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Cinco poemas de Athos Ronaldo Miralha da Cunha

As flores

 

Há um agradável perfume no ar.

Um estranho cheiro de terra,

de relva e de mar.

São flores que desabrocham

nos mais diversos lugares.

São girassóis, margaridas

e camomilas ao sol.

São rosas nos pomares.

São pétalas esparramadas

aos cuidados dos nevoeiros

das primeiras horas.

 

Há uma essência de flores na cidade.

Múltiplos aromas que exalam cheiros

de todas as idades.

É um cheiro de crianças

que imploram trocados nos cruzamentos.

É um cheiro de mulheres

que rogam por seus rebentos.

 

Nesses dias que antecedem o inverno,

temos aromas de antigos amores

nos catres vazios.

Esses dias preenchem os sonhos

com perfumes ausentes.

E proliferam cheiros de jovens amantes.

É alguma coisa delirante.

Imprudente.

É um cheiro de atrevimento e contestação.

 

A cidade está impregnada

pela essência de trabalhadores

que assentam ilusões.

Que contam segredos

e fogem dos medos

quando o sol se põe.

É um perfume de mulheres

feridas em seus corações.

De mulheres que enfrentam a vida

batendo tábuas, varrendo o chão

e catando gravetos.

Há um aroma de sanga, de poeira

e de crepitar de lenhas no fogão.

É um cheiro dos errantes,

dos que chegaram antes

e dos que chegaram depois,

esse cheiro é de nós dois.

 

É um cheiro novo, mas é conhecido,

é a essência do povo.

 

E essas flores são imensas,

densas e acabadas.

São pétalas molhadas pelas chuvas do outono.

São pétalas sem dono.

Nesse jardim só há nomes de mulheres.

São todas fêmeas, belas e apaixonadas.

São descaradas.

Anita, Isabel, Olga e Rosa.

E tantas mais, mas todas mulheres,

e, “das Flores”.

E as flores desse quintal são imprescindíveis.

 

Mas há uma fragrância de democracia.

Uma mescla de paixão e rebeldia.

De liberdade e utopia.

É um cheiro de ira contra as injustiças,

que fala, grita e que faz.

E que gira.

Essas flores têm perfume de gente.

 

Lá no sul do alambrado

 

É largo o verde da travessia,

Que a cena do pampa modela,

O tempo fecha a cancela,

E o vento Pampeiro anuncia,

Uma noite de estrela-guia,

Nos acordes de uma guitarra,

Saltam da mata em algazarra,

Milongas e versos americanos,

Que “Por el correo temprano”,

Vive na voz de Violeta Parra.

 

Tenho um tronco Maragato,

E uma existência aragana,

Na peleia da sina veterana,

O meu lenço é o fogo-fátuo,

E o fio-de-bigode é um trato,

Pra quem troteia no Pampa,

A voz clama e se agiganta,

E vara rincões e aramados,

No rio soturno dos afogados,

Afoga mágoas, afina a garganta.

 

Estou liberto do mapa,

Das divisas e do varzedo,

Dos riachos e do arvoredo,

Onde a cor do lenço retrata,

O canto do cardeal na mata,

Um rito campeiro de louvores,

Vem do encanto os olores,

Na voz de Jayme Caetano Braun,

E no canto de Facundo Cabral,

Vou no rastro dos payadores.

 

A minha vista rasga o céu,

Na “zamba de mi esperanza”,

Nos olhares de uma criança,

E nas bordas do meu chapéu,

O pôr do sol é um fogaréu,

Que minha alma extravasa,

Nas platibandas das casas.

Do pampa eu sou prisioneiro,

Deixei rastros de um braseiro,

E sonhos dormentes na brasa.

 

A vida é um sopro do Minuano,

O tempo é um barco à deriva,

Vou em frente com a mente altiva,

Esquivando os pealos dos anos,

E assim eu não me engano,

Circundo as fronteiras do pago,

E na América me resguardo,

Num encontro com Cenair Maicá,

É vermelho o meu lenço acolá,

Distante… lá no sul do alambrado.

 

O meu horizonte é austral,

E a outra margem é infinita,

No ventre desta terra bendita,

No recanto de Gabriela Mistral,

Numa querência meridional,

Sou um gaudério abandonado,

Um xiru dos quatro costados,

Tropeando desde noventa e três,

Deixei serena a minha tez,

Distante… lá no sul do alambrado.

 

Nas andanças nestes quadrantes,

Sorvo mate com Yupanqui e Zitarrosa…

…Victor Jara e Mercedes Sosa.

Nos poemas de versos viajantes,

Sob um teto de estrelas brilhantes,

Foi-se a distância num mate lavado,

Sigo levado pelas plagas do amargo,

Dedilho notas de Noel Guarany,

E os versos vagueiam por aí,

Distante… lá no sul do alambrado.

 

Três Marias em nuvens de chumbo

 

I – Maria catadora das penas

 

Maria catadora das penas,

Revira migalhas no arrebol,

Verte saudades nos dias de sol,

E traz recuerdos de noites serenas.

Debulha rosários em uma novena.

Maria envolve as penas urbanas,

Mendiga migalhas de alma profana,

Segue errante nas vias sem fim,

Roga silêncios que não dizem sim,

E embala rebentos na sina mundana.

Maria das penas sonha que um dia

A vida seria sem o fio dos punhais

Livre dos potros e velhos baguais

Por isso gritava por sua alforria

Pagando promessas em romaria…

Maria que sonha com alvos lençóis

Mas vaga na noite por entre os faróis

Envolta em trapos e morta de fome

Vai solitária num passo disforme

Com ombros pesados de luas e sóis

 

II – Maria catadora de ausências

 

Maria catadora de ausências

Medita silêncios em sua clausura

Vibra ilusões de fluída amargura

Recolhe traumas na sua existência

Soluça lágrimas em confidência

Maria é seiva que pede piedade

Revolve sossegos por caridade

E um sol na tarde é um lamento

O olhar tristonho no firmamento

Alvoroço da urbe e da realidade

 

Maria medita semanas a fio

Pacata ausência de tocante figura

Grassa desejos de insólita lisura

E um vasto pensamento vazio

Profundo e pardo nas águas do rio

Maria intensa de pura negritude

A mão vagueia na vasta amplitude

Sintetiza normas e rusgas eternas

Indicador em riste: é a lei materna

E segue a vida num rumo rude

 

III – Maria catadora de horizontes

 

Maria catadora de horizontes

Cata ventos e partiu para o infinito

Leva no ventre um filho bendito

Encara tempos e chuvas na fronte

E desbrava planuras e montes

Maria cata quinquilharias

Um desalento no seu dia a dia

Cruza oceanos e afoga os olhares

Águas soturnas e dias melhores

E um sonho além da fantasia

 

Maria catadora de margem distante

Léguas de chão e trilhas de pó

Milhas de sal e águas sem dó

Frenética fuga da sina migrante

Ela não cansa e caminha ofegante…

Maria à deriva um sonho extravasa

Teve a certeza da ilusão que abrasa

Na margem oposta o fim da utopia

E o troco da vida, estranha ironia

Partiu Maria… pariu longe de casa

 

IV – Três Marias em nuvens de chumbo

 

Três Marias em nuvens de chumbo

Três olhares em triste harmonia

Marias da noite… Marias de dia…

Passos rudes em caminhos imundos

Pobre sina num corpo rotundo

Três destinos de vidas errantes

Marias atrás… Marias adiante…

Três Marias inundadas de mundo

Três batidas sincopadas de um bumbo

Eternas mulheres… Marias andantes…

 

São três Marias num triste calvário

Sobram penas, ausências e horizontes

Atitudes francas nos dias em reponte

Marias da Fé de joelhos no santuário

Marias das Dores… Marias do Rosário

E seguem no rumo de trilhas e trilhos

Ilusão de desejos num longo martírio

A sina de aço das Marias guerreiras

Levam abraços cobertos de poeiras

Cultivam silêncios e sonhos dos filhos

 

Última payada 

 

O chimarrão que o maragato

Cevava na cuia morena

Descansando as chilenas

Pra sorver o verde regato

Que veio do tosco do mato

Mateando quieto e despacito

Com o olhar no infinito

Nos causos do seu silêncio

Manchou com erva o lenço

E chimarreou com seu piazito

 

E o guri cresceu assim

No gosto pelo chimarrão

Pra quem nasceu neste chão

Cevando mateadas em mim

Em largas proseadas sem fim

Nas vastas tardes da pampa

Quando o quero-quero canta

Na calmaria da terra gaúcha

Com a cuia feito garrucha

Identidade guapa que encanta

 

Quando o “Velho” anoiteceu

Num mês de maio fatal

Deixou de lado o buçal

Fez de conta que esqueceu

Todas as lidas que viveu

Com a cuia, bomba e sovéu

Cevou um mate com mel

E em silêncio foi embora

Batendo esporas na aurora

Em algum rincão do céu

 

Herança: a velha bomba

De alpaca e ouro folhada

Ficou um taura na invernada

Num dedilhar de milonga

Na tarde cada vez mais longa

Daquele mesmo domingo

Que cevei um mate antigo

E sorvi a Última Payada

Naquela bomba de alpaca

Que sempre carrego comigo

 

O fio da faca

 

Só! É a faca presa na bainha.

 

E um talho divide em duas…

As partes iguais da esfera.

 

O trio sangra… tridente na carne

A espera do corte preciso do aço.

E a graxa queima na brasa!

 

Quatro são luas no firmamento.

E os elementos no extremo sul.

Nos metais de luas e noites,

E na euforia de golpes fatais.

 

E o despertar… da faca na garganta.

 

Cinco são os dedos das mãos,

Calejadas nos talhos do tempo.

No cabo da faca e desenganos,

Ódio das adagas… paz dos anos,

Dos tauras veteranos de solidão.

 

Seis é sexta sem as amarras.

Seis os fios nos alambrados,

Que marca e encerra a fera.

A poeira maragata que estampa,

Que vibram e ferem patas,

Seis… a praga da besta-fera.

 

E na volta… arde o fio na garganta!

 

Sete são os pecados capitais,

Que expõem nossas agruras.

Varam ruídos e gritos fatais,

No desvão dos becos e das ruas.

O mando eterno dos coronéis,

Nas noites repletas de sombras,

No alvoroço das adagas em bordéis.

 

Oito é o infinito no horizonte,

Que traz mansidão e lonjuras:

– um canivete na espiral do fumo –

– um fogo de chão no meio do pampa –.

Oito é um sol que se vai,

E outro sol que se levanta.

Trilho de luz no longo do dia.

Uma “Solingen” enferrujada descansa.

 

Sem volta… não arde o fio na garanta.

 

ATHOS RONALDO MIRALHA DA CUNHA. Nascido em Santiago do Boqueirão-RS, em 30.10.1960,  é graduado em Engenharia Civil e funcionário aposentado da Caixa. Autor dos seguintes livros:  Os agachados – crônicas da Era Lula (edição 2012), Contos de Chumbo (Chiado Editora 2015), Tintos e Contos (Penalux 2017), O código Locatelli – romance – (Penalux 2018), Sofrendo em Paris – crônicas – (Penalux 2018), Contos de prata (Penalux 2020), O Zapzap das flores – crônicas – (Penalux 2022), Peleias – contos – (Martins Livreiro 2022) e Última Payada – poemas – (Penalux 2024).

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