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Largo Vespasiano Júlio Veppo e os traços de uma catástrofe anunciada. Foto: RCZ

Uma tarde em Porto Alegre por Rosana Zucolo

Dias atrás, a chamada de uma amiga para um post de meditação cujo fundo sonoro era o barulho da chuva,  disparou um gatilho. Sim, no sul do Brasil, ouvir a chuva tensiona qualquer pessoa em níveis diferentes e inimagináveis.

Nem a brincadeira que compara os gaúchos aos gauleses dos quadrinhos do Asterix, a temer a queda do céu sobre suas cabeças (os mais antigos saberão), alivia o temor generalizado diante da visão de nuvens carregadas e ameaçadoras. E não se trata de exageros, mas sim da constatação de termos um novo marco psicológico diante do que afetou profundamente a população na maior parte do Rio Grande do Sul. Se não há como dimensionar a totalidade deste contexto e seus efeitos, há como perceber os sinais que se espalham por todos os lados. Das estradas às cidades.

Porto Alegre, hoje, é uma cidade nervosa, destroçada em muitos aspectos, tentando reconstituir uma ordem mínima.

A rodoviária voltou a funcionar, ainda que de modo precário – muitos dos pontos comerciais seguem fechados, parte deles com tapumes. O fluxo de pessoas segue alto, mas mudou o circuito de circulação, agora concentrado na parte central, frente para o Largo Vespasiano Júlio Veppo.

O setor sul segue fechado, bem como os restaurantes, lancherias e a maior parte das salas comerciais. O setor norte funciona parcialmente, com as empresas de ônibus interestaduais a operar a partir de pequenas barracas improvisadas e customizadas em frente às salas que permanecem com as portas cerradas. As enormes filas que se formam diante delas sinalizam onde procurar atendimento.

Um comércio ambulante de comidas e de utensílios variados se estende ao longo da calçada externa da rodoviária no Largo, em meio ao movimento célere de uma multidão vigiada de perto pela presença ostensiva da polícia. Simultaneamente, um totem instalado no canteiro central, em frente aos hotéis, dispara sinais e avisos constantes sobre segurança, vigilância, chegadas, partidas, alertas sobre o trânsito, clima e pede atenção às ameaças no entorno, embora não mencione quais seriam elas. Todos os avisos com a assinatura final da Prefeitura de Porto Alegre. Para além deles, sirenes se fazem sentir a todo momento sem que seja possível distinguir se são ambulâncias, polícia ou bombeiros.

A duas quadras, na Avenida Farrapos, lonas pretas jogadas sobre muros, alguns em ruínas, abrigam moradores de rua, entre os quais vários cadeirantes. Segundo os trabalhadores do entorno,  usuários de crack disputam a área  em meio aos que tentam retomar os seus locais de trabalho, cujas paredes trazem as marcas do nível das águas.

Pedras amontoadas circundam e sustentam as ruas em reconstrução, substituindo o que antes era grama e jardins.  Áreas verdes viraram cimento e aqueles terrenos desocupados que serviam de estacionamento, ainda estão com os traços do que foi arrastado pelas águas.

A sensação é a de estar mergulhada num cenário típico dos filmes sobre sociedades distópicas. No entanto, este é infinitamente real.

A recepção do hotel, cujas paredes são revestidas de madeira nobre, exala um leve cheiro de mofo a indicar que a água chegara até o saguão. Ao perguntar ao atendente, ele responde que sim e mostra até onde ela atingiu. A parte térrea do hotel ficou inundada em 1,5m por 41 dias. Os telefones seguem mudos.

O Mercado Público de Porto Alegre ainda tenta limpar as marcas da destruição, mas não consegue se livrar do cheiro de esgoto que se mistura ao de peixe. Em várias alas odor exala forte, apesar da equipe de limpeza ser permanente. Um imenso painel azul isola uma área central que permanece intocada. Ele traz referências às vezes em que o mercado foi atingido por catástrofes e, posteriormente, reconstruído. Uma alusão à resiliência.

O mercado foi o único local do centro histórico onde foi possível sentir a vitalidade da cidade emergindo em meio aos escombros.

Fora dali, o movimento do cotidiano nas ruas mostra que as pessoas estão tristes, deprimidas ou depressivas, descrentes de soluções no curto prazo, impacientes umas com as outras, céticas em relação ao poder público.

Conversar com os taxistas permite uma escuta fina sobre o que ocorre nas cidades. Dois deles disseram a mesma coisa sobre a região central, em um tom que misturava irritação, impaciência, descrença, temor e  impotência: não está dando para recomeçar; não há normalidade; três estações do metrô estão fechadas e as pessoas continuam perdidas sobre  como ir trabalhar – a rotina mudou abruptamente, o trânsito também;  mais de sete agências bancárias deixaram de operar e seguem sem atividade; muitas lojas não conseguiram reabrir; grande parte das pessoas continua morando em abrigos sem qualquer privacidade e isto as afeta fortemente, como também às crianças; aumentou o número de pessoas vivendo nas ruas; a pandemia foi fichinha perto do que está acontecendo agora; a prefeitura não dá conta de resolver; estamos sozinhos e sem saber a quem recorrer.

Vai demorar…e o custo da recuperação é alto. O da saúde mental também! Não é possível retornar à vida de antes. Ainda há pessoas vivendo sob lonas à beira das estradas num inverno que se mostrou o pior dos últimos anos. Os entulhos circundam as vias no entorno da cidade, setores estratégicos seguem inoperantes,  a máquina pública é lenta e burocrática e não, as pessoas não se tornam melhores depois das tragédias coletivas.

Jornalista, professora universitária aposentada, mestre em Educação(UFSM) e doutora em Comunicação(Unisinos). Nascida gaúcha, mora em Santa Maria, tem alma cigana, a Bahia como segunda terra e o mundo como casa.  Descobriu ter uma certa predileção por pares: dois filhos, dois gatos, dois prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, dois empregos por muito tempo, dois projetos de cursos de comunicação, dois blogs,  duas casas, dois irmãos, dois cachorros, duas cachorras, dois gatos…

 

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