Um conto de Marcílio Moraes
Nunca tive dúvidas sobre Deus. Desde pequena, quando minha mãe falava e me mostrava as imagens coloridas, aprendi que sem Ele somos iguais uma folha que se solta e o vento leva embora, desorientada, até cair numa poça de lama e apodrecer. Deus era um amigo que eu procurava a qualquer hora, porque sabia onde encontrar e tinha certeza de que o coração Dele estava aberto para me dar consolo e carinho.
Falando desse jeito, que Deus ‘era’, até parece que deixei de acreditar. Não. Fiquei foi confusa com tudo que vem acontecendo na nossa terra.
Comecei a perceber as mudanças aqui mesmo na vila onde moro. E se a situação não tivesse chegado aonde chegou, nunca passaria pela cabeça me fazer de escritora para botar no papel esses garranchos. (Podia usar o telefone, mas tenho medo). Não que nunca tivesse pensado nisso. Quando pequena, costumava sonhar que escrevia livros e era famosa. Maluquices de criança, todo mundo sabe como é. Tinha esse sentimento, mas o que me empurrou mesmo a juntar as palavras e começar foi a solidão que bate todos os dias. Não tenho mais com quem conversar, quer dizer, trocar ideias como fazia antigamente, sem preocupação, sem medo de dizer o que não devo. Josefina, que era, ainda é?, minha amiga do peito, com quem eu falava até os segredos mais de dentro da alma, anda com jeito estranho, parecido com o de certo pessoal por aí. Chega dar arrepio. Ela diz que continua a mesma, mas cada dia que passa, fico convencida de que está escorregando devagarinho para o lado de lá, como tanta gente.
Quando digo ‘lado de lá’, estou me referindo às novas modas que o governo recomenda – certo, não obriga ninguém, como não cansam de repetir – e diz que são o melhor caminho para o nosso povo. Pode até ser – quem sou eu para duvidar das autoridades? –, mas é esquisito. Vestir aqueles paramentos, rezar a Deus com aquelas palavras engrouvinhadas…
Estou indo à frente sem explicar direito o que veio em antes. O melhor é contar desde o começo, embora não saiba muitos detalhes, porque nunca me importei com política, governo, coisas que não são da minha ossada. E não é que esses assuntos acabaram me enredando numa teia que aflige e me deixa perdida nos afazeres e nos pensamentos! Pode uma coisa dessas? Nunca imaginei, mas pode.
Não vou negar que a decisão de escrever este caderno carrega a esperança de que, de algum jeito – queira Deus! –, encontre um caminho, nem digo de salvação, que pelo menos me permita ir adiante, sem entregar os pontos ou virar uma criatura diferente por fora daquilo que sou por dentro. Deus queira! ‘Deus’ – me recuso a pronunciar aquele outro nome que eles gostam e que garantem que é a mesma pessoa. Será? Dizem que Ele prefere o nome como é chamado em países distantes, que eu conheço de ouvir falar, mas como coisa deles, outro Deus. Sem mais nem menos vêm os figurões com a conversa de que é a mesma divindade! Eu, hein!
O povo diz que tudo começou a mudar quando do tal golpe de Estado. Mataram muita gente. Até um pessoal aqui do bairro. E um – nem posso falar disso, está proibido – que morava na vila. Era um sujeito esquisito, tenho que dizer, mas que eu saiba nunca fez mal a nenhum de nós. Ficava na dele. Só olhava de cara feia quando via alguém enrolado na bandeira ou de pano na cabeça. Pesou contra, disseram. O que tem isso a ver com Deus, quem puder que explique.
Voltando ao fio da meada. Depois das mudanças em Brasília e das encrencas que vieram, parecia que as coisas iam voltar ao normal. Não foi o que se viu. O Presidente, que toda hora aparecia na televisão gritando e fazendo piada sem graça, desapareceu. Dizem que está recolhido em profunda meditação e que um dia vai reaparecer, para glória de todos nós. Escrevi ‘dizem”, mas não é todo mundo. Quem diz são os três filhos, os únicos no mundo que têm contato com ele. Nem o tal Gustavo chega perto, o que não dá para entender, porque é esse Gustavo que agora diz como tudo deve ser.
Gustavo. Tenho tanto medo. Só doida de pedra para escrever esse nome. Mas já que resolvi, vou até o fim, com a graça de Deus. Nunca ninguém vai ler esses escritos mesmo. Quando as folhas acabarem, queimo tudo. Quero ver me pegarem!
Só vi esse Gustavo na televisão, Deus me livre de chegar perto. Ele veio aqui na cidade um dia. Juntou gente de perder de vista. Dei desculpa da minha mazela para não ir. Ficar na frente dele, mesmo que no meio de todo mundo – credo! Podem dizer que sou boba, mas tenho certeza de que ele ia roubar minha alma, não sei como nem se isso é possível. É o que sinto aqui dentro, fazer o quê?
Tagarelo, de novo, e não explico quem é o Professor Gustavo, que não é mais ‘Professor’, é bom deixar claro. Não se deve chamar ele assim, foi decidido por quem manda. Agora é ‘Ulemá Gustavo’. Para você ver. (Falo você porque na minha cabeça estou contando a história para uma pessoa, mesmo sabendo que nunca vai ter ninguém para ler as garatujas. Faz bem pensar que estou conversando e não falando sozinha, igual maluca. Não tem mal nisso, ou tem?) Nunca tinha ouvido essa palavra, ‘Ulemá’. De primeiro, pensei que era brincadeira, até ria quando alguém falava. Um dia tomei uma bronca, meu Jesus… Acabei de escrever ‘Jesus’ e veio um frio nas costelas. Você vai perguntar: o nome de Jesus te dá frio nas costelas, que pessoa afinal é você? Pois é isso que você ouviu e não porque eu seja uma criatura maligna. O nome de Jesus hoje em dia no nosso país tem que ser pronunciado com cuidado. Para não misturar os assuntos, vou deixar este para mais adiante. Agora, é melhor terminar a história do Ulemá.
Tudo que sei dele, além do que sai na propaganda, foi dito por uma pessoa especial, o homem mais inteligente que conheci. Para continuar com ordenamento a minha apresentação, tenho que explicar quem é ele e que fio puxa na trama da minha vida. Não vou dar o nome, porque desde o começo a gente combinou de nunca contar nossa história. Segredo. Sei que estou traindo o juramento, mesmo que ninguém nunca vá ler o que escrevo. Não devia sequer mencionar a existência dele, mas também tenho compromisso com a minha resolução de escrever esse caderno com toda a verdade. Vou fazer assim: em vez de falar o nome, invento um de mentira. Para todos os efeitos, meu amigo – é mais que amigo, mas fica de bom tamanho assim – vai se chamar Hilel (nome de um estudioso de outros tempos de quem o meu amigo gostava de contar as histórias).
Senhor Hilel. Nunca deixei de chamar ele de ‘Senhor’, ‘Seu Hilel’, embora a gente tivesse uma certa intimidade, como se diz. Foi meu senhorio, numa residência que morei. Saí de lá por conta da nossa amizade. Ele me disse: melhor você ir morar em outro lugar, antes que a cambada (adorava essa palavra) comece a fuxicar. Aí mudei aqui para a vila. Minha casinha fica bem na ponta, de forma que, nas visitas, ele podia entrar sem ninguém se intrometer. (Muita gente não gostava dele, a começar pelo pessoal que está por cima. Todo cuidado é pouco, ele dizia). Com nós dois, tudo sempre correu direito. A gente se dava muito bem. Às vezes, ele passava a noite inteira contando histórias e explicando coisas que tenho dificuldade de entender, como o tal de Gustavo, ou melhor, Ulemá Gustavo.
Seu Hilel (ia ficar danado comigo se soubesse do apelido) explicou que, em antes de vir esse governo que está hoje, Ulemá Gustavo era cristão fervoroso, de guardar dia santo e se benzer quando passava na frente de igreja. Vivia com o nome de Jesus na boca, tendo mesmo convertido muitos ateus e crentes de outras religiões. Foi assim que se tornou conhecido e fez a cabeça dos filhos do Presidente, virando o homem mais importante da República (Seu Hilel falava assim).
Tudo falso. Ele era cristão coisa nenhuma. Fiquei tão admirada, que perguntei: como é possível uma pessoa fingir durante anos que segue uma religião sendo que dentro da alma é crente de outra? Seu Hilel deu um gritinho animado, como costumava fazer, quando gostava do quelelê (parecia risada, mas não era): rá rá! É mais comum do que pode imaginar, ensinou. A história está cheia de exemplos.
Então contou o caso de um homem chamado Sabbatai Zevi, que viveu mais de 300 anos atrás, na terra dos turcos – não sei pronunciar o nome do fulano, como Seu Hilel, mas escrevi certinho, porque tinha anotado, não lembro por que.
Você sabe que os judeus até hoje esperam pelo Salvador, não sabe? Jesus para eles não passa de um arruaceiro. Seu Hilel que falava assim, não eu. Pois esse tal Sabbatai acordou certa manhã dizendo que era o messias que o povo esperava. E convenceu um monte de gente, não pergunte como, Seu Hilel não explicou esse pedaço. O caso é que fez a cabeça da turma e foi procurar o chefe do lugar, o Sultão, esperando que fosse reconhecido e venerado. O Sultão não deve ter achado graça e botou ele em cana. Ainda por cima, disse assim: se não largar tua religião e vir para a minha, mando te jogar na fogueira. Quer dizer, tinha que deixar de ser judeu para seguir o Islão. Te dou até amanhã para resolver. Imagina a noite miserável que o homem passou. No dia seguinte, todo mundo esperando, chega o Sabbatai e diz que não era mais messias de Jeová nenhum, que a partir dali se entregava a Alá – olha eu falando o nome, mas é diferente, não é?, estou contando uma história, não sou eu que.
O mais maluco veio depois. Os seguidores do Sabbatai, na cabeça deles, acharam que a conversão do líder era artimanha para enganar o Sultão e que eles tinham que agir do mesmo modo: fingirem que passaram para o Islão e continuarem devotos do Messias Sabbatai, por baixo dos panos. Diz que essa turma existe até hoje, naquelas paragens.
O que tem a ver essa história com a gente aqui no nosso país, perguntei. Seu Hilel olhou de esguelha e perguntou: ainda não adivinhou? Eu disse que não e ele arrematou, com cara de safado: foi o que aconteceu com Ulemá Gustavo, só que invertido. Fingiu devoção a Jesus, mas no fundo era do Mahmud – Seu Hilel pronunciava Mafoma, ele explicou por que, mas esqueci.
Fiquei embasbacada. Como pode? Seu Hilel disse para prestar atenção. Quando jovem, Ulemá Gustavo, embora de família cristã, entrou para uma Tariqa, que é um lugar onde um punhado de gente, sob o governo de um Mestre, se junta para estudar os mistérios e os segredos da religião. Um culto complicado, que não é para todo mundo, só alguns especiais. A religião é diferente para esses escolhidos do que é para o povo. Seu Hilel destrinçou, mas quase não entendi nada. O que sei é que, na tal Tariqa, encarregaram Ulemá Gustavo da grande missão da vida dele. Sabe qual? Converter a nossa terra inteirinha para o Islão. Mas para isso, ele não podia sair pregando as crenças deles, não. Ensinaram que tinha que fingir de cristão até se tornar um homem poderoso. E aí, virar o jogo – Seu Hilel falava assim: virar o jogo. Ulemá Gustavo seguiu a prescrição direitinho. Se afastou da Tariqa, voltou a ir à igreja, a confessar, comungar, botou escapulário no peito, tudo nos conformes dos regulamentos de Jesus.
Agora imagina a tormenta que acontecia na cabeça do homem. Seu Hilel era muito impressionado com essa situação. Na fé dele, do Ulemá Gustavo, era como se tivesse botado o próprio demônio para dentro da consciência e segurasse preso. Rezar o Padre Nosso da boca para fora e no coração cantar o Magarebe (nome de uma reza, já aprendi várias). É como viver caindo no abismo e nunca se arrebentar embaixo, dizia Seu Hilel. Sofrimento horroroso.
Pois o convertido-que-nunca-se-converteu aguentou o castigo por muitos e muitos anos. Essa era a razão, explicou Seu Hilel, de Ulemá Gustavo, em antes de tirar a máscara, falar tanto palavrão. Diz que tinha sempre uma blasfêmia na ponta da língua, debochava das pessoas, imprecava, coisa triste de ver e de ouvir. Devia de ser o caldeirão que borbulhava no fundo da alma do sonso. Tanto é verdade que, depois que virou – não aconteceu de um dia para o outro, ele é muito esperto, depois conto como foi essa parte -, Ulemá nunca mais falou nome feio nem praguejou. Você ouve na televisão, é manso como um querubim. O demônio está guardado nas cavernas daquele espírito, dizia Seu Hilel, me deixando arrepiada. Credo! (Tenho que dizer que o próprio Ulemá e o governo não dizem que foi assim, não, Seu Hilel é que, nas caraminholas, garante que aconteceu desse jeito).
Foi na confusão política, quando veio o tal golpe de Estado, que Ulemá começou a ficar poderoso como precisava. Toda hora aparecia na televisão, ao lado do Presidente e dos filhos. Até eu, com a minha dificuldade e que só assisto novela, sabia quem era.
Abro um parêntesis para explicar. Sou cadeirante, como se diz, por culpa da política também. Eu vinha andando para casa, quando dei de cara com uma arruaça contra o Presidente – isso em antes do golpe. Tentei desviar, mas veio um carro a toda velocidade e me pegou. Nunca mais andei. De muletas, dou uns passos, senão só de cadeira. Tive que me aposentar. Hoje vivo de pensão bem mixuruca. Por sorte, tinha essa casinha que meu pai me deixou. Mas não é de mim que estou aqui para falar.
Depois do golpe, como ia dizendo, Ulemá Gustavo, que ainda atendia pelo título de professor, conseguiu finalmente se tornar muito poderoso. ‘Grande Conselheiro da República’, ‘Chefe dos Chefões’ e honrarias desse tipo, assim que era chamado. A engrenagem do governo caiu no colo dele, explicou Seu Hilel, e aí pôde virar o jogo.
Não foi do dia para a noite que o jeitão da nossa terra mudou. Devo dizer que Ulemá nunca falou mal de Jesus, nem negou que Ele era enviado de Deus. Não, justiça seja feita. Só disse que, depois de Jesus, ainda veio mais um enviado de Deus, o último, Mahmud, ou Mafoma, na voz de Seu Hilel. Se era o último, o que é que se podia pensar? Que tinha trazido o recado mais importante, não é mesmo?
Apesar disso, ninguém é proibido de frequentar a igreja, Ulemá gosta de repetir. É verdade, mas tem um caso que preciso contar. Um tempo atrás, logo depois que Seu Hilel sumiu – pois é, sumiu, já vou falar disso -, minha sobrinha passou aqui para me ajudar a ir à missa. Tudo aconteceu como sempre – não tinha quase ninguém, o que não é novidade nos últimos tempos, aquela nave vazia, sem santos! -, mas quando nós saímos uns guardas olharam com cara esquisita. Fiquei gelada, juro. Desde aquele dia, tenho medo de que algum mal me aconteça.
O sumiço de Seu Hilel já tinha piorado tudo, como é fácil imaginar. Não sei se ele fugiu ou se foi pego, embora ele garantisse que não era procurado. (Pode ser que tenha se cansado de mim e arranjado outra, o que duvido muito). Sempre vinha nas quintas-feiras, mas às vezes falhava – tinha os assuntos dele -, tanto que não me preocupei. Semana que vem está aqui, é até bom, a gente fica com mais vontade e tudo é mais gostoso, pensei. Na quinta seguinte, fui deitar nuazinha – desculpe, nesta altura, que mal tem falar isso? que se dane! – e fiquei esperando. Não deu as caras. Aí fiz o que ele tinha recomendado só em caso extremo: liguei para o celular. Não atendeu.
Não demora, eles batem aqui, pensei. Que é que eu podia fazer? Para amansar a agonia, comecei a escrever este caderno, sabendo que é para nada, porque na hora H vou destruir. Já devia ter feito, eu sei, mas fico com pena de não deixar nenhuma memória. Imprudência, concordo. Se encontrar um lugar seguro, talvez esconda. A ver. Se você estiver lendo – e não for daqui a cinquenta anos – é que acharam o esconderijo ou não deu tempo de queimar. De um jeito ou de outro, fique sabendo que me dei mal.
Marcílio Moraes / 07/06/20
Considerações sobre o conto “Ulemá Gustavo”
O surgimento dessa “nova direita”, Trump, Bannon, Orbán (da Hungria), etc, e principalmente Bolsonaro, claro, me levou a ler os autores que dão fundamento às ideias dessa gente: René Guénon, Frithjof Shuon, etc, que desenvolvem aquele papo, que nada tem de novo, sobre a decadência da civilização ocidental, a superioridade da sabedoria tradicional sobre a filosofia, a valorização do Oriente, por aí vai.
Confesso que gosto de ler esses textos. São interessantes, literariamente falando. A coisa alucina quando gente como o guru dos poderosos de hoje no Brasil e outros resolvem criar uma ideologia política baseada nisso. Loucura total. Os caras acham, por exemplo, que a degeneração do Ocidente começou no Renascimento. A partir dali, nada de bom foi criado. Então a ideia é restaurar uma Idade Média que só existiu na cabeça deles. O que explica, em boa parte, os desvarios do governo Bolsonaro, que funciona como ponta de lança desses doidos, mesmo sem entender – é muito burro para isso – o que está por trás.
O curioso – e o que me inspirou a escrever o conto – é que esses pensadores, de formação cristã, converteram-se ao Islã. E mesmo gente de origem na esquerda entrou nessa. Havia um intelectual comunista, na década de sessenta, Roger Garaudy, membro do Partido Comunista Francês, inclusive, que tinha uma conversa de fazer a ponte entre o cristianismo e o comunismo, escreveu vários livros nesse sentido. Pois ele também se converteu ao Islã.
O Islã exerce grande atração em gente afeita a misticismos radicais. O guru do atual grupo dirigente do Brasil fez parte de uma Tariqa durante muitos anos. Ou seja, converteu-se ao Islã, depois voltou ao cristianismo, pelo menos segundo o que ele diz. Foi inspirado neste fato específico que construí a minha distopia irônica.