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A VIDA | conto de Adalberto Escaio

Vestiu-se. Apenas uma gota do perfume importado de sua preferência e nada mais. O ar, além das notas, sentiu um cheiro de deja vu. Teve certeza de que para os demais, promessas de vida boa, renovação, roupas cheirando a etiqueta. Tudo recendendo a novo. Os fogos se encarregaram de gritar a tarde inteira o inevitável como um panfleto aqui e acolá. Agora, já crepúsculo, eram um portfólio completo.

Morava no décimo segundo andar. Apesar da vertigem – já que deveria escolher uma sensação de nunca sair de um lugar – odiava a ideia de um terceiro ou quinto. Dali podia ver a cidade mesmo quando no vazio, confundindo-se com as vidas lá embaixo e ao redor. Tinha uma concepção de raso ser melhor que vazio. Um rio raso guardaria ainda algum conteúdo. Um mergulho raso permitiria a volta atrás sem arriscar em demasia. Relações rasas davam ideia de não comprometimento. Um filme raso não era incômodo e poderia ser logo esquecido. Uma vida rasa poderia ter conserto. Um pulo no vazio seria irremediável.

Morava distante do centro. Assim o fim de tarde se via refletido no coração de vidro frio da cidade. Via também as garças voltando para os galhos mais altos de alguma árvore do parque para dormir. Via os jacarandás amarelos sendo engolidos pela boca da noite na praça da esquina, para ressurgirem milagrosamente regurgitados pelo sol no dia seguinte. Via o café na xícara como promessa de algo muito forte. Não via, porém, altruísmo.

Andou pelo apartamento. Acariciou lentamente o gato amarelo como em uma despedida. Pegou uma garrafa de malbec previamente escolhida para a ocasião. Serviu-se e em seguida bebeu o vinho sem ensaios. Não havia mais tempo para amadorismos.

Voltou os olhos ao que ia além da imensa janela do quarto. O gato foi atrás e pulou na cama, se ajeitou e caiu em um sono sepulcral. Olhou para a urbe a seus pés. Pensou sobre as conversas sem sentido que ouvira nos bares e festas.

Nas bocas que se abriam para vomitar egos triviais. Diziam de quantas vezes terminaram relações que sabiam não dariam em nada porque quase ninguém cedia. Na sequência, escutara histórias de milhares de sexos abertos por mero prazer escolhidos a dedo sem nem trocarem nomes. Todos mercadoria.

Gritos de um prédio vizinho lhe chamaram de volta à realidade misturados ao devaneio dos fogos. O dia finalmente dava boas-vindas à noite. Um vento morno lhe recomendou velhos amores. Da inutilidade deles.

O tempo não levava nada. Parecia mancomunado na construção da futilidade das vidas, das horas, do consumo, na distorção da realidade em algo mais ameno.

Imaginou quantos estariam de volta à solidão dos dias seguintes. Quantos encheriam filas. Quantos não comeriam nada de novo e de novo e de novo. Quantos estariam mergulhados em suas escolhas mesquinhas se achando empresários das próprias sobrevivências. Quantos não olhariam uns nos olhos dos outros. Porque para olhar nos olhos uns dos outros era necessário ter alma. Quantos nem se dariam mais conta que pareciam já não ter mais almas.

Sentiu a boca amarga. Deu-se conta de que as mãos seguravam o parapeito da janela com ímpeto e tremiam. Foi ao aparelho de som e pôs uma canção portuguesa que falava do segredo do futuro. Fantasticamente seria o amor. O gato ressonava. Transmitia uma ternura naquele momento nunca antes experimentada. É! Talvez o segredo do futuro fosse realmente o amor…

Do passado, a canção trouxe banhos de cachoeira, cuidados de afetos que já morreram e recomendações em relação ao outro. Cuja violência dos tempos advertia ser um inimigo. O outro que olhou nos olhos e falou um sonoro “eu te amo” e depois sumiu. O outro, amigo, conviveu, viveu, conviveu de novo, usou a casa, a chave, comeu do melhor, pediu dinheiro e depois desapareceu. Bloqueou, trancou, cancelou. O outro que usou todas as máscaras possíveis. Não usar máscaras dava muito medo do outro. O outro que já não saia na rua, não ocupava a cidade à noite lá embaixo.

O tempo trouxe notícias de afetos genuínos. A maioria suicidados em precipícios gigantes porque não havia mais espaço para eles. Cadáveres hoje esquecidos em algum túmulo vagabundo. Outrora, abraços reais. Beijos que se lançaram como rios bocas adentro fazendo do sangue uma enchente. Mãos que pesaram toneladas de plumas explorando o infinito de uma respiração. Gargalhadas amigas perscrutando e conhecendo outros territórios. Almas que se reconheciam e encontravam e se sabiam.

Esse tempo de agora era grotesco.

Um vilão que usava óculos sobre a máscara denotando toda sua caricatura e previsível vulnerabilidade. As coisas deveriam dar certo para ele, por isso, chegava montado na fragilidade das relações humanas. Trôpego sobre montanhas de lixos. Corpos perecíveis desejosos de se confundir às máquinas nas quais estavam acoplados. Almas horríveis maquiadas por quilos de perversões e solidão infinita.

O ruído dos fogos se transformou em um silêncio ensurdecedoramente afogado. Causava-lhe torpor. Tudo se resumia a escuridão.

A vida era uma roupa que não lhe cabia mais.

 

Adalberto Escaio é jornalista com passagem por redações, assessorias e pelo estranjeiro. Escreveu e teve crônica premiada duas vezes. Há 18 anos é um arteiro do teatro e professor. Agora se aventura pelo mundo dos contos. Com curiosidade pelas vidas, questiona, somos todos poeira das estrelas? 

Foto Capa: Adalberto Escaio
Foto Autor: Adalberto Escaio
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