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Cena do filme filme “O Banheiro do Papa” (Uruguai/Brasil/França, 2007), direção: César Charlone.

O BANHEIRO DO PAPA: O DIA EM QUE DEUS NÃO VEIO.

O Papa João Paulo II teve o terceiro maior pontificado da história, permanecendo nele durante esses 26 anos. Do Vaticano, João Paulo II comandou a Igreja Católica e ficou conhecido, entre outras coisas, pelo hábito de gostar de viajar, estima-se que tenha feito mais de cem viagens pelos cinco continentes.

Quando ele andou pela América-Latina, sabe-se que o Papa fez algumas visitas um tanto questionáveis. Ele foi ao Chile e fez fotografia com o Pinochet, no Palácio La Moneda, no mesmo lugar onde Salvador Allende foi morto.

João Paulo também esteve na Argentina das tristes mães da Praça de Maio. Andou na Guatemala do ditador Efraín Ríos Montt e no Paraguai do general Alfredo Stroessner. Cabe ressaltar que as visitas do Papa em países sob ditaduras não eram um apoio às mesmas, tanto é que quando ele andou na Argentina, em 1982, seu objetivo não era visitar militares golpistas, mas tentar evitar que eles iniciassem a Guerra das Malvinas. Muitos dizem que o Papa não visitava os líderes, ele visitava o povo. Os líderes estavam lá, mera contingência.

Mas esse texto não é sobre o Papa. Esse texto é sobre o banheiro do Papa.

Quando João Paulo II fez uma visita ao Uruguai, no ano de 1988, sua passagem mudou a rotina dos nossos vizinhos. Dessa visita, além de um discurso e muitas imagens, resultou também uma história fantástica e que foi contada na tela do cinema, no filme “O Banheiro do Papa” (Uruguai/Brasil/França, 2007), do diretor César Charlone.

No filme, a população da cidade uruguaia de Melo (que faz fronteira com Aceguá, no Brasil) descobriu que o Papa, além de visitar o Uruguai, o que por si só já seria uma notícia boa para um país tão católico, também passaria por sua cidade.

Um Papa em Melo: O que parecia uma coisa impossível, era a mais crua e estonteante realidade.

Melo é uma cidade pequena e que fica a cerca de 400 quilômetros da capital Montevidéu, no interior do Uruguai, bem no Norte. Nos anos 1980, suas ruas de terra e a pobreza das casas se refletiam em sua população cansada de rezar e pouco conseguir. Melo era uma “cidadezinha esquecida por Deus” e que agora receberia um Papa. Nada mais poético. Finalmente, Deus, lá do alto da nuvem, olhou para a população de Melo e mandou seu representante, ela seria uma cidade que foi lembrada pelo todo poderoso.

De pronto, feito pavio de pólvora, espalharam-se boatos de que uma multidão iria migrar até Melo, fervorosos fiéis, todos ansiosos por ver e ouvir o Papa João Paulo II. A chegada do pontífice foi prevista para o dia 08 de maio de 1988.

Como eu já disse, Melo tem a peculiaridade de fazer fronteira com a cidade brasileira de Aceguá. Por sinal, Melo poderia facilmente ser confundida com várias cidades brasileiras que ficam aqui no Rio Grande do Sul, uma Itaqui, uma Uruguaiana ou uma São Borja. Trata-se de uma cidade rodeada por muitos campos, riqueza agropastoril e com baixíssima distribuição de renda. Os habitantes de Melo poderiam ser os nossos vizinhos de muro. Pessoas que trabalham muito, dão duro todos os dias, que sonham em melhorar de vida, que lutam para ter uma renda melhor e, quem sabe, um dia tocar nos próprios sonhos. São pessoas que anseiam por acreditar. E o acreditar, a fé, por vezes, em Melo, é tudo o que se tem. E por conta da fé, rapidamente, um clima de euforia tomou conta do pequeno povoado uruguaio. A chegada do Papa é como um raio de sol que desce por entre pesadas nuvens de chuva e ilumina a vida em Melo. Sua presença não poderia ser coisa vã, desprovida de sentidos. A vinda do Papa era um sinal de dias melhores.

Os moradores de Melo então começaram a sonhar com uma oportunidade de melhorar suas vidas tão sofridas, uma chance para melhorar os negócios, uma esperança de sair da pobreza, a oportunidade real de mudar de vida. A presença do Papa trazia uma matemática simples, visto que carregaria milhares de pessoas para Melo. Gente que chegando na cidade teria necessidade de tomar água, sentiria fome e, por isso, precisaria comer. Alguns, vindos de longe, precisariam de um quarto, um lugar para ficar. A chegada de tantas pessoas era uma chance da população de Melo receber também muito dinheiro vindo de fora.

O povoado começou então um grande movimento de empreendedorismo coletivo. Todo dinheiro das economias familiares, os dinheiros das latas e dos travesseiros, as poucas poupanças, o dinheiro guardado por anos, cada moeda, tudo foi investido na chegada do Papa. Alguns habitantes, que eram bons na cozinha, começaram a organizar barracas de comidas, e assim, quase quinhentas tendas de cachorros quentes foram montadas. Outros, menos propensos ao feitio culinário, dedicaram-se à produção de sucos e à venda de água e refrigerantes.

Beto, um chibeiro que vivia em Melo, é o personagem principal do filme. Na trama, ele trabalha contrabandeando mercadorias do Brasil (Aceguá) até o Uruguai (Melo). Todos os dias ele vai pedalando até Aceguá, carrega o porta-pacotes da sua bicicleta, empilha e amarra as caixas com as encomendas que recebeu, depois, pedala mais de 60 quilômetros para retornar até Melo e entregar os produtos. O contrabando de mercadorias, característica tão nossa, dos fronteiriços, também é a vida de Beto.

Às vezes, em função dos milicos e dos fiscais que fazem barreiras, Beto necessita pegar desvios que deixam o caminho ainda maior, tudo para não perder as mercadorias que transporta. Nesses dias, Beto precisa abrir as porteiras dos campos e cruzar de bicicleta pela relva, desviando das bostas de vacas e dos ataques dos quero-queros. Melo é tal qual uma cidade da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, por isso, Beto não está sozinho nesse serviço, são muitos os que precisam destes trabalhos, visto que em Melo não há trabalho para todos.

Logo cedo, as bicicletas já formavam grandes filas, todas carregadas de caixas, pacotes, comidas, bebidas, tintas e tecidos.

Beto e seus amigos, para sobreviver, faziam o que muitos uruguaianenses fazem, ainda hoje, com seus carros, indo e vindo do Paso de Los Libres, com azeite, vinhos, produtos de limpeza, etc. Afinal, onde existe pobreza, há “empreendedorismo” e poucas carteiras assinadas.

Acontece que Beto já está cansado destas jornadas de labuta, das longas distâncias, de pedalar no frio, na chuva, de trabalhar doente. Cansado de ser achacado e perder produtos para os fiscais corruptos da fronteira. Cansado de tanto trabalhar e tão pouco conseguir.

Um dia, enquanto andava pelo pátio da sua casa, Beto ouviu numa notícia da TV que “mais de 30 mil pessoas são esperadas em Melo para a chegada do Papa” e que cerca de 370 barracas já estão planejadas para oferecer alimentação e bebidas para os visitantes. Ao saber desta multidão que invadirá Melo atrás do Papa, Beto teve um lampejo de genialidade.

Sua ideia é, sem dúvidas, a mais original de todas. Ele decide construir um banheiro.

Um banheiro? Sim. Um banheiro bem na frente da sua casa. Ora, para Beto não há nada mais óbvio. Tudo que entra, precisa sair em algum momento, correto? Afinal, se as pessoas vão comer e beber, precisarão utilizar em algum momento um banheiro. Em Melo a maioria das casas possuía  apenas patentes, os velhos banheiros de madeira, estruturas feitas sob um fétido buraco no chão.

Beto compreende que o aluguel de um banheiro de alvenaria, com pia e vaso sanitário, será uma fonte de renda gigante, imaginem umas dez mil pessoas, comendo e bebendo, depois, usando um único banheiro? Os fiéis comerão choripanes, bolos, pastéis, beberão sucos, cachaças, cervejas e irão todos, numa romaria fisiológica, para o seu único e derradeiro fim: o banheiro do Papa, digo, do Beto. E durante quase todo o filme, vemos um Beto que trabalha diuturnamente para juntar dinheiro, cada nota e cada moeda, tudo para construir um banheiro para a chegada do Papa.

No filme, o otimismo e a esperança andam de mãos dadas pelas ruas de Melo.  Em 1988, ao contrário de hoje, a comunicação entre as pessoas não era feita com redes sociais, usava-se muito o rádio e a TV. Mas havia um tipo de comunicação alternativa e que era tão eficaz quanto o feito pelos microfones e câmeras: eram os boatos. E boato bom anda rápido, porém, acaba que às vezes ele é verdade, às vezes, não.

E os boatos que não paravam de chegar em Melo eram bem motivadores. Eles davam conta que na fronteira com Aceguá já existia uma fila de mais de dez quilômetros de carros e de ônibus brasileiros, todos cheios de fiéis ansiosos pelo Papa. Pessoas e mais pessoas que se fartariam com as delícias que seriam oferecidas nas barracas.

Assim, antes do sol nascer, muitos dos casebres de Melo já estavam com suas luzes acesas.

A verdade é que todo mundo acordou cedo naquela manhã de 08 de maio de 1988. Nas calçadas, as mesas com bolos e pizzas era um balé diante das casas. Churrasqueiras e fogões com chorizos, calientitos, panchos e hamburguesas iam despejando um cheiro delicioso no ar, enquanto as jarras com sucos, sendo cobertas por guardanapos e postas sobre as toalhas brancas, adornavam as calçadas.

Melo era um poço fervilhante de alegria e esperança. Toda a comunidade estava unida, envolvida numa mesma utopia. Nos aparelhos de rádios, ligados sobre as geladeiras, o canto  “João Paulo, amigo, o povo está contigo” preenche o povoado. TVs ligadas nas portas das casas, acompanhavam a chegada do Papa. O Papa saudando o povo, o Papa fazendo seu discurso. Um repórter entrevistava o dono de uma pequena barraquinha e ele dizia que hoje “vamos sair da pobreza”.

Beto, que acordou antes do que todo mundo, precisou sair de Melo enquanto ainda era noite. Saiu desesperado, correndo com sua bicicleta até Aceguá, ele precisava comprar a última coisa que faltava no seu empreendimento: o vaso sanitário. Beto e sua bicicleta cortaram a escuridão com o vaso amarrado no porta pacotes, os dois pela estrada de chão, a vida de Beto  viajando em dias melhores na estrada da pobreza. Seria a sua última viagem, ele sonhava.

Beto retornou esbaforido até Melo, chegou em sua casa com o vaso sanitário carregado nos ombros, pois ele teve sua bicicleta roubada no caminho de volta. Entrou na rua de sua casa enquanto o Papa acabava de falar suas últimas palavras na TV. Tinha dado certo! Todo o esforço, todo o trabalho, não tinham sido em vão. Agora era colocar o vaso no lugar e esperar pelos clientes.

Tão logo terminou o discurso papal, João Paulo II acenou para os uruguaios e virou as costas.

O Papa sequer entrou nas ruas do povoado, não chegou nem perto das barracas, não sentiu o cheiro delicioso das comidas. E da mesma forma como o Papa chegou, ele partiu.

O número de pessoas que foi ao vilarejo de Melo não era igual ao que foi anunciado nos boatos, ele era inferior ao número de pessoas com barracas nas calçadas. Beto, em desespero, abordava os transeuntes, oferecendo seu banheiro: “tem vaso e porta de madeira”, dizia ele, como se fosse um vendedor.

Ninguém queria comer nada, tão pouco usar um banheiro, as pessoas queriam  apenas voltar para suas casas em tempo de preparar o almoço.

As mesas com comidas intocadas, os olhares vagos, os habitante de Melo se perguntando: “mas já acabou?”, “era isso?”. Ao lado das barraquinhas e das mesas com comidas, eles seguravam seus anúncios, escritos em pedaços de madeira e cartão, feito estátuas, eles permaneceram na espera de que alguém chegasse para comprar algo.

A lágrima que caiu do olho da filha de Beto, em uma das cenas do filme, era o sinal. O derradeiro sinal de que a esperança não veio para a festa do Papa. A utopia não entrou na cidade de Melo. O otimismo e a alegria, sentimentos tão fortes, horas antes, agora cediam lugar ao abatimento do silêncio. Ficou a melancolia, a sensação de que tudo era apenas uma coisa da imaginação, uma alucinação coletiva. No fim, a impressão de que nem mesmo ele, Deus, nem mesmo ele que se diz em todos os lugares, veio desta vez.

O Banheiro do Papa é um belíssimo filme, uma obra sobre esperança e realidade, dois dos motores da vida humana. Ou noutras palavras, e aqui escolho as palavras de Cervantes:

“Mais vale uma grande esperança do que míseras conquistas”. – Será?

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