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Ações pela revogação da Lei da Alienação Parental na Câmara Federal, na Praça dos Três Poderes em 2019. Fotos arquivo pessoal da autora.

Violência doméstica e guarda compartilhada: uma oposição inconciliável – Ana Liési Thurler

Esse artigo integra o movimento dos “21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra as Mulheres” *
A campanha existe desde 1991. No Brasil  começa no Dia da Consciência Negra (20/11), a fim de proporcionar reflexões sobre a situação das mulheres negras no país. Em 10 de dezembro, data do encerramento da campanha mundial e nacional, celebra-se o Dia Internacional dos direitos humanos. Durante esse período, diversas instituições promovem ações com o objetivo de conscientizar a população sobre o tema e erradicar todos os tipos de violência contra as mulheres. 
Ana Liési Thurler 
Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília, Mestra e graduada em Filosofia, pela Universidade Federal de Santa Maria. Publicou Em Nome da Mãe. O não-reconhecimento paterno no Brasil. Tem participado com capítulos em livros e artigos em revistas científicas no Brasil e no exterior (Canadá, Colômbia, Espanha, França, México, Perú). Entre outros programas, concebeu e propôs o programa Pai Legal ao Ministério Público do DFT, implementado no DF em 2002 e vigorando desde então.

 

2020 – Ana Liesi Thurler – Violencia domestica e guarda compartilhada

 

Violência doméstica e guarda compartilhada:

uma oposição inconciliável[1]

 

Ana Liési Thurler[2]

 

Para a menina Joanna Marcenal,

mártir da alienação parental no Brasil

Resumo:

Este artigo está estruturado em três blocos. No primeiro deles, apresentarei um breve quadro da realidade de violências masculinistas, ainda persistentes, contra mulheres e crianças no Distrito Federal e no Brasil. Agressores ao se defenderem em diversas instâncias da Justiça ousam afirmar que violências domésticas são invenções das mulheres. Desgraçadamente não se trata de ficção. Somente muito romantizada a família ainda é um ninho de proteção e de amor. Temos, hoje, produção de dados em profusão, que reiteram a apresentação da família patriarcal em processo de entropia, com homens sem compaixão, violentos contra mulheres, crianças e adolescentes.

No bloco seguinte, focalizarei o Estado brasileiro admitindo, somente no século XXI, a existência da violência contra mulheres e crianças. A partir daí, entre outras iniciativas, o Estado aprova a Lei Maria da Penha, em 2006; cria a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher no Congresso Nacional, em 2011; aprova a Lei do Feminicídio, em 2015, cria Centrais Nacionais de Atendimento como o Disque 100, em 2003 e o Ligue 180, em 2005. Todas essas medidas foram resultantes de demandas e lutas das mulheres para se libertarem – e a suas filhas e filhos – da violência sexista.

No terceiro bloco, me deterei no backlash, nas reações masculinistas às conquistas das mulheres e às políticas de enfrentamento às violências promovidas pelo Estado, analisando especialmente, a lei da Alienação Parental, de 2010, o projeto de lei 4488, de 2016, propondo a criminalização de dit@s alienador@s, @s denunciantes de violências e abusos sexuais que são, na vasta maioria, contra as mulheres e a lei da Guarda Compartilhada, de 2008, ampliada em 2014.

No encerramento, tentarei um balanço e apresentação de algumas recomendações para superarmos problemas graves, que atentam contra os Direitos Humanos das Mulheres e contra os Direitos Humanos de crianças e adolescentes, consagrados na Convenção dos Direitos da Criança de 1989, que inspirou o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, além de outros instrumentos internacionais e regionais.

1.Violências contra mulheres e crianças e lutas feministas

A crescente organização das mulheres brasileiras tem sido uma conquista valiosa, resultante de um trabalho incessante nas últimas décadas. Tem permitido conquistas de reconhecimento e garantia de direitos humanos das mulheres e crianças, pressões por políticas públicas para enfrentamento de violências em várias instâncias. É a mobilização que vem possibilitando a demanda por produção de conhecimento, por pesquisas qualitativas e quantitativas, em instituições qualificadas, retirando véus da realidade, desconstruindo a romantizada visão que traduz família como aconchego e proteção.

  • A morte em Búzios… que tiro foi aquele?

Certa geografia de perplexidade e indignação, referência no processo organizativo das mulheres, o assassinato da mineira Ângela Diniz por seu companheiro Doca Street, em 30.12.1976, na praia de Búzios (RJ) tocou o coração e a consciência das mulheres. Iniciava-se a Década da Mulher (1976-1985), estabelecida pelas Nações Unidas e a questão dos direitos da mulher havia entrado para a pauta social. Mesmo assim, a defesa do criminoso lançou mão do velho argumento machista da legítima defesa da honra. Em um primeiro julgamento, em 1979, o advogado Evandro Lins e Silva, em um sistema de justiça androcêntrico, conseguiu o enquadramento do assassinato como crime passional. O réu recebeu pena de dois anos de prisão, cumprida em liberdade, por ser primário. Suscitando a indignação das mulheres, o caso Ângela Diniz teve um segundo julgamento, em 1981. Ativistas feministas atuaram junto à opinião pública, levaram o debate da violência contra a mulher a diferentes setores da sociedade. A pena imposta ao criminoso, então, foi de quinze anos de prisão. A partir de então, foram surgindo coletivos para acolher e apoiar mulheres vítimas de violência, incentivando denunciar, com as chamadas O silêncio é cúmplice da violência, Quem ama não mata e outras, semelhantes (THURLER, 2017).

Também referência de resistência e organização foram os Encontros Nacionais Feministas, ocorrendo desde 1979. Até 1984 (o 6º ENF), ainda no período da ditadura militar, os Encontros Nacionais Feministas aconteceram anualmente no interior das reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Após, esses eventos passaram a ocorrer em espaços independentes.

As feministas brasileiras se organizavam com interações em âmbito continental, nos espaços dos Encontros Feministas Latino-Americanos e Caribenhos. O 1º deles ocorreu e 1981, em Bogotá, Colômbia e o último, o 14º, em 2017, em Montevideo[3].

 

  • Violência contra mulheres e crianças não é ficção

No Brasil nascer menina é nascer já com o estigma de desigualdade em relação a um menino. Nacionalmente, violências contra as mulheres também apresentam números devastadores e crueldades assustadoras. Casos recentes, no estado de São Paulo, indicam feminicídios seguidos de suicídios. Em Campinas, Marília Camargo de Carvalho, 25 anos, estudante de medicina, foi morta pelo namorado, Rafael Moraes Garcia, 27 anos, único suspeito do feminicídio. A Polícia Militar chegou às 7h10m, do domingo, 08 de julho de 2018 e encontrou o corpo do rapaz no quintal do condomínio onde ele morava. A seguir a Polícia foi ao apartamento do estudante e encontrou o corpo de Marília com sinais de asfixia[4]. Ainda em São Paulo, capital, zona norte, em torno das 23h do sábado, 07 de julho de 2018, Lourdes Patrícia de Campos Lopes, 33 anos, soldado, foi assassinada por Renan da Silva Azevedo, 31 anos, cabo, que também se suicidou na sequência dos acontecimentos[5].

No dia de hoje, 09.08.2018, foi divulgado o 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Permanente de Segurança Pública, trazendo os inaceitáveis dados da violência no país em 2017. O Brasil teve mais de 220 mil denúncias de violência doméstica. Feminicídios passaram de 926, em 2016, para 1.133, em 2017, um aumento de 107 mortes, significando incremento de 11,5%. Vivemos um verdadeiro femigenocídio: violências contra mulheres e crianças não são ficção.[6]

A juíza do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Rejane Jungbluth Suxberger, titular de uma Vara Especializada em Violência Doméstica, registrou histórias ouvidas, ao longo de dez anos em seu cotidiano de trabalho. Ficcionalizou-as o suficiente para que as pessoas não fossem identificadas. A partir dessa matéria viva, Suxberger publicou Invisíveis Marias. Relatarei brevemente três dessas histórias dramáticas ocorridas na capital do país e relatadas nesse livro.

Na história de abertura, a autora lembra que em 29 de abril de 2011, aconteceu o casamento entre o príncipe William e Kate Middleton. Com a forte exploração midiática, o amor romântico foi alimentado no imaginário social – especialmente entre mulheres culturalmente mais suscetíveis a esse sentimento. A história de William e Kate começou na Universidade e, ali, com o casamento, o mundo inteiro assistiu ao nascimento de uma princesa.

Pois nesse mesmo dia, em uma região periférica do Distrito Federal, Pedro com cinco anos, Ivana com oito anos e Hellen com treze anos, assistiram ao pai assassinar a mãe com 25 facadas no peito. Essas crianças desde cedo conviveram com a violência do pai contra a mãe, Sandra, e, às vezes, eram elas mesmas diretamente atingidas pela violência. O excesso de violência indicava a intenção de matar do agressor. O feminicida não admitia errar (SUXBERGER, ‘A princesa e a plebéia’, 2018, 19-26).

Em outra história, é apresentado o drama de Magda. Ela e sua única irmã perderam a mãe após a Justiça revogar Medidas Protetivas e liberar o pai para voltar para casa. Ao chegar, imediatamente ele assassinou a mulher, Fabiana. Eliminou-a, acabando vinte anos de casamento e deixando duas filhas órfãs (SUXBERGER, ‘Quem ama cuida e…’, 2018, 53-60). Ao encontrar Magda após o crime paterno, a juíza narra assim ter se dirigido a jovem:

Você tem razão ao dizer que o Estado falhou. Falhou, sim. (…) Eu sinto muito. Só me resta pedir desculpas em nome daquele que mandou sua mãe de volta para casa com seu pai. Pedir desculpas por um Judiciário ainda impregnado de concepções machistas que corroboram para que a violência seja banalizada, minimizada, negada. Desculpas pelo preconceito que ainda existe por parte daqueles que acham que a violência doméstica não passa de um lamento da mulher e que acreditam que a Justiça é ocupada desnecessariamente por essas vítimas (SUXBERGER, 2018:59).

É imprescindível registrar: não há violência contra a mulher no âmbito familiar que não seja também contra crianças e adolescentes – filhos e filhas, enteados, enteadas – convivendo em um mesmo espaço, em uma mesma casa. A violência nas famílias de Sandra e Fabiana, ambas acabando em feminicídio, inevitavelmente, atingiram as cinco crianças e adolescentes. Impossível aceitar a declaração de agressores, reivindicando a guarda de um filho: “Mas eu só agrido a mulher. Nunca fui agressivo com meu filho.” É preciso considerar que a criança viveu mergulhada em clima de hostilidade. Comportamentos mantêm certa constância, em um padrão agressivo, hostil ou em um padrão equilibrado, tranquilo. O homem violento com a mulher, chegando ao feminicídio, dificilmente será amoroso e cuidador com as crianças.

Nos casos apresentados, Sandra e Fabiana suportaram longos períodos de convivência com muita violência. Uma durante treze anos, outra durante vinte anos, acabando assassinadas por seus companheiros dessas jornadas. Nessas histórias reais, constatamos uma postura de certa inércia, de descrença na própria capacidade de agir, de baixa auto-estima dessas mulheres.

Com esperança, verificamos serem maiores as possibilidades de mulheres de geração mais jovem, com mais escolaridade e uma rede de proteção construída junto a outras mulheres na comunidade, reagirem melhor a situações como as relatadas. Lucena (2017) registra mudanças significativas, situações de rupturas afetivas envolvendo jovens mulheres artistas, artivistas atuais, com seus companheiros, no Distrito Federal. Analisa ela:

A luta contra a violência, que consiste na passagem da posição de mera vítima para a de combatente, é hoje a tônica de parte significativa da produção artística de mulheres que, por meio de palavras e de ação, tanto manifestam a dor e a revolta como conclamam para a luta” (p. 306).

Escolho focalizar a slammer[7] Meimei Bastos, nascida no Distrito Federal, em Ceilândia, em 14.08.1991. Ela é atriz, bailarina, estudante de artes cênicas, na Universidade de Brasília. Publicou Mulher quebrada, em 2015, editado pelo Feminino Periférico. Em 2016, no Festival Periférica Feminina, no Museu da República, apresentou seu livro Um verso e mei. Seu trabalho é voltado para a violência contra as mulheres, empoderamento feminino e desigualdades sociais. A construção poética acontece a partir da experiência da violência no cotidiano, inserindo-se nas lutas pela sobrevivência. A escrita torna-se uma prática feminista, que chama para a luta, para o combate e a resistência. Elas se querem assim: fortalecidas, agentes, protagonistas, empoderadas.

Eu num li Beauvoir,

fiz foi presenciar a covarde

“superioridade” masculina

nos roxos de minha mãe.

Foi daí que me inventei feminista,

sem nem saber,

que toda vez que me punha na frente

pra ele não bater

pra defender

com pouco mais de quatro anos

eu já lutava

contra o que tempos depois

iria conhecer pelo nome machismo.

Eu num li foi nada!

fiz foi viver!

ver,

vejo![8]

 

A voz de Bastos representa jovens mulheres que sabem das estruturas machistas e convocam para o enfrentamento dessa realidade hostil. Elas sofrem, mas também lutam contra a violência masculinista. “As palavras que expressam medo face à violência física e sexual também manifestam uma tomada de posição, de defesa e ataque. Em poema publicado no dia 26.05.2017, Meimei repete, por insistentes trinta vezes, “tire suas mãos de meu corpo!”. Em tom de ordem, com o dedo em riste, essa frase é repetida como é repetida a violência de gênero” (LUCENA, 2017:310).

  • Não são falsas memórias. São violências reais.

No Espírito Santo, em Linhares, ao norte do estado, na madrugada de 21 de abril de 2018, George Alves (na verdade Georgeval Alves Gonçalves), 36 anos, pastor da Igreja Batista, violentou e matou o próprio filho, Joaquim Salles, com três anos e o enteado Kauã Salles, com seis anos de idade, logo ateando fogo nos meninos. No dia seguinte aos crimes, o pastor oficiou um culto na Igreja Vida e Paz, onde atuava.

Após mais de um mês de investigações e perícias o inquérito policial foi concluído e conclusivo. A Polícia Civil do Espírito Santo anunciou, em 23 de maio de 2018: as crianças morreram carbonizadas no quarto onde dormiam, na casa da família; o pai e padrasto as estuprou, agrediu e colocou fogo em seus corpos. O pastor estava sozinho na casa com as vítimas. Inicialmente foi declarado não haver nenhum indício de participação ou conivência da pastora, mãe dos meninos. Posteriormente, ela foi indiciada por negligência. A promotora Raquel Tannembaum corresponsabilizou a mãe, por omissão, pela morte dos meninos. Segundo a promotora, Juliana teria consciência dos riscos a que as crianças estariam expostas se deixadas sozinhas com George[9].  Inicialmente não havia registro de outros crimes sexuais envolvendo o pastor, mas ao final, foi verificado que ele estava indiciado por outro crime de estupro, cometido em 2015[10]. O próprio secretário de estado de Segurança Pública, Nylton Rodrigues, assegurou que os laudos periciais e técnicos são incontestáveis. George Alves foi indiciado por duplo homicídio triplamente qualificado e duplo estupro de vulneráveis[11].

O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) no Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual, em 18 de maio de 2018, divulgou pesquisa, relativa aos anos de 2016 e 2017, na qual o crime de estupro se mantém com índices próximos. Entre menores de 18 anos, apresenta o dobro das ocorrências das demais faixas etárias. Essa questão desafiante requer atenção de educadores, gestores, operadores de direito, militantes pela promoção dos Direitos Humanos das Crianças e Adolescente.

    Tabela 1. Estupros de crianças e adolescentes no Distrito Federal.

Distribuição por Regiões Administrativas. 2016 e 2017.

 

 

 

2016

 

2017

 

Total

Ceilândia 265 245 510
 

Samambaia

 

168

 

124

 

292

 

Sobradinho

 

105

 

132

 

237

 

Taguatinga

 

119

 

 

106

 

225

 

 

Planaltina

 

109

 

111

 

220

 

Brasília

 

103

 

101

 

204

 

Paranoá

 

70

 

73

 

143

 

São Sebastião

 

64

 

63

 

127

 

Águas Claras

 

57

 

65

 

122

 

Brazlândia

 

60

 

49

 

109

 

Santa Maria

 

51

 

47

 

98

 

Recanto das Emas

 

29

 

62

 

91

 

Gama

 

43

 

48

 

91

 

Riacho Fundo

 

35

 

41

 

76

 

Guará

 

25

 

25

 

50

 

Núcleo Bandeirante

 

18

 

09

 

27

Total no DF 1.321 1.301 2.622
Média mês 110 108 109

Fonte: MPDFT, 2018.

 

Retorno às histórias reais ocorridas no Distrito Federal, ficcionalizadas por Suxberger, apresentando uma última história, que traz a vivência da jovem Clara. Aos doze anos ela foi violentada pelo pai e passou a sofrer sistemáticos abusos e violência sexual até os 18 anos. A mãe, enfermeira, fazia plantões, que se tornaram oportunidades para as violações. Aos 16 anos, engravidou e, por não ter tido cuidado, recebeu uma surra do pai. Ele tomou as providências para o aborto. Clara tentou suicídio mais de uma vez, mas a história que a angustiava, essa ela não podia compartilhar com ninguém. Para toda família o pai era um santo homem e ele acreditava que ninguém jamais descobriria essas ocorrências. Assim, ia exercendo plenos poderes sobre Clara. Passou a drogá-la e a gravar em vídeo os estupros que ele cometia com a jovem desacordada. Enfim, ele foi traído por sua própria memória. Certo dia esqueceu completamente onde guardara o pen-drive com as gravações que fazia. Quase enlouqueceu a família inteira. Essa cena acendeu um sinal de alarme na cabeça de Clara. Ali poderia ter algo ligado aos crimes que sofria há seis anos. Ela se lançou em busca do tal pen-drive e, finalmente, foi ela quem o encontrou. Assistiu a alguns vídeos e confirmou o que ele fazia. Lá estavam suas amargas experiências de violação, de dor e humilhação provocadas por quem deveria protegê-la. Com as provas produzidas pelo próprio criminoso, Clara fez a denúncia. Deixou a delegacia sozinha, do mesmo modo como chegou lá. Seu pai permaneceu, acompanhado por sua mãe, que explicara preferir ficar apoiando o marido (SUXBERGER, Pónos[12], 2018, 77-84).

Hannah Arendt foi convidada pela revista The New Yorker, em 1961, a cobrir o julgamento de Eichmann em Jerusalém. Esse trabalho colocou-a diante do homem envolvido com o Holocausto, com o genocídio de mulheres e homens judeus. Em tal circunstância, pode se esperar ter diante de nós um ser terrível. Eis, entretanto, o que ela registra sobre sua experiência:

Em meu relato, mencionei a “banalidade do mal”. (…) Aprendemos que o mal é algo demoníaco: sua encarnação é Satã ou Lúcifer (…). Aquilo com que me defrontei, entretanto, era inteiramente diferente (..). O que me deixou aturdida foi que a conspícua superficialidade do agente tornava impossível retraçar o mal incontestável de seus atos (…). Os atos eram monstruosos, mas o agente era bastante comum, banal, e não demoníaco, monstruoso. Nele não se encontrava sinal de firmes convicções ideológicas ou de motivações especificamente más e a única característica notória que se podia perceber (..) era algo de inteiramente negativo: não era estupidez, mas, irreflexão[13] (Arendt, 1992:5-6).

A filósofa destacou em Eichmannn seu caráter de homem ordinário, inexpressivo, incapaz de pensamento crítico, reflexivo. Também esperamos que homens, pais abusadores e violentos, surjam como monstruosos, mas diante da família e da sociedade são tidos como santos homens. Desencorajam suas vítimas a fazerem qualquer denúncia. Não são demoníacos, mas pela incapacidade de reflexão, de pensar criticamente, se esvaziam de humanidade. Se João Guimarães Rosa está certo em seu “Viver é muito perigoso” e se pensar é perigoso, podemos concluir que não pensar é ainda mais perigoso.

  1. O Estado brasileiro admite a violência contra mulheres e crianças

Somente no século XXI, o Estado admitiu a existência da violência contra mulheres e crianças. A partir daí, entre outras iniciativas, aprova a Lei Maria da Penha, em 2006; cria Centrais Nacionais de Atendimento como o Disque 100, em 2003 e o Ligue 180, em 2005; instala uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher no Congresso Nacional, em 2011; aprova a Lei do Feminicídio, em 2015. Medidas resultantes de demandas e lutas das mulheres para se libertarem – e a suas filhas e filhos – da violência sexista.

  • Da gestação, à implantação e às resistências à Lei Maria da Penha

Após décadas de organização e lutas das mulheres, o Estado brasileiro reconhece a existência da violência doméstica e familiar contra elas. Referência importante desse reconhecimento foi a aprovação da lei 11.340, em 07.08.2006, a lei Maria da Penha, que foi precedida por ações governamentais como a criação da primeira delegacia especializada de atendimento às mulheres, em São Paulo, em 1985. Em 2000, seis projetos de lei, incluindo a violência contra a mulher, tramitavam no Congresso Nacional. Entretanto, esses projetos “estavam muito aquém das reivindicações feministas e, em sendo aprovados, iriam alterar pontualmente algumas leis existentes, mas não iriam minorar o problema da violência doméstica contra as mulheres” (CALAZANS DE MATOS e CORTÊS, 2011:41).

Quando o Estado reconheceu a existência da violência contra a mulher foi enquadrando-a na condição de crimes “de menor potencial ofensivo”, a serem encaminhados aos Juizados especiais cíveis e criminais – JEC e JECRIM, no âmbito da Justiça Federal, criados pela lei 9.099/1995, tendo competência para julgar crimes de “menor potencial ofensivo”, isto é, com pena não superior a dois anos, conforme veio a estabelecer, ainda em 2001, a lei 10.259, Lei dos Juizados Especiais Federais. Enfim, a resistência para reconhecer cabalmente os crimes de violência contra as brasileiras era muito grande.

Por outro lado, as mulheres organizaram incansavelmente estratégias para desnaturalizar as violências contra mulheres e crianças com debates em todos os espaços, para retirar tais violências da categoria de crimes de menor potencial ofensivo, com penalidades de pagamento de multa com cestas básicas. Era um desdém com a demanda de respeito à integridade e à vida das mulheres.

No processo de debates e reflexões, feministas e movimento de mulheres organizadas idealizaram a formação de um Consórcio de ONGs Feministas para Elaboração de Lei Integral de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres, com os trabalhos iniciados em julho de 2002. Não cabe nos limites e objetivos deste capítulo historiar a gestação da Lei Maria da Penha, mas não posso omitir que ela foi marcada por forte participação, como dizem Calazans de Matos e Cortês, integrantes do Consórcio:

No “toró de ideias” decidimos incluir definições claras e precisas sobre violência doméstica, e a prevenção deveria ser feita de forma ampla, abarcando as escolas, o trabalho e a sociedade. Assim, “nossa” lei romperia os padrões preestabalecidos das normas legais, alcançaria os poderes constituídos e todas as famílias brasileiras, independentemente de classe, formato, integrantes, etc. (….)  exigiu-se que o estudo tivesse a participação do movimento de mulheres, do Poder Executivo, de parlamentares (onde a Bancada Feminina do Congresso Nacional deveria ter um papel relevante), de membros da magistratura, de operadores do direito e da sociedade civil (2011:43).

 

Aprovada a Lei Maria da Penha se inicia, em setores do Judiciário federal e estadual, forte processo de resistência a acolhê-la, apesar de a lei se harmonizar plenamente com compromissos internacionais dos quais o Brasil é signatário: a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), no âmbito da OEA, de 09.06.1994, ratificada pelo Brasil em 27.11.1995 e a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, no âmbito das Nações Unidas, de 18.121979, ratificada pelo Brasil em 01.02.1984, com reservas derrogadas somente em 1994.

O Estado brasileiro – androcêntrico e sexista – resistiu tanto quanto pôde ao reconhecimento de violências contra as mulheres. E mesmo um reconhecimento frágil não foi dado, mas extraído pelas mulheres com imensurável trabalho.

Destacarei duas reações questionando a constitucionalidade da lei Maria da Penha. No estado de Mato Grosso do Sul, a 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça, em 27.09.2007, declarou a inconstitucionalidade da lei argumentando que desrespeitava os objetivos da República Federativa do Brasil, pois feriria o princípio de igualdade, violando “o direito fundamental à igualdade entre homens e mulheres”. Entretanto, a igualdade formalizada pela lei tem se revelado insuficiente para superar desigualdades materiais. Discriminações positivas tornam-se imprescindíveis para proteção a segmentos vulnerabilizados por uma marginalização social histórica (BANDEIRA DE MELLO, 2005). Tribunais de Justiça têm competência para atuar em âmbito estadual, sem possibilidade para decretar inconstitucionalidade de uma lei federal.

No estado de Minas Gerais, Edilson Rumbelsperger Rodrigues, juiz no município de Sete Lagoas, considerou inconstitucional a lei Maria da Penha e se negou a aplicá-la, alegando constituir-se em “um conjunto de regras diabólicas”. Em matéria publicada em edição dominical de um dos jornais de maior circulação nacional, é afirmado: “Segundo a Folha apurou, o juiz usou uma sentença-padrão, repetindo praticamente os mesmos argumentos nos pedidos de autorização para adoção de medidas de proteção contra mulheres sob risco de violência por parte do marido”. Entre esses argumentos estariam frases misóginas em suas sentenças: “A desgraça humana começou no Éden, por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, tolice e da fragilidade emocional do homem” ou “Ora, para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões” (FREITAS, 2007:13-14). O caso chegou ao Conselho Nacional de Justiça que, em 20.11.2007, instaurou processo disciplinar contra o juiz[14].

O então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, propôs em 2007, por meio do advogado-geral da União, José Antonio Toffoli, ação declaratória de constitucionalidade (ADC 19) da lei 11.340/2006. A lei Maria da Penha somente teve sua constitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em 2012. O ministro Marco Aurélio, relator da ADC, afirmou que a lei Maria da Penha “retirou da invisibilidade e do silêncio a vítima de hostilidades ocorridas na privacidade do lar, e representou um movimento legislativo claro no sentido de assegurar às mulheres agredidas o acesso efetivo a reparação, a proteção e a justiça”. Ele acrescentou que a lei “legitima a adoção de legislação compensatória a promover a igualdade material sem restringir de maneira desarrazoada o direito das pessoas pertencentes ao gênero masculino”, até porque “a Constituição protege, especialmente, a família e todos os seus integrantes”.

Ficou decidido ainda, nessa alta Corte de Justiça, respondendo à ação de inconstitucionalidade ajuizada pelo procurador-geral da República Roberto Gurgel (Adin 4424), que todo processo penal, no âmbito da lei de proteção à mulher em ambiente doméstico-familiar, deve ser processada pelo Ministério Público, independendo de representação da vítima. Marco Aurélio destacou serem “alarmantes” os dados estatísticos referentes à renúncia de representação por parte das mulheres atingidas pela violência, não ocorrendo “por livre manifestação da vítima, mas por ela vislumbrar a possibilidade de evolução do companheiro, quando o que acontece é a reiteração dos atos de violência”.

O artigo 41 da lei Maria da Penha ficou, então, com a seguinte redação: “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9099/95 (Lei dos Juizados Especiais)”.

2.2. Canais de escuta, canais de denúncia: Disque 100 e Ligue 180

Com foco em violência sexual contra crianças e adolescentes, o programa Disque 100 nasceu em 1997, como Disque Denúncia, proposto por entidade da sociedade civil, o Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (CECRIA), em parceria com a Petrobras. Somente em 2003, passou a ser de responsabilidade do governo federal, ligado à Secretaria de Direitos Humanos e em 2006 recebeu a designação de Disque 100. As denúncias diárias passaram de 12, em 2003, para 37, em 2006 e 82, em 2009. É uma conquista importante que vem contribuindo para retirar a vítima do ciclo de violação, acionando conselhos tutelares, defensorias públicas, Ministério Público, entre outros, e permitindo mapear e conhecer melhor a violência em nossa sociedade.

Vinte anos completos em 2017, as queixas que chegaram no ano passado ao programa foram 7,2% a mais do que no ano anterior: 142.665 chamadas. O maior alvo de violações tem sido crianças entre quatro e sete anos: 84.049 denúncias diziam respeito a violações sofridas por meninas e meninos. Esse número significa que a violência contra crianças aumentou 10%, relativamente a 2016[15]. Muitas denúncias envolvem mais de um tipo de violação e mais de uma criança. Em 2017, ao menos 130 mil crianças – a maioria meninas – foram negligenciadas, violentadas psicologicamente e abusadas sexualmente. E em 45% dos casos essas violações aconteceram dentro de casa. O programa oferece um atendimento diário de 24 horas, todos os dias da semana. A mãe ainda é vista por muitos como corresponsável, conivente com a situação, que ela conheceria, mas não denunciaria. Sem autonomia econômica, com medo do agressor, se subordinaria a ele e silenciaria.

O programa Ligue 180, canal de denúncia de violações aos direitos das mulheres, ofereceu mais de 1,1 milhão atendimentos em 2016, significando 51% a mais do que em 2015, quando quase 750 mil mulheres foram ouvidas.  Dois em cada três casos, os agressores eram homens com quem as vítimas mantinham ou mantiveram relacionamento afetivo.

Os dados também apontam para uma triste realidade – a violência de gênero que marca, mutila e mata milhares de brasileiras no âmbito doméstico e familiar também alcança os filhos e filhas das brasileiras. Os atendimentos registrados no 1º semestre de 2016 pelo Ligue 180 revelaram que 78,72% das vítimas de violência doméstica possuem filhos e que 82,86% desses presenciaram ou sofreram violência[16].

  • Instalação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher, no Congresso Nacional em 2011

A CPMIVCM foi criada em 2011 – Requerimento nº 4/2011-CN) -, tendo como presidente eleita a Deputada Federal Jô Moraes (PCdoB/MG) e como relatora designada na mesma reunião de 08.02.2012, a Senadora Ana Rita (PT/ES). Composta por onze senadores, 11 deputados federais e respectivos suplentes, visitou o Distrito Federal e 16 estados – aí incluídos os dez estados mais violentos contra as mulheres e os quatro mais populosos[17]. A CPI também destinada a investigar a violência contra a mulher, instalada em março de 1992, denunciava as dificuldades para obtenção de dados. Vinte anos depois, o problema persistia. Naquela investigação, os dois estados com mais altos índices de assassinatos de mulheres eram Alagoas e Espírito Santo. Na CPMIVCM, continuam os dois mesmos estados com maiores taxas de feminicídios, alterando somente a ordem. Agora, em primeiro lugar está Espírito Santo e em segundo lugar, Alagoas.

O Brasil está em 7º lugar entre países que, no mundo, mais assassinam mulheres. Nas duas últimas décadas do século XX e na primeira década do século XXI foram assassinadas cerca de 91 mil brasileiras, sendo 43,5 somente na primeira década do século XXI. Por meio da CPMIVCM o Estado assume esse flagelo, mas não se liberta do patriarcalismo e da misoginia.

Barsted analisou, há mais de vinte anos, o caráter de não neutralidade do poder judiciário, registrando o desequilíbrio entre esse poder da República e os poderes executivo e legislativo que não só têm sido objeto de estudos acadêmicos, mas também de observação pública, de algum controle social. O judiciário é “uma instância ainda na penumbra, cujos mecanismos de funcionamento escapam à compreensão do grande público” (1994:53). Ficam na sombra, atrás dos panos, os processos de interpretação e aplicação da lei, menos ainda sobre a visão de seus integrantes sobre as diversas questões públicas e que transbordam nas sentenças exaradas. Com isso, ainda na atualidade muitos consideram a instância jurídica revestida de “neutralidade”, “apolítica”. Seria uma instância técnica, simplesmente.

Somente em 11.03.1991, o STJ contestou uma decisão de um Tribunal de Júri que absolveu um operário de Apucarana, Paraná. Ele assassinou a própria esposa e foi absolvido pelo júri popular[18], respaldado na tese da “legítima defesa da honra”. Essa foi uma decisão histórica. Ao longo da história do Brasil Colônia, Império e República[19], o Tribunal de Júri foi reconhecido em sua autonomia. A tese da “legítima defesa da honra” (masculina…) – que esteve profundamente enraizada na cultura patriarcal e naturaliza o fato de o homem exterminar a mulher “adúltera” – foi questionada pelo STJ.  Podemos avaliar o difícil caminho para avanços civilizatórios, para superação de padrões sexistas e misóginos na convivência familiar e social, quando até a última década do século XX, estava normalizada, pela sociedade e judiciário brasileiro, a aceitação da “legítima defesa da honra” para o assassinato de mulheres por seus maridos,. Ainda que tardia, essa iniciativa do STJ significa ruptura com a cultura e a ordem vigentes.

2.4. Vida das mulheres, vidas que importam – a lei do feminicídio.

O feminicídio, ao destruir e aniquilar o corpo e a vida da mulher, torna-se a última fronteira de todas as formas de violência contra a mulher na sociedade patriarcal. Nesse sentido, é um fenômeno social que revela a face mais cruel e brutal da violência de gênero que as mulheres sofrem ao longo de suas vidas. No feminicídio se manifesta a letalidade da violência de gênero que destrói, mutila e viola corpos femininos e feminizados, no contexto misógino de uma sociedade patriarcal, racista, homofóbica e classista.

Os assassinatos de mulheres no Brasil atual têm sido marcados pela crueldade, pelo excesso de violência mostrando determinação do autor em matar, intencionalidade em exterminar a mulher. Assim, quando as mulheres designam feminicídio, apontam a não-acidentalidade e não-ocasionalidade dessa violência radical e o contexto de necropolítica de gênero em que estamos imersos, onde vidas de mulheres têm sido vidas que não importam. As mulheres assassinadas são vítimas sacrificiais de uma guerra, de um femigenocídio (Segatto) resultante de violação de seus direitos humanos, com a responsabilidade do Estado, ainda que ocorrido no espaço privado.

A lei do Feminicídio – lei 13.104, de março de 2015 – qualifica o crime de homicídio contra a mulher como crime hediondo e dá maior visibilidade a esse crime letal de violência de gênero. Constitui-se em ganho e em expressão da resistência do movimento feminista para deter o extermínio de corpos e vidas de mulheres. Entretanto, é preciso ainda muito acompanhamento, muito controle social para que corresponda à demanda das mulheres por “não mais feminicídio”, por não mais impunidade a feminicidas.

  1. Reações masculinistas,[20] backlash às conquistas das mulheres e às políticas de enfrentamento às violências promovidas pelo Estado

“Você pode ser livre e igual o quanto quiser (…), mas nunca se sentiu tão infeliz” (Faludi, 2001:9).

Essa é a mensagem que ora explícita, ora subterraneamente é repetida pelo patriarcado, acompanhando o feminismo contemporâneo em cada avanço civilizatório das mulheres. O que elas buscam as levaria à infelicidade, ecoava como um mantra condenatório. Nora, a personagem de Ibsen[21] em Casa de Bonecas (1876), personifica as aspirações do feminismo naquele momento e até a atualidade. Nora quer ser protagonista, sujeito, independente. Ela recusa a condição de boneca e é a antecipação da feminista. A expressão feminista teria surgido em 1895, em uma resenha literária publicada na revista Athenaeum[22], indicando esse desejo e essa capacidade da mulher de lutar por sua autonomia e dignidade.

A chamada acima contesta que igualdade, protagonismo, liberdade significariam felicidade para a mulher. Assim, as reações conservadoras anti-feministas, em todas as áreas da vida social – cultura, educação, mídia, TV, cinema, moda – fazem um contra-canto à emancipação das mulheres. Esse contra-canto, contra-ponto é uma reação, um contra-ataque, um backlash. Neste contexto, de reação ao processo emancipatório das mulheres, o termo foi utilizado pela jornalista e feminista Susan Faludi em publicação de 1991, chegando ao Brasil dez anos depois. Faludi foca a realidade estadunidense e a onda conservadora da era Reagan e Bush[23]. Assessores desses governantes rapidamente se apropriavam de diagnósticos estritamente psicologizantes propostos por manuais de auto-ajuda, explicando qualquer angústia das mulheres como conseqüência do feminismo. Para voltarem a ser felizes as mulheres deveriam voltar ao lar, dedicar-se ao modelo patriarcal de família – modelo legítimo de família -, em outras palavras, voltar a ser femininas e abdicar de serem feministas. Todo um abismo político oculto aí.

  • Alienação parental

No Brasil uma onda fundamentalista vem trazendo retrocessos graves, em pleno século XXI. Em um quadro de desequilíbrios de poder político e econômico entre mulheres e homens, de desigualdades no exercício de cuidados na maternidade e na paternidade, alienação parental e a síndrome da alienação parental (SAP) – síndrome não-reconhecida por nenhuma associação científica, nem constando do Código Internacional de Doenças da OMS – entraram, sem nenhum rigor científico, na pauta brasileira. Entre confusões conceituais e a utilização dessas expressões como sinônimas, foi aprovado em 26 de agosto de 2010 o projeto de lei 4.053, tornando-se a lei 12.318, a Lei da Alienação Parental, gendrada, masculinista, com caráter coercitivo e punitivo (Sousa, 2010; Sousa e Brito, 2011). Ameaças e punições disciplinadoras vão da redução da pensão alimentícia à reversão da guarda com restrição de contato da mãe com a criança. O Estado brasileiro é ainda um estado patriarcal e nosso sistema de Justiça não escapa ao androcentrismo e ao sexismo.  O Brasil é o único país no mundo que aprovou uma lei da alienação parental, com a qual as acusações não são neutras: são contra a mulher, a mãe, na vasta maioria dos casos, a cuidadora. Reiteram, misoginamente, ser a palavra da mulher destituída de valor. Nesse contexto, as mães são sempre mentirosas e implantadoras de falsas memórias na cabeça das crianças. Falsas memórias de abusos sexuais, especialmente. As relações sociais de sexo/gênero são transversalmente estratificadas em todos os campos sociais. Também no campo jurídico. Há uma hierarquia entre a credibilidade conferida à palavra do homem e a credibilidade conferida à palavra da mulher.

A acusação de alienação surge, frequentemente, em um contexto de pós-divórcio e de resistência de homens-pais a arcarem com a pensão alimentícia para suas filhas e filhos. Não poucos pais se sentem lesados ao pagar pensão alimentícia para suas crianças. Não poucos pais consideram a pensão alimentícia um presente para a mãe. O processo de alienação inclui redução e até mesmo extinção da pensão alimentícia, a guarda compartilhada imposta, podendo chegar ao limite da reversão da guarda, com restrição e até eliminação do contato entre a mãe e a criança, em verdadeiro madrecídio. Nesse contexto, também, abusos sexuais deixam de existir, ao contrário do que indicadores de várias fontes críveis, qualificadas apontam. “…Suspeitas de abuso reportadas às autoridades vêm sendo consideradas provas de alto grau de difamação e afastamento deliberado”, escreve a jornalista Clara Fagundes[24].

As disputas – políticas, jurídicas, econômicas – em torno da alienação parental e da SAP e sua rápida disseminação pelo Brasil por associações de homens-pais e setores de operadores do direito se devem à permanência da misoginia em nossa cultura, ao androcentrismo no sistema de justiça, mas, também, são reações a conquistas alcançadas pelas mulheres, constituindo o fenômeno do backlash (Faludi, 2001).

A alienação parental tem feito vítimas fatais, mesmo antes de ser aprovada e entrar em vigor. O machismo fere e mata. Aqui não é diferente. No Brasil tivemos, no Rio de Janeiro, o caso exemplar da menina Joanna Cardoso Marcenal Martins (20.10.2004/13.08.2010), mártir da alienação parental. O pai, André Martins, obtém a reversão da guarda, em 26 de maio de 2010, três meses antes da aprovação da lei. Após entrar com pedido de pensão alimentícia, a mãe – Cristiane Cardoso Marcenal Ferraz – foi acusada de alienadora, recebendo em 26.05.2010, a punição de não ver a filha durante noventa dias. Ela só reencontrou a filha, já hospitalizada com morte cerebral, duas semanas antes da aprovação da lei, em 26 de agosto de 2010.

A morte da menina Isabela Nardoni (18.04.2002-29.03.2008), em São Paulo, durante o fim de semana que passou com o pai e a madrasta, também mobilizou o país. No Rio Grande do Sul, o menino Bernardo Boldrini (2003-04.04.2014) foi morto pela madrasta, com a participação do pai e de dois irmãos dela. Os quatro indiciados continuam presos, ainda sem julgamento, após quatro anos do ocorrido.

Uma ótima notícia: em 1º.08.2018 foi apresentado a Câmara Federal o PL 10.639/2018, pelo deputado Flavinho (PSC-SP), pela revogação da Lei da Alienação Parental (lei 12.318, de 26.08.2010)[25]. Agora, é acompanhar e pressionar.

  • O que nem para os EUA é bom…

Estranhamente, os defensores da alienação parental fazem rigoroso silêncio sobre a procedência da alienação parental, silêncio em torno do estadunidense Richard Gardner (1931-2003), defensor da pedofilia, como atividade sexual normal; defensor de homens acusados de abusos sexuais, especialmente contra crianças. Daí passou à criação dos conceitos síndrome da alienação parental, “genitor alienador”. Tais conceitos não são assexuados. Gardner propõem que o genitor guardião levaria a criança ou o adolescente, por meio do “implante de falsas memórias”, à rejeição do outro genitor.

É necessário retirar Gardner dos bastidores. Suas propostas não foram aceitas em seu próprio país. A Organização Nacional de Mulheres (NOW) incluiu entre as resoluções de sua Conferência Nacional de 2006 a condenação do recurso à SAP, qualificada como síndrome desacreditada que favorece os agressores de crianças nos litígios de guarda. A NOW recomenda a todo profissional cuja missão envolva a proteção dos direitos humanos das mulheres e das crianças denunciar a utilização da SAP como perigosa e contrária à ética.

Entretanto, em nossa sociedade é ainda à mãe que são atribuídas as atividades do care, do cuidado. Culturalmente é a ela que corresponde o cuidado, é ela a guardiã em mais de 90% dos casos nas situações de separações/divórcios. No Brasil, não construímos uma cultura com homens cuidadores, não construímos masculinidades participativas, igualitaristas, não-violentas. A educação ainda é sexista e fundamentalistas. Conservadores, no Congresso Nacional, nos falam em “escola sem partido”, ou seja, escola em que não se mencione gênero, nem sexualidades, portanto, com remotas possibilidades de se vir a alterar essa situação[26].

Ferreira e Enzweiler(2014) refletem sobre quanto o processo judicial pode revitimizar a mãe e as crianças diante da ênfase nos direitos do pai, secundarizando o direito à proteção dos filhos. O litígio judicial pode ampliar o controle e o poder dos agressores e abusadores de crianças. Em um contexto de misoginia, operadores do direito colocam sob suspeita a veracidade das denúncias apresentadas o que significa sofrimento por revitimização institucional – pelo próprio Sistema de Justiça.

Gardner e seus seguidores – muitos, aqui, no Brasil – apontam a mãe, a cuidadora, como a “genitora alienadora”. A psicóloga e pesquisadora Analícia Sousa declara: “fica evidente o quanto a teoria de Gardner (…) engendra uma visão determinista e limitada com relação aos comportamentos dos atores sociais” (2010:108). Ela enfatiza o fato de vivermos em um momento de sindromização e patologização, com a psicologia posta a serviço de discursos e práticas jurídicas. A psicologização e a despolitização – distorcendo gravemente a compreensão e a interpretação da realidade – vem predominando nesta questão no judiciário brasileiro.

  • A vergonhosa pretensão de silenciar as mães: PL 4488/2016

O trabalho de pelo menos quatro décadas do movimento feminista – no sentido de conscientizar e de encorajar as mulheres a denunciarem violências e abusos – foi colocado sob ameaça com um projeto de lei criminoso, inacreditavelmente colocado em pauta no século XXI, para amordaçar a mulheres. Propunha a criminalização de denunciantes de violências e abusos sexuais (a vasta maioria, mulheres mães), classificados como alienadores. Essa foi uma das mais fortes expressões de backlash. O projeto de lei foi apresentado pelo deputado federal Arnaldo Faria de Sá (PP/SP), em 23.02.2016, consagrando a alienação parental como mentira, fantasia, loucura da mãe. Criminalizada, poderia gerar prisão de três meses a três anos. O próprio autor, sentindo as reações que suscitava, apresentou o Requerimento 8873/2018, retirando-o em 19.06.2018.

Entre as reações e resistências que, certamente, foram consideradas pelo temerário deputado por São Paulo, destaca-se a postura forte, transparente em favor da constitucionalidade e dos direitos humanos das mulheres e das crianças de Enzweiler e Ferreira, concluindo um artigo excepcional: “o PL 4488 contém defeito genético e conceitual, é imoderado, abusivo, contrário à boa razão e seus pressupostos carecem de sentido ético por ausência de seu referente, agredindo a ordem jurídica por mostrar-se ofensivo ao substantive due process of law, com inegável e inútil agravo dos direitos daqueles a quem o Estado deve proteção (crianças e mulheres), numa lógica invertida e perversa que envergonha a nação perante a comunidade internacional” (2016). As feministas deste país agradecemos aos autores que lutando conosco, desencorajaram esse parlamentar a manter em tramitação esse projeto de lei.

  • Guarda compartilhada imposta?

A guarda compartilhada foi legislada no Brasil há dez anos, com a lei 11.698/2008 e, posteriormente, em 2014, a lei 13.058 deu nova redação a artigos do Código Civil de 2002[27], que ainda prescreviam a guarda unilateral. O Estado interfere na questão da guarda dos filhos, arranjos de visitas na realidade pós-divórcio, especialmente nas situações conflituosas. Magistrados brasileiros têm orientado decisões nesse campo pela noção de melhor interesse da criança, expressão onipresente nas varas de família, mas que tem se revelado uma noção imprecisa, com diferentes interpretações, conforme valores e representações de quem a emprega.

Com o significativo aumento de divórcios a guarda compartilhada se tornou símbolo de equidade para alguns segmentos sociais. Entretanto, a socióloga canadense Denyse Côté alerta:

O conceito de igualdade desenvolvido nas democracias liberais presume que os atores sociais têm as mesmas possibilidades. Mas as diferenças sociais, políticas e econômicas entre homens e mulheres, mães e pais, não estão envoltas em magia. A guarda compartilhada não pode ser solução universal, menos ainda ser solução para a desigualdade entre os sexos (…) A cooperação forçada entre pais hostis pode conduzir a novos litígios e a novos conflitos (…) mais do que implicar pais no cuidado cotidiano das crianças, a guarda compartilhada imposta aumenta o direito do pai a controlar as decisões da mãe guardiã e submetê-la a novas pressões, a vigilância crescente do pai e mesmo a direitos de visita de um ex-cônjuge violento (Côté, 2000:32-34).

Nas decisões sobre guarda compartilhada – especialmente de crianças pequenas – deve ser considerado o histórico do homem-pai durante a vigência do casamento. Ainda vigora em nossa sociedade uma educação sexista, sem   preocupação em formar homens cuidadores. É uma questão cultural profunda. Há diversas ocorrências com pais que pretenderam participar de cuidados com seus filhos, deixando bebês à creche e esquecendo-os no interior do carro, levando-os a óbitos. Nesses casos, pais contaram com a benevolência da imprensa, de autoridades, imediatamente dissociando esses esquecimentos fatais à negligência e abandono, diferentemente a tratamento dado a alguns casos com mães, mesmo sem irem a óbito[28]. A expectativa e as representações sociais são, ainda, de mãe guardiã, cuidadora. E é ainda o que a realidade nos apresenta na vasta maioria das situações.

Se, por um lado, o horizonte ideal da família pós-divórcio seria de convivência e trânsito das crianças com a mãe e com o pai, por outro lado, a realidade mostra uma pluralidade de situações, na vigência do relacionamento do casal, com casos de violência cotidiana contra a mulher e a criança. Um pai violento com a mãe pode esperar amor e respeito de seu filho/a? O afeto e a convivência podem ser decretados, lavrados a partir da decisão de um/a juiz/a? No século XXI, cabe a consideração ética de a criança e o pré-adolescente serem sujeitos de direitos de escolha nas varas de família. O Conselho Nacional de Justiça – sabiamente, em meu entendimento – decidindo sobre reconhecimentos de laços socioafetivos, estabeleceu: “Se o filho for maior de 12 anos, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socio-afetiva exigirá seu consentimento”[29]

Quando estou encerrando a redação deste capítulo, vejo o Senado Federal aprovando, em 08.08.2018 o PLC 13/2018 da Deputada Laura Carneiro (DEM/RJ), determinando a perda do poder familiar por pessoas que cometem crimes contra o pai ou a mãe de seus filhos ou crimes contra seus próprios filhos. O PLC segue, agora, para a sanção presidencial. No âmbito do Código Civil, o PLC prevê a perda do poder familiar por crimes de homicídio, feminicídio, lesão corporal grave, crimes envolvendo violência doméstica ou familiar, crime de estupro ou outro crime contra a dignidade sexual.[30] A relatora do projeto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), senadora Marta Suplicy (MDB-SP) declarou: ..” a reprovabilidade da conduta do homem que pratica crime doloso contra a mulher, ex-mulher, companheira, ex-companheira torna-o desprovido de condições morais para criar e educar os filhos comuns”.[31]

  1. Para encerrar: lembrar sempre…
    • De quem são as mágoas e os ressentimentos?

Com a proclamação da República, o Estado brasileiro incorporou o preceito da Igreja Católica, conferindo ao casamento o caráter de indissolubilidade, mesmo nossa primeira Constituição (1891) estabelecer separação entre casamento civil e religioso[32].  A laicidade do Estado tem sido uma construção difícil e a dissolubilidade do casamento somente veio em 1977, com a lei 6.515. A Lei do Divórcio acatava a dissolubilidade conjugal após três anos de separação judicial; desobrigava a mulher de adotar o sobrenome do marido; estabelecia a igualdade sucessória entre filhas e filhos.

Acompanhando dados produzidos pelo IBGE em um período de trinta anos, constatamos que o porcentual de divórcios relativamente aos casamentos passou, entre 1984 e 2014, de 3,3% para 31%, aumentando mais de nove vezes. Quem propõe o fim do casamento? A mulher tem tomado essa decisão, ocupando um território supostamente masculino: o lugar de encerrar um relacionamento afetivo[33]. Em cada quatro divórcios, três são de iniciativa da mulher. Quem ficaria com ressentimentos e mágoas? Não há sustentação para a afirmação de Gardner e seus seguidores de que acusações de abusos seriam frutos de mães ressentidas.

  Tabela 2. Brasil. Relação casamento/divórcio. 1984/2014.

Ano Casamentos Divórcios Porcentagem de

divórcios

1984 936.070 30.847 3,3%
1994 763.129 94.126 12,3%
2004 806.968 130.527 16,2%
2014 1.106.440 341.181 31%

Fonte: IBGE. Diretoria de Pesquisa de População e Indicadores Sociais.

Estatísticas de Registro Civil. 1984-2014.

 

Há uma profunda inconformidade do homem com a decisão da mulher em acabar um relacionamento, um casamento e, apesar dessa inconformidade, mulheres têm saído de relações violentas. Não corresponde à realidade afirmações sexistas de que mulheres são espancadas e mortas por não saírem de relações violentas. Afirmações desse tipo pretendem culpabilizar a vítima. Mulheres enfrentam a inconformidade masculina, encerram um casamento e chegam ao limite de pagar com a vida por se oporem à vontade masculina. Grande parte dos feminicídios são causados pela inconformidade masculina diante da desobediência da mulher com a separação, rompendo a dominação masculina, causando uma fissura no poder patriarcal.

  • Aproximar instâncias jurídicas, um imperativo

A separação entre Juizados de Violência contra as mulheres e Varas de família é insustentável. Esse divórcio se mantém  pela escassa vontade política de resolver o problema da dominação masculina, de reduzir o poder do patriarca. Revela a precedência em que ainda são mantidos os supostos direitos do pai, ainda que ele seja violento e abusador. Continuamos a saber muito pouco sobre o pai brasileiro (Thurler, 2009). Admitimos conviver com em torno de 15% de nossa população sem reconhecimento paterno – por volta de 30 milhões de pessoas[34].

Torna-se urgente aproximar todas as instâncias de enfrentamento à violência contra a mulher às varas de família, que devem ser notificadas dos Boletins de Ocorrência (BO) e das Medidas Protetivas de Urgência lavradas. É preciso dar consistência a essas informações e construir um cadastro local e estadual com esses registros que auxiliarão a tomar decisões em casos de demandas por guarda compartilhada ou reversão da guarda. Em hipótese alguma o Estado pode entregar uma criança a um homem negligente, violento ou abusador. Esse cadastro local e estadual com Boletins de Ocorrências e Medidas Protetivas favoreceria o acesso a histórico de homens violentos, o que é imprescindível considerar, em todas as decisões de guarda de crianças e, também, na realização de um trabalho mais preventivo e menos punitivo na salvaguarda da vida das mulheres. Em grande parte dos feminicídios há algum BO lavrado contra o feminicida e a rede de proteção falhou. A mulher perdeu a vida, crianças ficaram órfãs. O Estado deve ser responsabilizado por essas mortes anunciadas e evitáveis.

Questões de família – onde as relações são estratificadas, hierarquizadas – correm em segredo de justiça, em um Judiciário androcêntrico. Temos, portanto, somente estimativas. Atualmente, em torno de quatro mil crianças brasileiras estariam separadas de suas mães, as efetivas cuidadoras, guardiãs. Talvez nem Trump tenha ido tão longe na separação de mães imigrantes ilegais de seus filhos. No Brasil está acontecendo uma tragédia, uma guerra contra mães e suas crianças. Não podemos assistir silenciosos a violações à Convenção Internacional dos Direitos da Criança[35] e ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

  • Recomendações finais

O Estado não pode patologizar relações abusivas e violentas – que têm culminado em um verdadeiro femigenocídio a que, desgraçadamente, testemunhamos. Vivências violentas e abusivas no âmbito da família são resultantes de relações de poder, que têm penalizado mulheres, crianças e adolescentes. Varas de família não podem induzir ou pressionar a mulher e/ou a criança a conciliar, pretendendo salvar a família a qualquer preço. Adotando essa postura o Judiciário não só contribui para a perpetuação da dominação masculina e dos padrões patriarcais de organização social mas, no limite, para a continuidade de feminicídios.

O espaço jurídico não é um espaço terapêutico, portanto, nele não cabem tratamentos de saúde. Exercício violento do poder não é doença. É autoritarismo, dominação masculina, patriarcalismo. Pessoas com indicação de tratamento devem ser encaminhadas para serviços de saúde. Não é defensável que no espaço jurídico sejam utilizadas técnicas com cientificidade não comprovada, que têm levado, perigosamente, vítimas à culpabilização e à responsabilização pelas próprias violências e abusos sofridos.

Sottomayor registra com toda pertinência:

Nos casos em que o progenitor acusado de abuso pertence a uma classe social média/alta, alguns técnicos e magistrados têm dificuldade em aceitar que possa ser um abusador de crianças, devido aos estereótipos culturais do criminoso, nos quais não se encaixa um progenitor que goza de boa imagem social. (….) Sabe-se, hoje, com toda a segurança, que os abusadores de crianças podem ser indivíduos de todas as classes sociais, não revelam qualquer psicopatia e têm um comportamento social e laboral, sem sinais de violência ou agressividade (2011:101).

Homens-pais violentos e/ou abusadores não podem ter a guarda da criança nem compartilhada, menos ainda a reversão da guarda, como tem acontecido, dramaticamente. Em alguns casos, esses pais podem vir a ter a possibilidade de visitas supervisionadas[36].

FOTOS: Ações pela revogação da Lei da Alienação Parental na Câmara Federal, na Praça dos Três Poderes em 2019 com coletivos “Mães na Luta”, “Vozes de Anjos”, “Voz Materna”. Fotos arquivo pessoal da autora.

Notas:

[1] Artigo publicado em FERREIRA, Cláudia Galiberne e ENZWEILER, Romano José (organizadores). A Invisibilidade de Crianças e Mulheres Vítimas da Perversidade da Lei de Alienação Parental. Pedofilia, Violência e Barbarismo. Conceito Editorial, Florianópolis: 2019, p. 33-56.
[2]  Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília, Mestra e graduada em Filosofia, pela Universidade Federal de Santa Maria. Publicou Em Nome da Mãe. O não-reconhecimento paterno no Brasil. Tem participado com capítulos em livros e artigos em revistas científicas no Brasil e no exterior (Canadá, Colômbia, Espanha, França, México, Perú). Entre outros programas, concebeu e propôs o programa Pai Legal ao Ministério Público do DFT, implementado no DF em 2002 e vigorando desde então.
[3] O II EFLAC, em 1983, em Lima, Peru; o III EFLAC, em 1985, em Bertioga (SP), Brasil; o IV EFLAC, em 1987, no México; V EFLAC, em 1990, em San Bernardo, Argentina; o VI, em 1993, na Costa do Sol, El Salvador; o VII, em 1996, em Cartagena, Chile; o VIII, em 1999, em Juan Dolio, República Dominicana; o IX, em 2002, na Costa Rica; o X, em 2005, em Serra Negra (SP), Brasil; XI, em 2009, Cidade do México, México; o XII, em 2011, em Bogotá, Colômbia; o XIII, em 2014, em Lima, Peru.
[4] Amplamente divulgado pela mídia. Entre outros espaços, disponível em http://www.jb.com.br/pais/noticias/2018/07/08/estudante-de-medicina-e-morta-por-asfixia-pelo-namorado-em-campinas-sp/  Acesso em 12.07.2018.
[5] Informação disponível em   https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,cabo-da-pm-mata-companheira-a-tiros-na-zona-norte-de-sao-paulo,70002395424  Acesso em 12.07.2018.
[6] Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/08/09/brasil-tem-mais-de-600-casos-de-violencia-domestica-por-dia-em-2017.ghtml
[7]  Slam vem do inglês to slam, batalha de poesia falada e performática. Iniciou na década de 1980 nos Estados Unidos da América. O slam é já um movimento artístico, social e cultural. Misto de arte poética oral, musical e teatral. É uma poética da oralidade, antes de ser escrita, transcrita.
[8] BASTOS, 2016, 30/03/2016, in LUCENA, 2017:308.
[9] https://www.gazetaonline.com.br/noticias/norte/2018/07/pastor-george-e-indiciado-por-mais-um-estupro-em-linhares-1014139051.html
[10] Idem.
[11] O caso esteve amplamente na mídia. Neste link, informações sobre esse caso https://novo.folhavitoria.com.br/policia/noticia/05/2018/pastor-abusou-sexualmente-e-matou-filho-e-enteado-em-linhares
[12] A autora esclarece: “na mitologia grega, é o deus da agonia, sofrimento, tormento e tortura” (2018:77).
[13]  Ausência de pensamento, em outras traduções.
[14] Revista Consultor Jurídico, 20.12.2007.
[15]  http://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/ouvidoria/balanco-disque-100
[16]  http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2017/03/ligue-180-realizou-mais-de-um-milhao-de-atendimentos-a-mulheres-em-2016 .
[17] Conforme o Mapa da Violência: homicídios de mulheres. Instituto Sangari, 2012.
[18] Há controvérsias quanto à origem do Tribunal do Júri: teria surgido na época mosaica, entre os judeus, no Egito? Então, o Conselho dos Anciãos julgava, em nome de Deus. Em Roma, Grécia ou entre os germânicos? Na verdade, como o conhecemos hoje, o Tribunal do Júri (ou júri popular) surgiu na Inglaterra, ao tempo do Concílio de Trento, no século XIII. Os Juízos de Deus, rigorosamente teocráticos, foram substituídos pelo Conselho de Jurados. Portugal mantinha alianças com a Inglaterra e conflitos com Napoleão, que culminaram com a vinda da família real para o Brasil, em 1.808, e com o fato de aqui ser adotado, o Tribunal do Júri. 
[19] No Brasil Colônia, o Tribunal do Júri já estava presente na Lei de 18 de junho de 1822. Deduz-se o poder dele pelo fato de apelações serem então admitidas estritamente à clemência real. No Brasil Império, a Constituição de 1824 integrou o Júri ao Poder Judiciário, podendo julgar causas cíveis e criminais. Desde a primeira Constituição republicana, de 1891, o Júri foi mantido, com sua soberania. A Constituição de 1937 silenciou quanto ao Tribunal do Júri e a de 1946 restabeleceu a soberania do Júri, prevendo-o entre os direitos e garantias constitucionais. Mesmo a Constituição de 1967 manteve o Júri no capítulo dos direitos e garantias individuais, instituindo: “São mantidas a instituição e a soberania do Júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida”. A Emenda Constitucional de 1969 omitiu referência à soberania do Júri. A Constituição Cidadã de 1988 reconheceu a instituição do Júri, disciplinando-o no artigo 5º, XXXVIII (BISINOTTO, 2011).
[20] Como estou livremente traduzindo backlash, no original em inglês.
[21] Henrik Ibsen, dramaturgo norueguês, 1828-1906.
[22] A revista Athenaeum circulou em Londres entre 1828 e 1921.
[23] Ronald Reagan, na presidência dos EUA entre 1981-1989 e George H. W. Bush, entre 1989 e 1993.
[24]  Referências no jornalismo investigativo nesta temática são os trabalhos realizados por Clara Fagundes – Lei pode obrigar crianças a conviver com abusadores, no link www.azmina.com.br/especiais/alienacao-parental/ – e por Tomás Chiaverini – Lei expõe crianças a abuso. A lei da alienação parental, que deputado pretende tornar mais severa, abre brechas para que vítimas de abuso sexual sejam obrigadas a viver com pais suspeitos de agressão, no link https://apublica.org/2017/01/lei-expoe-criancas-a-abuso/ .
[25] Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2182126. Acesso em 09.08.2018.
[26] O PL 7189/2014 foi apresentado pelo Deputado Erivelton Santana (PSC/BA), pastor evangélico ligado à igreja Assembléia de Deus, propondo o Programa Escola sem Partido, alterando a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), proibindo qualquer conteúdo referido a “gênero” ou “orientação sexual”, em escolas de todo o país. Ainda tramitando no Congresso Nacional, com grande resistência do movimento social e sindical e dos profissionais da educação.
[27] Artigos 1583, 1584, 1585 e 1634.
[28] Em 13 de abril de 2006, na zona norte de São Paulo, capital, ocorrência de um caso, envolvendo o pai e um menino de um ano e três meses (Esquecido pelo pai no carro, bebê morre. Folha de São Paulo, Cotidiano, 14.04.2006); em 30 de maio de 2000, em Franca (SP), envolvendo pai e uma menina de um ano e cinco meses (Criança morre asfixiada dentro de carro. Folha de São Paulo, 1º.06.2000); em 30 de outubro de 1997, envolvendo o pai e uma menina de dez meses, em Ribeirão Preto (Ribeirão teve caso igual em 1997. Folha de São Paulo, 1º.06.2000) Thurler, 2006.
[29]   CNJ Provimento 63/2017, artigo 10, §4º, de 14.11.2017.
[30]  Tornou-se a Lei 13.715, de 24 de setembro de 2018, alterando dispositivos do Código Penal, do Código Civil e do ECA, sobre perda do poder familiar.
[31] Matéria disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/08/08/quem-cometer-crime-contra-conjuge-perdera-a-guarda-dos-filhos-decide-senado, acesso em 09.08.2018.
[32] Artigo 72, §4º: “A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.”
[33] Do mesmo modo, em um contexto de cultura patriarcal, é também território masculino, o iniciar um namoro e propor um relacionamento amoroso, um noivado, um casamento.
[34] Isso significa a população do Uruguai (3,4 milhões), do Chile (17,9 milhões) e do Paraguai (6,8 milhões) juntas. Ou toda a população do Peru (30 milhões). E eliminamos a possibilidade de novas pesquisas em torno dessa questão: os campos “filiação paterna” e “avós paternos” da certidão de nascimento foram retirados. Assim como os maternos.
[35] Adotada pelas Nações Unidas, em 20.11.1989 e ratificada pelo Brasil em 21.11.1990. Desejo destacar o espírito dessa Convenção que enfatiza a responsabilidade parental, sem mencionar a expressão autoridade parental, muitas vezes dissimulação do pátrio poder.
[36] Françoise Dolto (1908-1988), psicanalista infantil francesa, criou em Paris a Maison Verte, para acolhimento de crianças pequenas, pais, mães, uma iniciativa muito inspiradora.
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