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A vida que foi possível de ter – ANDRÉ RESENDE

A VIDA INVISÍVEL, de Karim Aïnouz, filme baseando no romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, com Carol Duarte e Julia Stockler, alegres e intensas. A história das irmãs Eurídice e Guida é contada devagar, aos poucos, como se nada tivesse acontecendo ou por acontecer. Depois, me perguntei se, fazendo assim, quem escreveu, quem dirigiu, não estava esperando que a trama tecida se fortalecesse e fosse em busca de um final feliz, que nem sempre acontece na vida e na ficção, que transborda a realidade.

Esse filme poderia ser, como é, sobre duas irmãs que se amam e se perdem na vida. Duas irmãs com vidas invisíveis. Mas esse filme é, para vergonha e para tomada de sentido dos homens, sobre o machismo como perversão cultural, como estrutura familiar, como ato político do fascismo cotidiano que persiste e aniquila. Modelo de conduta e de caráter que destrói as mulheres, as pessoas.

Esse filme é sobre o machismo. Antes de qualquer coisa, esse filme é sobre como o machismo destrói as mulheres. É sobre dois homens não invisíveis, presentes, agindo ocultos e na nossa frente. Um pai demolidor, também marido demolidor. E outro, marido, que também poderia ser cunhado. Em ambos os casos, demolidores, colocados no lugar de provedores e de líderes familiares que destroem as vidas ao redor deles. Destroem a vida das mulheres. Impedem as mulheres de se sobressaírem em seus desejos e expectativas de vida, destroem histórias. Como me disse, depois do filme, a escritora Ana Carolina Carvalho: “está acontecendo uma violência incrível[ na história, no filme], mas ela é naturalizada.”

Mais que comovido, deixei a sala incomodado. Em Zômis – em torno dos masculinos, escrevi sobre o lugar dos homens, da masculinidade e da hombridade, de como os masculinos se movem, se encolhem e se escolhem nas estruturas psíquicas e nos contextos culturais. Ainda não sabia por onde começar vendo o machismo como uma perversão histórico-cultural, como um modelo de fascismo cotidiano. Estava onde sempre esteve: como uma violência incrível acontecendo naturalmente.

A Vida Invisível é para todos nós entendermos que não é mais possível seguir pensando, agindo e vivendo dentro desse modelo de perversão cultural. Um filme para os homens levarem outros homens de mãos dadas e pelos braços, porque ele tem alguma coisa para nos dizer sobre a vida sem submissão, sobre a vida sem servidão.

P.S.: Nos poucos minutos que Fernanda Montenegro aparece, que aparição é aquela, meu Deus.

 

ANDRÉ RESENDE
Escritor e psicanalista. Mora em São Paulo. Autor de ficção e ensaios
( incluindo livros de psicanálise, também é dramaturgo e roteirista.
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