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Mais perto do 31 de março por VERA IONE MOLINA

Um conto de Vera Ione Molina

Isabel parou de digitar e voltou-se para responder à amiga. Tinha cortado o assunto no Facebook porque envolvia pessoas que não gostavam de falar daquela madrugada há cinquenta anos. “Mas primeiro conte você o que estava fazendo naqueles dias”.

Regina acomodou os travesseiros e aceitou o desafio. Gostava da sua história, embora sua maneira de pensar fosse diferente do resto da família.
Passamos um verão estranho, embora em minha casa sempre ouvíssemos falar em política desde pequenas. O pai saía de noite para reuniões com militares. Esses coronéis, majores eram pais de conhecidos nossos, alguns bem bonitos e gostosos, cariocas. Os filhos, claro, nunca reparei na aparência dos velhos. Eles nos tratavam como crianças. Nem sei que idade teriam, uns dezesseis, dezessete, eu tinha doze.
Nossa vida social continuava normal, passávamos os dias no clube, da piscina para um salão onde havia um bar, sofás, onde a gente escutava música, muita Bossa Nova. E combinava festas. Naquele tempo, havia um bom carnaval de salão em Uruguaiana e passávamos meses bordando fantasias.
“Lá em Três Passos também tinha um bom carnaval, eu adorava me fantasiar, mas não tínhamos essa vida social intensa de vocês”, interrompeu Isabel. “Mas também iam meninos e rapazes passar as férias lá. Era uma época que a gente improvisava roupas, fazia um troca-troca lá em casa e com as amigas”.
Dois tios meus mandaram mulheres e filhos para uma fazenda próxima ao Uruguai, onde elas poderiam se refugiar se a coisa apertasse. Então a casa do tio, situada a meia quadra da nossa, sediava reuniões de alguns homens da cidade: fazendeiros e seus amigos, a maioria da UDN. Não tínhamos a menor ideia do que conversavam, mas às vezes nos escondíamos para ver quem entrava no “Quartel-General” deles. Éramos eu, minha irmã e uma prima.
Tínha um porão grande, lá eram estocadas centenas de armas que nós achávamos poderosíssimas, eram chamadas de mosquetões.
“E vocês viam as armas? E não quiseram viajar para esse lugar próximo ao Uruguai”?
A mãe disse que não ia se meter numa estância, nossas aulas começariam em março e ela não tinha porque se esconder.
Nos programas de rádio, o Brizola incitava os soldados, os cabos contra o que ele chamava de “gorilas fazendeiros” que não queriam a reforma agrária. Nós não tínhamos medo. Não era como agora, Isabel, agora eu não tenho antepassados vivos, tenho descendentes, por isso o medo do que poderá vir com toda essa campanha contínua na mídia e esse ódio que percebemos até dentro das famílias, dos amigos de infância.
“A gente escutava os programas de rádio. O pai era comerciante e não se envolvia em política, mas os meus irmãos mais velhos já se posicionavam – uns admiravam o Brizola, outros achavam o Brizola violento, comunista”.
Na minha casa odiavam o Brizola, mas a mãe e nós vivíamos esperando a revista O Cruzeiro para ver a Maria Tereza Goulart, que achávamos linda. Tem um livro de um escritor de Uruguaiana que conta episódios de violência dos homens da minha família nos comícios do PTB. E eu acredito. Meu pai era um deles, usava um relho para retirar do cinema quem vaiasse o Carlos Lacerda, governador da Guanabara, que seria candidato à presidência da República em 1965. Nós, morando em Uruguaiana, interior do Rio Grande do Sul, andávamos num Simca Furacão com um cartaz (acho que não existiam os adesivos ainda) escrito: “Lacerda 65”. E se nos encontrávamos com uma passeata do PTB, meu pai nos deixava dentro do carro, no meio da rua, dava uns tiros pra cima e voltava.

“É, o fascismo nunca deixou de existir. Eles faziam o que queriam, principalmente no interior. Lá em Três Passos não havia tanta violência. Pelo menos que eu soubesse. Mas como foi o desfecho dessa disputa toda? Chegue mais perto do 31 de março”.

Teve carnaval, a gente se fantasiava de escrava grega, de Cleópatra, se maquiava e se achava linda. O par podia abraçar, era tão bom ficar dando a volta no salão agarrada a um guri perfumado, era bom encostar o nariz no pescoço deles, principalmente se fossem de fora, novidades. Mas nada de namoro, por que no outro dia a gente podia estar interessada por outro cara.
“Isso com doze anos?” Sim. Essa era a vantagem de ter irmã de treze, que era a idade com que começavam a ir ao carnaval de noite e a menor não podia ficar sozinha.
Bom, continuou a função de se reunirem com os militares, do Brizola a gritar no rádio e cada vez mais, vinham nos contar que ele ia mandar as mulheres da nossa família desfilarem peladas na praça. Ainda bem que a mãe não acreditava, achava tudo invencionice de gente que não tinha o que fazer.
Em uma manhã do final de março, pulei da cama pensando estar atrasada para o colégio e o pai, grudado no rádio, avisou: “Podem voltar pro quarto, não tem aula. Estado de sítio”.
E tu, Isabel? Lembras de alguma coisa especial daqueles dias?
“Você sabe que um pelotão se rebelou e veio para Três Passos? Não sei se foi no mesmo dia ou depois, mas é a memória mais forte em mim. O pai tinha uma venda. De madrugada, bateram nas janelas e nas portas. Era esse grupamento militar. Queriam munição. O pai e os irmãos atenderam e eles foram para a rádio da cidade. Tomaram a rádio e começaram a dar as coordenadas, achavam que iam impedir o golpe. Seguiram para Frederico Westphalen e em seguida foram presos.”
Incríveis as nossas histórias. Tu tiveste maior participação que eu porque até a munição dos revoltosos foi confiscada na venda da tua família.
Dois dias depois, haveria aula. Só na minha turma, havia três meninas com os pais presos. Elas estavam sérias, mas firmes. Fiquei impressionada e, ao voltar para casa, avisei que enquanto não soltassem os pais das minhas colegas eu não iria à aula. Pensava que a turma do “Quartel General” dos fazendeiros e seus amigos tinha muito poder.
Descobri que não ao lembrar da manhã de 31 de março, quando o General Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar em Juiz de Fora, pegou a estrada com 6 mil homens na direção do estado da Guanabara, com a missão de destituir Jango do poder. Ouvi meu pai praguejar contra os milicos filhos da puta, que iam tomar conta da Nação e minha avó materna, que era mãe de militar, dizer que agora sim o Brasil estava salvo. Na minha cabeça ficou martelando a ideia de que o “Quartel General” não mandava nada.
Uma tarde, estávamos no portão, quando vieram prender um historiador. Tentamos espiar e a mãe nos levou para dentro. Perguntei por que ela não tinha me deixado ver a prisão e ela tinha os olhos úmidos quando me respondeu: “Por que ele está com a família dele”. Anos mais tarde eu entenderia que foi por respeito e compaixão pelo vizinho que pertencia a um partido opositor ao que tempos depois viríamos a chamar de ditadura militar.
E agora, Isabel? Como achas que vai ser? Será que vão prender as pessoas que conhecemos? Vai ter golpe? Os militares vão voltar?
“Se continuarem prendendo os companheiros de esquerda e protegendo esses que cometeram tantos crimes e não foram nem indiciados, vai ter muita luta em 2016”.
Vou pro quarto que amanhã tem Feira do Livro.
“Só cuide de não se hospedar aqui mais de cento e onze vezes, senão vão dizer que este apartamento é seu e eu sou sua laranja”.
Regina e Isabel voltaram a falar do passado, apostando se este ou aquele episódio teria acontecido nos anos 70, 80, ou 90, com o Google aberto para tirar as dúvidas.

Vera Ione Molina mora em Porto Alegre, RS, professora e escritora de livros de literatura infantojuvenil, contos e novelas. Graduada em Letras e pós-graduada em Teoria da Literatura, ambos na PUC-RS. Autora da novela Quarentena,IEL e Alves Editores, 1996, na 3ª edição intitulada Notícias da Guerra e o Destino de Laura, 2017, Gemido da morte sob as solas dos sapatos, 2018, ambas pela Editora Bestiário; O outro lado da ponte, Ser MulherArte Editorial, 2020, dos livros de contos Outros Caminhos, Mercado Aberto, 1997 e O Quarto Amarelo, Bestiário,2015, entre outros. Participa da Antologia O Livro das Mulheres, org Charles Kiefer, 1997, participa de coletâneas de contos e poesia, inclusive como organizadora.
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