estou no limiar, meu bem
não sei que sendas cerzir
dá-me uma roseira, sei fazer dela fendas
aprendi quando criança
pisar inocências
esfacelar as pétalas
como se fossem sonhos
galgando espinhos
dá-me sulcos
surras
pecados
sei passar a fome neles
ainda assim
quando a fumaça cai
desabotoo
como a chuva matando o pó
com mãos macias
memória
memória, essa lâmina que não vem só com corte mas o cheiro dos móveis o vapor do olhar a temperatura do dolo
as horas em torno
memória, esse som
que escava
regurgita
apodrece
o urro mais largo
o vazio da prece
memória, essa língua dentada
esse punho tombado
essa voz sem assento
memória
esse eco sozinho
esse tempo sombrio
a saudade de cada
memória,
esse espólio de guerra
boletim
na aridez dos dias
dorme
sob lençóis úmidos
um olho trêmulo
outro lúcido
o poema
sem roupa
espera
uma vida
menos
nãos tempos
não temos tempo de perder o trem
olhar no olho
parar ouvir
não temos, tempo, veja bem as horas
veja bem a
veja
não temos saldo paz joelho asilo
temos fome miséria temos filhos
não temos tempo de pedir à mãe ao pai à amada
pátria, não temos tempo de dizer
não
não temos tempo de tratar a morte o açoite a voz
não temos tempo de temer
sequer
ontologia
o que é isso que a vida
tem feito conosco
passam-se os anos
fincam-se as farpas
o que é isso que o tempo
crava na pele
enrugando a coragem
constipando a voz
o que é isso que a gente
tem permitido
jazigos de sonho
esses nossos co
pos
o que é isso amigo
você está longe
aonde foi que embarcamos
ou
o que é isso que há
feito fumos lúcidos
tragamos
o que mais podemos
o que é
escute
não olhe no espelho
em que ponto da rua
nos
naquela época, a dos tempos sombrios
não era nada fácil viver
naquele tempo, o dos tempos sombrios, as pessoas mal se viam e principalmente se viam mal
naqueles tempos sombrios, o ar é poroso o fogo é a água e a terra o chão a mão não existe
nos tempos sombrios,
muitas pessoas
morrem
muitas pessoas
correm
muitas pessoas
esperam
nos tempos sombrios
quase não se veem sorrisos não porque não existam mas porque passam
fome passam tempos passam por si por cima por nada
nos tempos sombrios
as pessoas não somos
nesses tempos
algo vai enfraquecendo
a direção do olhar
nestes tempos
de enchentes
de dentes
de
quase não sobra
naquela época, a dos tempos sombrios
milhares de minutos de silêncio
como se o instante em que marielle se foi pairasse neste minuto de silêncio
e com vários vazios preenchessem milhares de vozes
o que mais a história ?
tantas palavras e nenhuma
arranhando a garganta
ameaçando os dentes
neblinas à vista
as várias faces do silêncio
a face em branco,
a face dos
o tempo
as balas
mas esse engasgo
esse minuto de silêncio árduo
aguarda
que um grito preso gera milhões
domingo, 17 de abril de 2016
do ódio que derrama dos dentes, independentemente da cor das gengivas, das camisas, das vias
da dor dos direitos lesados
do medo que descama nas mentes, dependentemente de vozes
que não vociferam virtudes
que não zelam
da história adquirida a suores a sangue a pancadas a vidas
ratos em vaginas
leis em latrinas
do absurdo de hastear a morte o golpe o cuspe o lustre
de deus da família dos nomes
instituições todas falidas
enquanto pisam repetidamente nos olhos nos ovos nos seios
do humano
ameaçado de mote
ameaçado de mote
Ameaçado de mote.
Dheyne de Souza
Dheyne de Souza é goiana. Está atualmente em São Paulo. É doutoranda em literatura brasileira (USP). Recém-publicou o livro de poemas lâminas (martelo casa editorial, 2020). Tem um blog (www.dheyne.wordpress.com) e um canal de leitura de
poemas, pequenos mundos (www.youtube.com/pequenosmundospoeticos). Seu e-mail: d.pequenosmundos@gmail.com.
A cada poema que eu li é como se eu levasse um tapa na cara, sério!!
É tão direto que ela o que ela escreve me deixa assustado
Além de ser maravilhoso a sensação de ler isso é inexplicável
Eu me sinto maravilhada por ver e lê isso
Estou realmente ansiosa para ver seus os próximos poemas