por Maria Fernanda Elias Maglio
*conto do livro “Quem tá vivo levanta a mão” um dos 10 finalistas do prêmio Oceanos 2022
Primeiro uma formiga. Três crianças e uma saúva do tamanho da falange de um dedo. Colocaram a formiga em uma bacia de plástico e o Lino falou: minha irmã começa. A Inês jogou o dado, a face de seis bolinha para cima, pegou um graveto e deu seis estocadas na formiga que não morreu, porque o graveto não tinha corpo suficiente para molestar carne de inseto. Daí foi a vez do Lino, jogou o dado três e escolheu uma mamona verde, esmagou três vezes, o leite da mamona se misturando com a própria formiga esmagada sem sangue nenhum. Não deu tempo de o Joca arremessar o dado na bacia, a formiga já estava morta.
Eles chamaram de aquilo. E diziam baixo, a palavra sussurrada um para o outro, como se intuíssem que podia virar coisa muito errada, porque formiga se mata sem querer, grilo, louva-deus, mas matar querendo devia ser pecado bravo. Ainda mais criança.
Quando começou, não era aquilo. Era só uma terça-feira flácida e quente, os três primos guardados na sombra da mangueira do sítio da avó, beliscando a pele da manga com os dentes, sugando o leite da fruta que escapava do buraco. A Inês falou, a gente bem que podia inventar uma coisa, uma brincadeira. E o Joca deu ideia de fazerem uma história, cada um conta um pedaço e o outro emenda e não tem fim nunca. O Lino achou que era uma brincadeira chata e disse, a lembrança amarela da manga nos cantos da boca: e se a gente caçasse formiga? Joca não gostava da palavra caçar, porque dava impressão de maldade, coisa ruim feita de propósito. Caçar que você diz é pegar, Lino? É, pegar formiga, caçar, a gente coloca um monte numa bacia, faz que nem gado, dá capim, água, deixa elas presas lá.
Talvez tenha sido o Lino a dar a ideia do dado, também pode ter sido a Inês ou até mesmo o Joca, alguém se lembrou do dado do jogo de ludo, e se a gente fizer uma corrida de formigas jogando o dado?
Joca ganhou a competição uma vez, quando tirou dois seis seguidos. A Inês ganhou duas, porque tinha muita sorte com o número cinco. Lino venceu todas as outras partidas, não porque tinha sorte, mas a cada vez que tirava um ou dois, dizia que não tinha valido e jogava de novo até valer um cinco ou seis, de vez em quando aceitava um quatro.
O Joca gostou da brincadeira, ficou pensando que não machucava a formiga, porque era só mover com gentileza, empurrando as patinhas para frente com a ajuda de uma folha. O Lino não tinha gentileza, só mesmo pressa, e empurrava sua formiga com dois dedos e um pouco de grosseria, anda logo, sua lerda.
Depois o Lino enjoou da brincadeira e a Inês enjoou junto com o irmão, o Joca não, mas fingiu que sim: é, agora ficou chato. E se a gente jogar o dado e escolher uma coisa que pode ser pedra ou pau, se der três, cutuca três vezes, não pode ser forte pra dar tempo do outro jogar. Lino não usou a palavra matar, mas ela estava lá.
Foram dezessete formigas exterminadas na bacia amarela da avó e diferentes modos de execução: pedra, figo verde, toco, caco de vidro, mamona, caroço de manga, pau, uma ponta enferrujada de anzol. Joca tinha um ruído dentro dele, fundo o suficiente para não ser ouvido com nitidez, que dizia que formiga morta na pisada do pega-pega, assim, na pressa de pegar o outro, sem se dar conta de que os chinelos esmagavam uma, duas, três, não era pecado, porque carecia de intenção. Mas aquilo era diferente.
Era janeiro, o quintal da roça sem muro, o universo se esticando para além da mangueira, do riacho, da plantação de milho. Lino pensou que não precisavam ficar só em formiga, porque agora perdeu a graça, já conhecia o flagelo de formiga sem uma perna, sem duas pernas, sem perna nenhuma. E se a gente fizesse aquilo com outro bicho? Joca, pressagiando a disposição de maldade do primo, na tentativa de evitar animal maior, sugeriu gafanhoto. Não, agora tem que ser bicho de sangue. Inês assombrada por dentro, por fora nada, sabia que o irmão falava sério, seríssimo, com aquele sortimento de vida no universo que se desdobrava no depois da mangueira, por que ele ia querer ficar só em inseto?
E se a gente pegasse passarinho? Quem falou foi o Lino, a entonação foi de pergunta, mas era uma afirmação. Joca se apressou em dizer boa ideia, no alegre de pensar que passarinho voa alto e longe, tem asa boa de fugir e de ficar vivo. Mas o Lino era desembaraçado na arte de arapuca, e na terceira tentativa encarcerou uma rolinha cor de canela. Joca queria chorar, não chorou, bateu palmas de alegria postiça, enquanto Inês ajudava a prender um barbante na perninha do pássaro e amarrar na pimenteira. Talvez Inês quisesse chorar também, esfregou os olhos com os indicadores: ficar perto de pimenta sempre faz meu olho arder.
E o Lino disse, apontando o dedo em flecha: agora é sua vez de começar. Joca não queria começar, mas achava melhor o começo do que o fim, deus que me livre de ser dono da morte da rolinha castanha. Eu jogo o dado, Lino? Joca perguntou por perguntar, porque sabia que sim, que tinha que jogar o dado; a rolinha dentro da bacia, presa pela cordinha amarrada ao pé de pimenta. Torcia pelo número um, no máximo dois, e ia tomar coragem de perguntar se valia folha. Vale folha, Lino, pena, coisa mole? Não, agora só vale isso e o isso era um prego enorme pintado de ferrugem que Lino tirou do bolso dos shorts. Joca pensou que o isso do Lino faria aquilo de um jeito muito pecado, muito triste, muito morte.
Joca lançou o dado dois e respirou ufa, deu uma cutucada na asa do passarinho com a gentileza de uma avó acordando um neto dorminhoco. Assim não vale, Joca, tem que ser forte de machucar, senão vai ter que jogar de novo. E o Joca com medo de um seis, deu um golpe e depois outro, a rolinha chorando em muitos pius. Agora é a Inês. E a sortuda tirou o número um, enfiou o prego uma vez só, a rolinha muito triste e muito viva, sangrando sem nenhuma pressa de morrer. Agora sou eu. O Joca torcendo para o Lino tirar logo um cinco, matar bem matado assim, pá, pá, pá, pá, pá, e com sorte a rolinha pararia de chorar piu no segundo ou terceiro pá. O dado mostrou de novo dois e Lino tinha duas chances, e se não conseguisse, seria ele, o Joca, o responsável por interromper o flagelo do pássaro. Mas o Lino trazia o anelo de morte no coração e nos dedos que seguravam o prego pá, pá. Não tão rápido, o suplício dilatado em um piu comprido, vida e morte se esparramando no quintal da roça sem muro, para além da mangueira, do riacho, da plantação de milho.
No outro dia, as crianças foram embora. A mãe do Joca foi buscar e também o pai do Lino e da Inês, eles disseram tchau uns para os outros, e dá um abraço nos seus primos, Joca deu; primeiro em Inês, depois em Lino, que sussurrou forte, não vai falar nada sobre aquilo.
Depois era janeiro mais uma vez e as crianças de novo no sítio. Lino tinha crescido uns bons dedos e deixava Joca em uma cabeça e meia. Brincaram de pescar aranha com chiclete mastigado, guerra de mamona, pique-pega, ninguém falando nada sobre aquilo, mas aquilo ainda estava lá. Joca teve receio de que Lino retornasse ao sítio com sanha renovada de maldade, que pretendesse afundar o prego em sapos, canários e bem-te-vis, de repente uma galinha ou um porco filhote, mas não. Lino tinha os olhos quietos de quem escamoteia o desejo. O que desejava Lino? Joca passou um ano inteiro pensando no que diria quando Lino falasse sobre aquilo e tomaria fôlego de coragem para dizer: foi muito errado, muito feio, muito ruim, nunca mais, nunca mais, nunca mais, diria três vezes para ficar assim, bem sublinhado, que não faria de novo, de jeito nenhum. Joca não precisou dizer o errado, o feio, o ruim, nunca mais três vezes, porque Lino não disse nada sobre aquilo. Cada vez que Lino falava e se a gente fizesse, Joca esperava que ele completasse com aquilo, e se a gente fizesse aquilo. Mas Lino dizia uma pipa, um robô de lata, um curralzinho de mentira, e se a gente fizesse um rio cavando a beirada do corguinho, botava umas pedrinhas brancas no fundo. Nem parecia o Lino. E quanto mais o Lino não dizia, mais o Joca queria que ele dissesse. Não queria fazer aquilo, queria que o Lino o obrigasse a fazer.
Foi no último dia de férias. Joca acordou resoluto em dizer algo sobre aquilo, nem que fosse: a gente nunca mais vai fazer de novo, né, Lino?
A Inês disse que hoje não ia brincar, vou ajudar a vó encher palha de pamonha. Eram só Joca e Lino no sombreado da mangueira e uma imensidão de formigas e sapos e porcos e o bezerro cria da Estrela que tinha nascido no mês passado. O coração de Joca batendo muito, desejando muito, mas queria que o desejo brotasse do Lino, que ele despejasse vontade já pronta: vamos fazer aquilo uma última vez?
E o Lino obstinado no silêncio de sonegar a intenção, Joca incapaz de segurar na boca o embolado de palavra, desejo e culpa, finalmente falou: e se a gente fizer uma última vez?
Os olhos do Lino inflamaram: fizer o que, Joca? Você sabe, Lino. Sei o quê? E Joca disse. Aquilo. Foi da boca dele que saiu, foi ele quem nomeou o que estava alastrado no chão aquoso das raízes da mangueira, nas formigas que vinham e voltavam com cargas de folhas, ignorantes do perigo de morte, nos milhos dependurados nos pés, no riacho fresco de pedras ovaladas e brancas, nas pimentas pendentes da arvorezinha feito bolas de natal.
Só se eu puder escolher o bicho. Joca fez sim com a cabeça, porque agora a boca não dava conta de dizer mais nada. Lino saiu para buscar a vida que seria imolada e Joca querendo torcer por uma rã, uma cobra cega, bicho que não sangrasse muito, que não doesse muito, que não morresse muito, que não deixasse a gente assim, triste como se nunca mais pudesse ter alegria.
Lino voltou. Joca não saberia dizer se em quinze minutos ou meia hora, talvez tenha se passado mais de uma hora, duas, três. Uma vida inteira esperando o retorno do Lino, e Lino vindo com uma coisa enrolada em um pano branco, estava mais alto e mais quieto. E agora parecia muito o Lino. A cobiça de morte nos olhos e nos pés calçados de chinelo, nas mãos com o embrulho branco, no prego imenso no bolso dos shorts.
Joca querendo no fundo que Lino desembrulhasse um porquinho, uma ovelha da criação do seu Luís Retireiro, de repente um filhote de raposa, uma paca, bicho que espirrasse muito sangue e morresse devagar em um choro imenso. Mas Joca não queria querer e tinha medo do próprio desejo, e mais ainda do desejo de Lino, porque Lino não tinha medo nenhum.
E era um balido de choro, mas o que chorava no pano não era ovelha nem porco. Não era bicho nenhum. Um filhote nascido de gente, um bebê do tamanho de uma abóbora pescoço, um par de olhos pretos lavados de lagrimazinhas minúsculas, uma boca que chorava baixo sem fazer piu. Era uma menina e tinha acabado de nascer, porque tinha um resto de catarro branco grudado na pele cinza-roxa, e Joca já tinha visto criança assim em foto do livro da escola, nascida de pouco.
De quem é, Lino? Foi o que Joca conseguiu dizer, porque criança tão pequena tem que ter dono, mãe que dá leite e canta música e bota véu no berço para não entrar escorpião. E Lino falou, eu achei no mato, não é de ninguém, agora é nossa. E Joca querendo dizer, se é nossa a gente cuida, pede pra vó costurar roupa, ferve leite bem fervido, tem a mamadeira do cabritinho sem mãe, ainda tem, Lino, a mamadeira ainda tá na despensa atrás do defumador de linguiça? Mas Joca não disse nada, porque já estava aterrado na maldade que encharcava o ar quente daquele janeiro, o prego querendo escapar do bolso do Lino para fazer aquilo do jeito mais pecado, mais triste, mais morte.
E agora não tinha dado, não tinha bacia, só a criança chorando em gemido no pano aberto no chão, o Lino de prego nos dedos, dizendo, eu começo. E Joca imaginando o pano escurecendo de vermelho, o bebê morrendo para sempre, uma morte que não ficaria ali, guardada da sombra da mangueira, que se derramaria para todas as árvores do sítio, que nadaria o riacho até encontrar o mar, que impregnaria os navios, as gentes, as cidades, as casas do mundo inteiro. Uma morte que nunca pararia de gritar nem de morrer, que seria para sempre pecado bravo. Ainda mais criança.
E Lino suspendeu o prego, mirava o pescoço, a boquinha do bebê fazendo bolhas de cuspe. Joca poderia dizer não e segurar a mão do Lino, gritar a avó, encontrar a mãe do bebê para que ela desse peito e cantasse música e cobrisse o bercinho com mosquiteiro. Mas tinha os dentes grudados uns nos outros com uma cola do espanto e os pés fincados no chão, feito as raízes da mangueira de cento e trinta e sete anos.
A única coisa que podia fazer era fechar os olhos. E fechou.
Voltou a abrir quando escutou Lino dizer: minha nossa senhora, e uma batida impaciente de asas. Não como um pássaro ou uma borboleta, o barulho de asas enormes brotadas das escápulas de uma menina recém-nascida, cujos olhos escuros já não choravam e nem na boca tinha cuspe e gemido. A menina voando cada vez mais alto, as asas pretas e grumosas, boas de fugir e de ficar viva. O Lino ainda com o prego na mão levantada para o alto, nenhuma intenção cruel, a maldade desmontada pelo susto.
E Joca desejando que acabasse logo, que a menina voasse de volta para a mãe que devia morar no céu, uma mãe que dava leite de nuvem, cantava uma música que falava de um holocausto de formigas e protegia o berço com véu de espantar meninos maus.
Autora:
MARIA FERNANDA ELIAS MAGLIO
nasceu em Cajuru-SP, em agosto de 1980. É escritora e defensora pública, trabalha fazendo a defesa de pessoas pobres que estão cumprindo pena. Seu primeiro livro, “Enfim, imperatriz” (Patuá, 2017), venceu o Prêmio Jabuti 2018 na categoria contos. Publicou também o livro de poesias “179. Resistência” (Patuá, 2019), vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional de 2020. Seu último livro de contos “Quem tá vivo levanta a mão” é um dos 10 finalistas do prêmio Oceanos 2022.
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Livro do conto:
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