atraso, é verdade, também porque o Brasil é uma economia – ainda – muito maior e diversificada que a argentina. Mesmo assim, nesse ritmo neoliberal que caminhamos, independente de governos de direita ou esquerda – até porque, sejamos inteligentes, nós, latino-americanos, não temos e nunca tivemos total arbítrio sobre o destino dos nossos países – logo chegaremos lá. Ao contrário de Cuba, por exemplo, que até hoje paga a conta da sua liberdade frente os ianques, subjugados a um embargo criminoso que dura, já, impressionantes quase 60 anos, no caso da Argentina, do Brasil e de praticamente todos países latinos, o motivo de tal pauperização social é, justamente, termos baixado nossas cabeças e aceitarmos o jogo ianque que nos foi imposto. Sem embargos explícitos, e nos auto-enganando que somos livres para definir nossos destinos como nações independentes, argentinos, brasileiros, chilenos, bolivianos, cada um no seu ritmo e da sua forma, perdem gradativamente os direitos mais básicos, sucateando suas estruturas, esburacando suas estradas, empobrecendo suas gentes e, até, apagando suas culturas em nome do discurso neoliberal de um estado enxuto o qual seria autorregulamentado pelo mercado. E isso, insistem alguns, seria positivo.
No inicio desse texto argumentei que não sou historiador. Pois bem, também não sou economista e muito menos vidente com poderes de prever o futuro. No entanto, o tico e o teco geralmente se encontram e produzem algumas sinapses. De qualquer forma, não é preciso muito pensar para perceber, a partir da experiência argentina, o quanto esta tem similaridades com o Brasil atual. Segundo artigo de Maria Seoane, editora do diário Clarín e diretora de jornalismo da revista Caras y Caretas, escrito para a Enciclopédia Latino-americana, “a Argentina foi, durante a maior parte do século XX, um dos países socialmente mais harmônicos da América Latina, com o índice de analfabetismo mais baixo da região, uma poderosa classe-média, uma notável excelência educativa e, até 1976, uma participação dos trabalhadores no PIB – Produto Interno Bruto – superior a 45 por cento”. Afirmação, esta, que repercute no livro, “A história da América Latina”, de Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino, quando as autoras afirmam que, na passagem do século XIX para o século XX, “Buenos Aires conheceu um crescimento demográfico surpreendente, impulsionado, sobretudo, pela chegada de imigrantes europeus. A população quadruplicou-se entre 1869 e 1914: de quase 2 milhões de habitantes, saltou para quase 8 milhões nesse período. A paisagem urbana alterava-se rapidamente, conferindo à capital do país ares mais cosmopolitas e, à vida de seus habitantes, novos ritmos e qualidade. A cidade modernizava-se, ilumina seus passeios públicos, via surgir cafés, livrarias, teatros e cinemas”. A linha divisória entre as duas realidades apontadas acima, entretanto, pode ser fixada em 1976, quando o país mergulhou num quadro de obscuridade que foi se afunilando até alcançar os surpreendentes patamares atuais. As explicações, claro, são várias e complexas. Para um país, como escrevi anteriormente, constituído a partir da dicotomia, é impossível, em um texto isolado, dar conta de tantas nuances. Por isso tentarei, apenas, fazer um resumo daquilo que li sobre nossos vizinhos para seguir com a viagem.
Não por acaso, me parece, os argentinos recorreram à arte para expressarem sua vocação tragicômica. Mesmo a história do seu maior ídolo no futebol – que para alguns, não deixa de ser arte – soa, também, como uma espécie de metáfora da própria história. O permanente conflito presente no Tango, e a própria vida de altos e baixos de Maradona, são perfeitas analogias para tentar ilustrar as diversas nuances que envolvem os argentinos. Infelizmente, me parece, ao substituirmos o Tango pelo Samba – sem demérito algum ao Samba, não me compreendam mal – e Maradona por Pelé ou Neymar – nesse caso, sim, sou muito mais o “Mão de (d)Deus” – , nosso destino pode vir a ser ainda mais trágico, afinal, se a Argentina conta com uma população total de em torno de 45 milhões de habitantes, nós somos 212 milhões em ação e, segundo os levantamentos mais recentes, já hoje, destes, 33 milhões de pessoas passam fome nesse país tropical abençoado por (d)Deus. Ou seja, quanto mais pessoas, maior pode vir a ser a desgraça. Entretanto, para além de uma certa fantasia sobre as causas e consequências de uma e outra história fadada ao fracasso, é preciso pensar que existem coisas concretas que nos deixam em desvantagem frente os argentinos. Por isso, seria ainda mais importante conhecermos nossa própria história – mas nem essa nos damos ao trabalho de estudar – pois, já é um clichê, quem não a conhece está fadado a repeti-la. E de erros redundantes nós entendemos bem. De qualquer forma, tomemos um pouco da história da Argentina como exemplo.
A crise atual argentina, que tem inicio nos anos 1970, remonta à própria formação do país, em princípios do século XX. Naqueles anos a elite argentina se expandia a partir do poder aquisitivo oriundo da produção agrícola e da pecuária e organizava um sistema político republicano e federal, entretanto oligárquico e conservador.
As inúmeras ondas migratórias para a Argentina, que em proporção chegou ser o país que mais recebeu imigrantes no mundo entre o final do século XIX e início do século XX, sopravam ares cosmopolitas, não ao país mas, sobretudo, à capital. Foi quando os interesses dos latifundiários bateram de frente com as demandas dos imigrantes e seus primeiros descendentes, sobretudo italianos, espanhóis, alemães e poloneses. Isso sem falarmos dos povos originários que, na Argentina, desde sempre foram subjugados e, até onde foi possível, eliminados. Isso, obviamente, gerou instabilidade política, acompanhada de violências constantes. A elite argentina sempre foi extremamente preconceituosa quanto a sua própria população mais pobre que, inclusive, pela burguesia foi apelidada de descamisados – sem paletós – quando ascenderam socialmente a partir dos dois primeiros governos nacionalistas de Juan Domingo Perón. Paralelamente, a Argentina também é marcada por diversos golpes militares – são quatro, até onde contei – e estes, como não poderia deixar de ser, sempre aliados aos grandes proprietários de terras, exportadores, banqueiros e, pasmem (!?), interesses estrangeiros. São os “intéresses”, diria o saudoso Brizola. O fato é que sem vencer nas urnas, os “homens de negócios”, os “não-descamisados”, invariavelmente, se associaram às forças armadas para tomarem o poder a força. Assim, conforme explica Seoane, “durante o século XX, essa burguesia, longe de propiciar um projeto de país industrial, preferiu, primeiro, os benefícios da renda dos latifúndios e, depois, os da renda financeira – e a fuga desses benefícios para o exterior – aos riscos dos investimentos produtivos”. Novamente, qualquer semelhança com o Brasil de hoje não é mera coincidência.
A política social implantada pelo peronismo – e a história de Juan Domingo Perón, bem como da sua esposa, Evita, é particularmente exótica e cheia de contradições que nem me arrisco a resumi-la nesse texto, no entanto, indico uma leitura sobre esses dois personagens extremamente instigantes – contribuiu para o enraizamento dos setores populares. Estes passaram a ganhar força através dos sindicatos e chegaram a representar 48 por cento do PIB argentino quando os índices de desemprego eram praticamente inexistentes. A legislação trabalhista, implementada por Perón, garantiu folgas remuneradas, regulamentação da jornada de trabalho, direito a férias, congelamento dos aluguéis, subsídios à indústria alimentícia e aposentadoria aos trabalhadores. Paralelamente, a educação laica, gratuita e obrigatória, tida como um dever do Estado, e instituída ainda em 1884, foi priorizada como nunca fora anteriormente. Para educar era preciso livros e Buenos Aires tornou-se uma referencia editorial para toda a América Latina, inclusive para o Brasil. A produção de livros aumentou 143 por cento, foi exportada para todo o continente e é considerada, ao mesmo tempo, causa e consequência do desenvolvimento do ensino universitário no país. Não por acaso, a Argentina é a terra dos escritores Jorge Luís Borges – este, no entanto, oriundo da elite portenha e, inclusive, chegou a apoiar a ditadura militar, é preciso registrar –, de Julio Cortázar, Ernesto Sábato, Quino e Manuel Puig. Da literatura para o cinema, dentre os inúmeros diretores de renome internacional, é preciso lembrar que a Argentina foi agraciada, já, com dois prêmios Oscar: em 1988, pela primeira vez, pela película, A história oficial, de Luis Puenzo, e, em 2009, com o filme O segredo de seus olhos, de Juan José Campanella. Isso, claro, sem citar os troféus individuais, recebidos por argentinos que aturam em filmes internacionais. A excelência da educação argentina, creio eu, ajudaria a explicar o seu bom desempenho nas artes mas, também, poderia ser considerada fundamental pelos, se não pedi a conta, cinco prêmios Nobel já conferidos a argentinos: Bernardo Houssay, Nobel de Fisiologia em 1947, Luis Federico Leloir, Nobel de Química em 1970, César Milstein, Nobel de Medicina em 1984, Carlos Saavedra Lamas, Nobel da Paz em 1936 e Adolfo Pérez Esquivel, também Nobel da Paz em 1980.
Infelizmente, o peronismo não conseguiu transformar a base econômica do país, que seguiu muito dependente da produção primária. Embora a indústria argentina tenha dado um salto nas décadas que antecederam a ditadura militar, o trigo, o milho, a lã de ovelha e a carne bovina seguiram liderando as exportações. Com o golpe civil-militar de 1976 – sobre a segunda esposa de Perón, Isabelita, que assumiu a presidência após a morte do marido, em 1974 – além de inúmeros cidadãos desaparecidos e assassinados pelo regime, os presidentes militares literalmente quebraram o país. A mando das elites agrárias, teve início o desmantelamento da indústria nacional – também percebido, pelos historiadores, como uma forma de “desperonizar” o país –, o aumento do endividamento externo e a fuga massiva de cientistas e intelectuais do país. Por fim, José Alfredo Martínez de Hoz, líder da burguesia agroexportadora, assumiu como Ministro da Economia do governo de Jorge Rafael Videla – hoje condenado à prisão perpétua pelos crimes contra os direitos humanos – e impôs o modelo neoliberal a força. Como resultado da abertura econômica indiscriminada, a distribuição de renda regrediu vertiginosamente e a participação dos trabalhadores no PIB caiu de 50 por cento para 30 por cento entre 1975 e 1983. Ao mesmo tempo, a dívida externa cresceu de 6 para 46 bilhões dólares e o desemprego atingiu níveis históricos.
Com o fim da ditadura a Argentina já estava sem norte e sem pernas. Após Raul Alfonsín, primeiro presidente civil pós-ditadura militar, os argentinos elegeram Carlos Menem, ele mesmo, que embora neoliberal se dizia peronista, deu continuidade ao processo de privatização.
Foi no seu governo que o resto do patrimônio estatal do país foi liquidado. Em nome de uma Argentina que ingressaria no Primeiro Mundo pelas mãos competitivas do mercado livre, Menem alienou o petróleo e todas as empresas estatais do setor energético, de comunicações e serviços. Nesse sale geral da nação, venderam a Aerolineas Argentinas, as empresas do setor de energia, inclusive a YPF – Yacimientos Petrolíferos Fiscales – e todas outras estatais que poderiam interessar ao capital estrangeiro. O resultado, no entanto, foi que a distância entre pobres e ricos aumentou para patamares até então desconhecidos e o país mergulhou de vez em uma crise da qual nunca mais conseguiria sairia. Nos anos 1990 a economia entrou em recessão e o país chegou ao terceiro milênio com uma dívida pública de aproximadamente 200 bilhões de dólares. Como não poderia deixar de ser, seguindo o roteiro mais clássico da economia do livre mercado, quando não havia mais o que privatizar, o fluxo de capitais estrangeiros decaiu e rachou-se o bloco integrado pelas empresas estrangeiras e nacionais associadas para as privatizações. Os ricos, no entanto, não perderam. A grande maioria dos empresários argentinos venderam suas participações nessas empresas e passaram a viver da especulação financeira e/ou levaram seus capitais para fora do país. Foi quando, finalmente, a classe-média caiu na real. Mas ai já era tarde. Aqueles que acreditaram na narrativa de sucessivos governos incompetentes, desleais e corruptos, os quais, por sua vez, administraram as riquezas do país a mando do capital estrangeiro, acordaram do pesadelo como “novos pobres”. Para finalizar esse breve – e incompleto, pois o Tango argentino nunca tem fim – resumo da tragédia argentina, Seoane explica que, “em 2002, a Argentina teve cinco presidentes em uma semana [quem lembra disso?] e declarou o maior default da história do capitalismo moderno. A desvalorização do peso em cerca de 300 por cento significou o passo que faltava para a pobreza e a indigência de milhões de cidadãos. Os beneficiários da desvalorização foram os grandes exportadores agropecuários e, depois dessa crise, a sociedade civil ficou fragmentada e sem alternativas políticas”.
Ao longo desse período ocorreu todo um esforço de apagamento do peronismo, mas então, em 2003, os argentinos elegeram Néstor Kirchener, que se dizia herdeiro das politicas sociais de Perón, seguido por dois mandatos consecutivos da sua esposa, Cristina Kirchener. Somente em 2015 a Argentina voltou a apostar, novamente, em um neoliberal, Mauricio Macri, que acabou perdendo a reeleição para o atual presidente – embora, digam, quem manda de fato ainda é Cristina Kirchener – Alberto Fernández. Várias vezes, enquanto dirigia pela Argentina, sintonizado nas diversas e diferentes rádios ao longo da viagem, ouvi comentaristas locais afirmando que, apesar de tudo, mil vezes melhor um governo de Fernández que a volta de Macri. Mediante tais comentários, me pareceu que há relativo consenso sobre o quanto o projeto neoliberal foi danoso ao país e catastrófico à população.
Os problemas do país, hoje, são tantos e tão profundos que a Argentina é, praticamente, uma país quebrado, com uma dívida impagável, segundo os especialistas, e mais nada de valor para vender. Mesmo assim, sempre há aqueles que estão por cima da carne seca. E sempre há quem aproveite a festa, mesmo após as luzes serem acesas e som desligado. Foi essa a sensação que tive ao entrar em Santa Fe. Estávamos dirigindo há horas, já era noite e a chuva havia parado quando entramos no impressionante túnel que liga as cidades de Paraná a Santa Fe. Margeada pelo gigante rio Paraná – o mesmo que, alguns quilômetros antes abastece Itaipu e outros quilômetros depois despeja seu colossal volume de água para formar a Bacia do Rio da Prata – a cidade nos pareceu viva e alegre. Era a semana de férias de inverno na Argentina. De dentro do carro visualizamos dezenas de “fogos de chão” onde carne e mais carne era assada. O aroma do churrasco seduziu facilmente nossos estômagos famintos. Decidimos voltar para lá, depois de conhecer nosso apartamento alugado através do airbnb, tomarmos um banho e, só então, sair para jantar. O próximo passo seria uma boa noite de sono para descansar e encarar o trecho seguinte da viagem até San Miguel de Tucumán, de aproximadamente onze horas de estrada.
Nossa intenção, no entanto, foi frustrada ao extremo. Pela primeira vez, desde que uso o airbnb, fui – fomos – ignorados pela “anfitriã” que simplesmente desligou-se do aplicativo e nos deixou esperando, cansados e com frio, em frente ao prédio, por quase duas horas, até decidirmos desistir. Bela recepção.
Mas o pior estaria por vir. Depois de tanto esperar circulamos pela cidade, a procura de um hotel. Foi quando descobrimos que Santa Fe é uma espécie de destino turístico, para os argentinos, tal qual Gramado para os brasileiros. Por conta disso – independentemente da própria crise, fato que nos surpreendeu – não havia um único hotel com vaga. Aliás, a estrutura de hotéis e pousadas dessa região da Argentina, mesmo nas grandes cidades, é bastante limitada. Basta um final de semana de grande procura para escassear as vagas e os preços subirem absurdamente. Em virtude disso, contrariando nossas expectativas, fomos obrigados a dormir – na verdade, fechar os olhos – nossa primeira noite argentina no carro para seguir viagem assim que o sol nascesse.
E o próximo trecho de estrada não seria para amadores. Quase onze horas de rutas intermináveis, e retas, a nossa frente até chegarmos em San Miguel de Tucumán. Isso não nos impediu, no entanto, de procurarmos o tal evento gastronômico. Precisávamos comer, não havia muito mais o que fazer, estava frio, então relaxamos e fomos até lá conferir o calor dos fogos de chão. O lance todo acontecia no pátio, e dentro, de um enorme prédio antigo restaurado para abrigar grandes eventos. Se tratava da antiga estação ferroviária de Santa Fe. Incrivelmente bela. Em nada perde para as grandes estações de trem da Europa e muito me lembrou – embora nunca tenha estado lá pessoalmente – da famosa Union Station, a estação de Chicago, palco de um dos grandes filmes clássicos do cinema norte-americano, Os intocáveis (1987), de Brian de Palma. Diferentemente de tantas estações que eu conheço, por filme ou pela vida, a de Santa Fe não recebe mais trens. Algo que não deixa de ser irônico e me fez pensar sobre as possíveis relações entre o público que, lá, alienado à crise argentina, se empanturrava de carne e cerveja artesanal. Aliás, essas festas gastronômicas são sempre iguais, seja lá onde for. Sanduiche gourmet de costela com uma “salsa especial” e cervejas “diferenciadas”. Enquanto isso, bem ao lado do pátio, do outro lado da cerca, pessoas dormiam na calçada, provavelmente de estômago vazio. E tudo isso ocorrendo dentro e em torno de um símbolo gigante do desmonte da estrutura nacional patrocinado, no passado, pela mesma elite.
Assim como ocorrera em quase todas as principais cidades latino-americanas entre o final do século XIX e início do século XX, os trens, e da mesma forma os bondes, prédios, jornais, cafés, cinemas, teatros, fábricas e automóveis eram símbolo da modernidade. Um esforço enorme foi feito para transformar os principais centros urbanos em cidades à imagem e semelhança das grandes metrópoles europeias. Paris era o modelo principal, mas também Londres, Roma, Berlim, Madri e, mais tarde, Nova Iorque. A dicotomia entre civilização e barbárie, a primeira representada pela cultura eurocêntrica e a segunda inerente, principalmente, ao povos originários da América do Sul, foi uma constante no pensamento burguês das antigas colônias. No caso de Buenos Aires – mas também muito similar a outras cidades latino-americanas – conforme relata Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino, no livro, “História da América Latina”, “a elite portenha queria usufruir dos benefícios materiais e simbólicos da modernização sem assumir a responsabilidade de ‘guiar’ as massas e promover a alta cultura”. Foi na esteira desse desejo “civilizatório”, mas também por interesse econômico, principalmente do capital externo, que uma malha ferroviária foi construída, cortando a Argentina para aproximar suas principais cidades e, anos depois, também por interesses econômicos internacionais, foi sucateada e substituída pelo modal rodoviário. Por conta de toda essa reflexão inútil, e em função de estarmos cansados, sem hotel, sabendo que a noite seria longa e desconfortável, o sanduíche, que até era bom, desceu meio atravessado e a cerveja nem tomamos. Saímos dali direto para um posto de gasolina onde estacionamos o carro e tentamos dormir.
O sol raiou com certa preguiça. Já era oito horas quando o dia ficou claro. Fiquei me perguntando o motivo, afinal, a Argentina não é assim tão longe do Brasil.
Foi preciso um tempinho para cair a ficha que, obviamente, já estávamos a quase dois mil quilômetros de casa – a viagem toda somou aproximadamente cinco mil – mas o fuso horário era o mesmo. Quer dizer, naturalmente, o sol se atrasaria uma horinha para dar o ar da graça. A paisagem do pampa com a cerração baixa, iluminado por um sol indolente, em um domingo de manhã (ainda) quase sem movimento, nos acompanhou por um longo trecho de estrada. De repente, paralelo a nós passa um trem, tão preguiçoso quanto o sol. Vimos apenas três ou quatro em toda a viagem. Como é fascinante ver uma locomotiva arrastando centenas de vagões por sobre duas linhas de ferro. E como é louco pensar que cada vagão daqueles é um caminhão a menos nas rodovias irregulares, mas sempre pedagiadas, tanto da Argentina quanto do Brasil. A partir daquele momento começou a me chamar a atenção a placa de advertência nos cruzamentos rodoferroviários. Uma Maria Fumaça. Muy hermoso, penso eu. Mas, ao mesmo tempo, não deixa de ser irônico que o desenho – conforme publicado acima – seja uma locomotiva do século XIX. Não deixa de ilustrar o descaso da Argentina com o seu próprio futuro.
San Miguel de Tucumán, capital da Província de Tucumán, cidade onde nasceu Mercedes Sosa e onde foi proclamada a independência das Províncias Unidas do Rio da Prata – futura Argentina –, em 9 de julho de 1816, surge quase como uma miragem depois de tanto tempo dirigindo em meio ao (quase) deserto. Fomos direto para o apartamento alugado, agora, através do booking. Tomamos um banho e caímos na cama direto, sem nem ao mesmo sair para jantar. Indiferentes a agitação que subia das calçadas e ruas em forma de gritos, buzinas e cantorias, dormimos quase dez horas direto e, quando acordamos, ainda era noite. Mas, pela primeira vez, finalmente sentimos que estávamos de férias. Saímos para tomar café – dos medialunas y un café con leche – passar em uma agência da Western Union para sacar o dinheiro da transferência realizada logo ao acordar, através do aplicativo, e seguir viagem, pois ainda tínhamos umas cinco horas até Salta. Sobre a Western Union vale uma dica. Não sei como nem porquê, mas a cotação através deles é duas vezes mais favorável que aquela realizada em uma casa de câmbio normal. Aliás, na Argentina é preciso ficar de olhos abertos com as notas falsas. Então, a dica é utilizar o aplicativo deles para fazer uma transferência que consiste, basicamente, em depositar, via Pix, o valor em reais a ser convertido para peso, mais uma pequena taxa de administração. É impressionante como funciona. Quem me conhece bem sabe que, ao lidar com dinheiro, meu coração quase sai pela boca. Como assim depositar uma grana numa conta de alguém – ou alguma empresa – que nem conheço? Mas já fiz isso no Uruguai e na Argentina, agora, precisei fazer três vezes, pois preferi realizar transações com valores mais baixos. Sempre deu certo, sempre foi uma boa cotação e, pasmem, pagando eles em Pix, o dinheiro fica disponível, para retirada em moeda local, em menos de uma hora. É o tempo do café e caminhar até uma loja da Western Union. Aliás, sempre tem uma loja da Western Union por perto. E sim, sei que estou fazendo propaganda para uma empresa americana – se já não foi comprada por investidores chineses –, mas para alguma coisa essa tal de globalização neoliberal tem que servir, né?
Dinheiro no bolso, malas no carro, música no rádio, tanque abastecido, saímos de Tucumán sem nem conhecê-la direito e seguimos para Salta, capital da Província de (…) Salta! Já quando pegamos a ruta a polícia nos parou. Pronto, começaria o “achaque”.
Um dos motivos de realizar essa viagem, de carro particular, com placas do Brasil, pela Argentina, era para justamente desconstruir uma das coisas que mais nos falam sobre a polícia argentina. Inúmeras vezes escutei que eles inventam motivos para multar os brasileiros e, assim, pedir uma propina. Quanto à polícia da região norte, inclusive, li em diversos blogs que, por serem “extremamente pobres”, muitas vezes aceitavam até cigarros. Por isso, além dos documentos necessários – passaporte ou ID, documento do carro, Carta Verde, Seguro Covid – e os apetrechos para o carro – dois triângulos e extintor de incêndio, que eu descobri, somente por isso, não ser mais obrigatório no Brasil – li e imprimi a lei de trânsito da argentina para poder argumentar, frente ao eventual policial corrupto, que o tal kit de primeiros socorros ou a bizarra mortalha não são demandas obrigatórias. Mesmo assim, claro, se no meio do nada, sozinhos, um policial não acatasse meus argumentos, teria que ceder à corrupção, embora ainda tivesse um último argumento que seria solicitar a multa para paga-la na fronteira, quando voltasse. Ah, também li – e este seria um argumento que nem eu acreditaria, caso tivesse que usar – para dizer que estava viajando somente no cartão de crédito e que tínhamos pouca grana, apenas para os pedágios. Além de, provavelmente, não acreditarem, me tirariam para idiota, afinal, não é preciso dois neurônios para compreender que num país que registra hiperinflação, comprar em efectivo sempre renderia descontos. No entanto, nada disso foi necessário. Aliás, nessa primeira abordagem, nem o documento do carro nos pediram. O policial nos parou, prestou continência, perguntou se eu falava espanhol – eu que estava dirigindo nesse momento –, pergunto de onde vínhamos e para onde íamos, olhou minha carteira de motorista e nos desejou boas férias. Depois dessa primeira experiência, fomos abordados mais uma três ou quatro vezes. As estradas argentinas são extremamente vigiadas e, além disso, toda vez que se atravessa uma divisa de província é como se fosse uma fronteira. Em poucos quilômetros vai ter um posto da polícia de cada província e eles estarão, provavelmente, parando carros e caminhões para solicitar informações básicas. Ao menos conosco, nunca houve um padrão. Teve desde o policial que nem a carteira de motorista solicitou até o último, já quase no Brasil, que pediu se eu tinha o tal extintor. Falei que sim. Ele pediu para ver e, dessa vez pensei: vai ser agora. Não foi. Olhou o extintor, me devolveu. Reparou minha tatuagem no braço, que reproduz o zoopraxiscópio, o famoso experimento de multicâmeras realizado por Eadwerard Muybrige, em 1878, quando ele fotografou o galope de um cavalo usando uma série de vinte e quatro câmeras, considerado um passo decisivo para a invenção do cinema, e me perguntou: te gusta los caballos? A principio não havia entendido a pergunta, uma vez que nem havia me dado conta que estava de camiseta. Então ele apontou para o meu braço. Olhei para a tatuagem, olhei para ele, e disse que si, me encanta. Ele sorriu, me devolveu a carteira de motorista e o documento do carro – foi a primeira vez que pediram ambos documentos – e me desejou bom retorno. Missão cumprida. A polícia argentina, ao menos conosco, além de não ter sido corrupta foi, sempre, extremamente educada. Amável, até.
Entre a primeira e a última abordagem policial, no entanto, ainda há muita história para contar. Vou tentar resumir, a partir de agora, pois esse texto já está se alongando demais. Em Salta conseguimos viver melhor a cidade. Foi o único lugar onde passamos mais de uma noite. O hostel era básico, mas era o que precisávamos. Uma cama, um bom banho e um quarto com calefação. A cidade nos encantou. Mas o que mais valeu foi realizar o bate-volta até as Salinas Grandes, na província de Jujuy. Não é a maior de todas e também não posso afirmar se é a segunda maior, como andei lendo pelos sites da vida, ou a quarta maior, como nos foi dito pela guia, mas é tão linda quanto a Salina de Uyuni, na Bolívia. Essa sim, a maior do mundo. Formadas por conta da evaporação da água salgada que, por sua vez, ficou represada entre as montanhas quando estas irromperam do fundo do mar formando aquilo que, hoje, é Cordilheira do Andes, qualquer salina é algo impressionante e que nos faz pensar sobre a força da natureza. Um mar de sal. No entanto, dessa vez – talvez por já ter conhecido Uyuni ou talvez porque realmente me impactou mais – o que me impressionou foi quando a guia nos apontou o pico mais alto daquela região, uma montanha de seis mil metros – nós estávamos a aproximadamente quatro mil – onde sempre fora possível perceber a neve eterna. No entanto, já há bastante tempo, não havia mais neve naquele pico. Mesmo no inverno.
É preciso lembrar que toda a região abaixo das montanhas é deserto e em muitas microrregiões, como Cafayate, por exemplo, de onde se produz excelentes vinhos, a precipitação pluviométrica é de apenas 20 dias por ano. Ou seja, a água oriunda do degelo das neves dos Andes é fundamental para a sobrevivência de pessoas, animais e da produção agrícola baseada, além da uva para produção vinícola, em frutas cítricas e cereais como, principalmente, o milho.
Se não há mais gelo nos picos mais altos da cadeia de montanhas, no inverno, como poderia haver água no verão? Voltei todo o trajeto para Salta refletindo sobre o futuro imediato daquelas pessoas. Afinal, se os problemas decorrentes do aquecimento global, cedo os tarde, atingirão a todos nós, o que dizer de quem depende assim tão diretamente da natureza? A vida naquela região desértica é extremamente dura. O ar seco, o sol implacável, associado ao frio extremo e a variação extrema da temperatura ao longo do dia são condições climáticas às quais poucos se adaptam. Mesmo os povos locais, que carregam em si DNA dessa adaptação, têm suas peles ressecadas pelo clima.
Ao mesmo tempo, é impressionante o quanto a água, mesmo quando limitadíssima, transforma a paisagem originando microclimas diversos. Muito me chamou a atenção, por exemplo, que ao contrário do lado chileno da Cordilheira, ali é possível observar camadas de verde. Deduzi que isso poderia ser consequência dos “rios voadores” que se originam na Amazônia a partir da evaporação da umidade presente na floresta tropical. Dizem, os cientistas, que o centro-oeste, o sudeste e o sul do Brasil só não são desertos porque essa umidade que se desprende da Amazônica é empurrada, pelos ventos advindos do mar, para oeste. Uma vez que esses ventos se chocam à Cordilheira dos Andes, está é tão imponente que provoca um desvio desses “rios voadores”, empurrando a umidade para o sul onde esta vai se condensar e virar chuva. Basta analisar rapidamente o mapa-mundi para perceber que há total lógica nesse argumento. Assim, imaginei que se essa mesma umidade chega até a Cordilheira, mas não a atravessa, provavelmente acaba, também, por irrigar algumas partes dessa região. Diferentemente do que ocorre no Chile, onde o clima é mais árido.
Embora me pareça que faz sentido, não é preciso comprovar tal hipótese para perceber o quando a água é fundamental. Mais ainda depois de passar por Tafí del Valle. Essa pequena cidade turística, uma espécie de Campos do Jordão dos Andes, encravada em uma vale a mais de quatro mil metros de altitude, apenas tem razão de ser – e existir – por conta de um dique que permitiu represar a água do degelo de tal forma que um grande lago se formou. Depois de subir a Cordilheira, enxergando apenas pedras, cactos gigantes e arbustos rasos, ao se enxergar Tafí del Valle do ponto mais alto da estrada a sensação é de estarmos chegando a um oásis. E, de fato, é isso mesmo. As edificações, na sua grande maioria, em madeira e ao estilo “casa de campo”, foram construídas ao redor deste lado. De novo, a sensação é de estarmos em uma espécie de Gramado/Canela andina. O seu centro é constituído por algumas poucas ruas, com pequenas lojas típicas e bons restaurantes frequentados, na sua maioria, claro, por turistas. Mas nem sempre foi assim. Segundo nossas pesquisas, já havia nômades por essa região há aproximadamente 7 mil anos. No entanto, por volta de 2.300 anos atrás estes indígenas passaram a cultivar milho e outros cereais naquelas terras, provavelmente se aproveitando da oferta abundante de água – e onde há água, há animais para diversificar a alimentação – e, assim, acabaram por se fixar na região. Por isso, Tafí del Valle também conta com um vasto sítio arqueológico que, parece, é extremamente interessante. Na minha opinião, qualquer civilização de 2 mil anos tem que ser interessante. Infelizmente, apenas pernoitamos por lá e acordamos cedo, no dia seguinte, para encarar mais onze horas de estrada até Santa Fe. As férias estavam acabando e esse é um dos “poréns” de se viajar longas distâncias em pouco tempo. Mas, era isso ou nada. Pelo tamanho desse texto, imagino que, mesmo assim, alguma coisa deu para conhecer e aprender.
Viajar é uma das experiência mais incríveis que uma pessoa pode viver. Tal afirmação pode parecer “lugar comum”. Mesmo assim, não me canso de repeti-la.
No entanto, para isso se confirmar é preciso fugir do turismo ordinário o qual, geralmente, é insuficiente e predatório. O objetivo de se sair de casa é – ou deveria ser – para se colocar no lugar daquele que vivem em paisagens e culturas diferentes da nossa. Não quer dizer, com isso, que não devamos visitar, também, os lugares clichês ou que tenhamos que, sempre, comer as comidas locais. É possível encontrar um ponto de equilíbrio nessa equação, digamos, nem um pouco complexa. Mas muito pouco valeria fazer cinco mil quilômetros de carro se não fosse para mergulhar, minimamente que seja, no “diferente”. É quando conseguimos fazer isso conversando com as pessoas locais, comendo suas comidas, lendo sobre suas histórias, se propondo a viver – e sentir – um pouco dos seus hábitos cotidianos que voltamos para casa, também nós, um pouco transformados por essa experiência. Há tanta diversidade nesse mundão que não faz nenhum sentido negarmos as diferenças. Um sushi, de vez em quando, faz bem até para o mais carnívoro dos gaúchos. Até mesmo na Argentina.
Para finalizar esse texto, se você leu até aqui, é porque, de alguma forma ou por algum motivo gostas do meu texto e/ou do que escrevo. Por isso, me sinto a vontade de aproveitar esse último parágrafo para convida-lo/convida-la a adquirir meu mais novo livro, que será lançado agora, em agosto, “Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre – ou como o cinema imagina a capital dos gaúchos”. Trata-se de uma adaptação menos acadêmica, mas nem por isso menos científica, da minha tese de doutorado sobre o cinema gaúcho dos últimos 40 anos. O tema principal é cinema, mas ao longo do livro me aventuro a refletir sobre a América Latina, o Rio Grande do Sul e sobre Porto Alegre, além de também relatar um pouco da minha trajetória como realizador audiovisual e como esta se sintoniza ao tema da minha pesquisa. Fica o registro e, desde já, o agradecimento pelo interesse.
I. BOCA MIGOTTO
Bravo. Quem dera se nossos brasileiros lessem mais. Um alerta à nossa porta. Somos cegos!
obrigado pela leitura e pero comentário, Sidmei.