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Olga Tokarczuk, escritora polonesa, nobel de literatura. Foto: Thilo Schmuelgen/Reuters

Trecho de Livro “Sobre os Ossos dos Mortos” de Olga Tokarczuk

Por Melina Guterres (Mel Inquieta) / Rede Sina

 “Eu não possuo uma biografia muito clara, que possa contar de uma maneira interessante. Sou composta desses personagens que saíram da minha cabeça, que eu inventei. Sou composta por todos, tenho uma biografia com muitas molduras, enorme”, afirmou a escritora em entrevista ao Instituto Polonês do Livro.

Olga Tokarczuk nasceu em Sulechów (na Polônia) no dia 29 de janeiro de 1962. A escritora cresceu em uma cidade pequena na Polônia e se formou em psicologia pela Universidade de Varsóvia. Formada em Psicologia na Universidade de Varsóvia, estudou os trabalhos de Carl Jung. Por um tempo, trabalhou como psicoterapeuta em Walbrzych (sudoeste) e lançou-se à escrita. Publicou então uma coletânea de poemas, antes de embarcar na prosa.

Possui livros que já foram traduzidos para 30 idiomas. Em 2014 recebeu Prêmio Nike Award pela obra Os Livros de Jacó. Em 2018 foi finalista do prêmio Fémina Estrangeiro e, no mesmo ano, recebeu o prêmio máximo Man Booker International com o seu livro Viagens. Olga Tokarczuk é a 15.ª mulher (entre os 161 já premidos) a receber o prêmio o Nobel de Literatura (correspondente a 2018) que, contrariando algumas expectativas, a Academia Sueca decidiu entregar a dois autores europeus. O Prêmio foi atribuído somente em 2019, depois da academia  sueca enfrentar uma polêmica envolvendo um escândalo sexual que resultou na demissão de vários membros vitalícios.

Segundo o Nobel, a inovação de Olga veio com seu terceiro romance, Prawiek i inne czasy, de 1996 (Primitivo e Outros Tempos, em tradução livre). O livro, sem edição no Brasil, é, segundo o comitê, “um excelente exemplo de nova literatura polonesa”. Comparado a Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, o livro se passa em uma vila mítica e acompanha a história de três gerações de uma mesma família. O local é afetado por invasões e guerras, alegorias políticas da história da Polônia, território crucial do leste europeu nas duas grandes guerras e da entrada comunista no continente.

Olga Tokarczuk, politicamente engajada à esquerda, ecologista e vegetariana, tem provocado polêmica, mas por atacar o nacionalismo polaco de extrema-direita, designadamente desmontando a auto-imagem do país como sobrevivente de sucessivos opressores externos e chamando a atenção para o facto de também a Polónia ter cometido agressões colonialistas ao longo da sua história. Essas posições valeram-lhe acusações de traição à pátria e ameaças várias, tendo a sua editora chegado a contratar guarda-costas para a protegerem.

Em 2015, o discurso que fez ao receber o Nike, o mais importante prêmio literário polaco, tornou-a alvo da fúria do Lei e Justiça e dos sectores nacionalistas. Disse:

“Criamos esta história da Polônia como um país aberto e tolerante. No entanto, cometemos atos horrendos enquanto colonizadores, como uma maioria nacional que suprimiu a minoria, como proprietários de servos, como assassinos de judeus.”

Olga Tokarczuk também é coautora do roteiro do filme “Spoor”, dirigido por Agnieszka Holland e inspirado em seu romance “Prowadz swój plug przez kosci umarlyc”. Lançado em fevereiro de 2017, o filme ganhou o Prêmio Alfred Bauer na Berlinale no mesmo ano e representou a Polônia na disputa pelo Oscar de melhor filme estrangeiro.

Confira o trecho de uma das obras da autora.

SINOPSE:

O Livro: Sobre os Ossos dos Mortos

Em uma remota região da Polônia, uma professora de inglês aposentada costuma se dedicar ao estudo da astrologia, à poesia de William Blake, à manutenção de casas para alugar e a sabotar armadilhas para impedir a caça de animais silvestres. Sua excentricidade é amplificada por sua preferência pela companhia dos animais aos humanos e pela crença na sabedoria advinda do estudo dos astros. Subversivo, macabro e discutindo temas como mundo natural e civilização, este livro parte de uma história de crime e investigação convencional para se converter numa espécie de suspense existencial. Olga Tokarczuk oferece um romance instigante sobre temas como loucura, injustiça e direitos dos animais.

A autora:

Olga Tokarczuk (1962), é o nome mais premiado da literatura polonesa contemporânea. Seus livros já receberam as principais distinções de seu país, além de importantes prêmios para tradução na língua inglesa, como o Man Booker Prize. Em 2019, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.

Editora no Brasil: Todavia
Tradução de Olga Baginska-Shinzato / 318 páginas

“Duvido que ele tenha recebido tanto carinho enquanto vivo” 

TRECHO DO LIVRO:

Outrora dócil, e em perigosa senda,

O justo seguiu seu curso ao longo

Do vale da morte.

Com a minha idade e nas minhas condições atuais, deveria sempre lavar bem os pés antes de dormir, caso uma ambulância precise vir me buscar à noite.

Se tivesse examinado nas Efemérides o que acontecia no céu naquela noite, nem me deitaria para dormir. Entretanto, caí num sono muito profundo; recorri ao chá de lúpulo e tomei ainda dois comprimidos de valeriana. Por isso, quando fui acordada no meio da noite pelo som — violento, excessivo, e por isso agourento — de alguém batendo na minha porta, não consegui me recompor. Levantei às pressas e fiquei em pé junto da cama, vacilando, pois o corpo sonolento, trêmulo, não conseguia dar o salto da inocência do sono para a vigília. Desfaleci e cambaleei, como se estivesse prestes a perder a consciência. Isso tem me acontecido ultimamente, e está relacionado com as minhas moléstias. Precisei me sentar e repetir algumas vezes para mim mesma: estou em casa, é noite, alguém está batendo na porta, e só então é que consegui controlar os nervos. Enquanto procurava os chinelos no escuro, podia ouvir que aquele que tinha batido agora circundava a casa, murmurando. No térreo, na caixa do relógio de luz, guardo gás de pimenta que ganhei de Dionísio por causa dos caçadores ilegais. Foi justamente nele que pensei agora. Consegui achar na escuridão o formato frio e familiar do aerossol e, assim armada, acendi a luz do lado de fora. Olhava para o alpendre pela janela lateral.

A neve rangeu e apareceu no meu campo de visão o vizinho que costumo chamar de Esquisito. Estava enrolado numa velha samarra, com a qual às vezes o via quando trabalhava do lado de fora de casa. Debaixo dela podia ver seu pijama listrado e suas botas pesadas para caminhar nas montanhas.

— Abra — disse.

Com um espanto evidente olhou para o meu terno de linho (durmo vestida com as peças que o Professor e sua esposa quiseram jogar fora no verão, e que me lembram da moda antiga e da minha juventude. Assim, combino o útil com o sentimental) e entrou sem pedir licença.

— Vista-se, por favor. Pé Grande morreu.

Por um instante perdi a fala e, em silêncio, calcei as botas de cano alto e vesti o primeiro casaco de frio que encontrei no cabideiro. Lá fora, a neve, na mancha de luz jogada pelo abajur no alpendre, virava uma ducha vagarosa e sonolenta. Esquisito estava do meu lado, calado, alto, esbelto e ossudo como uma silhueta esboçada com alguns riscos a lápis. A neve caía do seu corpo ao mínimo movimento, como se fosse um cavaquinho polvilhado com açúcar de confeiteiro.

— Como assim “está morto”? — perguntei, por fim, ao abrir a porta, com a garganta apertada, mas ele não me respondeu.

De modo geral, ele fala pouco. Deve ter Mercúrio num signo silencioso, acho que em Capricórnio ou em conjunção, quadratura, ou talvez em oposição a Saturno. Podia ser, também, um Mercúrio retrógrado — que, nesse caso, acarretava discrição.

Saímos de casa e, imediatamente, nos envolveu esse ar muito familiar — frio e úmido — que nos relembra todos os invernos que o mundo não fora criado para a humanidade, e durante pelo menos a metade do ano nos demonstra a sua hostilidade. O frio atacou brutalmente as nossas bochechas, e emergiram nuvens brancas de vapor de nossas bocas. A luz no alpendre se apagou automaticamente e caminhamos pela neve crepitante na escuridão completa, a não ser pela lanterna de cabeça de Esquisito que penetrava as trevas num único ponto oscilante logo à sua frente. Eu andava na penumbra, saltitando às suas costas.

— Não tem lanterna? — perguntou.

Claro que tinha, mas conseguiria achá-la apenas de manhã, à luz do dia. Com as lanternas é sempre assim: são visíveis só durante o dia.

A casa de Pé Grande ficava um pouco afastada, acima das demais. Era uma das poucas habitadas durante o ano inteiro. Apenas ele, Esquisito e eu vivíamos aqui sem temer o inverno; os outros moradores fechavam a casa já em outubro; esvaziavam os canos de água e voltavam para a cidade.

Desviamos então levemente da estrada, desobstruída, que passa pelo nosso vilarejo e se ramifica em trilhas que levam às respectivas casas. Um caminho pela neve profunda, tão estreito que nos obrigava a pisar colocando um pé atrás do outro, alternadamente, enquanto tentávamos manter o equilíbrio, nos guiava até Pé Grande.

— Não vai ser uma imagem nada agradável — avisou Esquisito, virando-se para mim e, por um átimo, me cegando completamente. Não esperava nada de diferente. Silenciou por um instante e, em seguida, disse, como se quisesse se desculpar:

— Fiquei preocupado com a luz acesa na cozinha e o latido desesperado da cadela. Você não ouviu nada?

Não, não ouvi. Estava dormindo, entorpecida pelo lúpulo e pela valeriana.

— Onde ela está agora, essa cadela? — Levei embora, está na minha casa. Eu a alimentei e ela pareceu se acalmar. Mais um instante de silêncio. — Ele sempre ia dormir cedo e apagava as luzes para economizar, e dessa vez a luz ficou acesa o tempo todo. Uma faixa brilhante de luz sobre a neve, visível da janela do meu quarto.

Foi por isso que decidi ir até lá. Pensei que ele poderia estar bêbado, ou que estivesse implicando com o cão, para que latisse daquele jeito.

Passamos por um estábulo arruinado e, logo em seguida, a lanterna de Esquisito caçou na escuridão dois pares de olhos reluzentes, esverdeados, fluorescentes.

— Olha só, corças — eu disse num sussurro excitado e agarrei a manga de sua samarra. — Chegaram muito perto da casa. Não têm medo?

As corças estavam com as patas imersas na neve até a altura da barriga. Olhavam para nós com calma, como se as tivéssemos apanhado no meio de um ritual cujo sentido não conseguimos entender. Estava escuro, portanto não sabia reconhecer se eram as mesmas jovens que vieram da República Tcheca no outono. Ou será que eram outras, novas? E por que, essencialmente, havia apenas duas? Aquelas eram no mínimo quatro.

— Voltem para casa — eu disse, espantando-as com as mãos. Estremeceram, mas não se moveram. Elas calmamente nos acompanharam com o olhar até a porta. Senti calafrios.

Enquanto isso, Esquisito limpava os sapatos, batendo os pés contra o solo diante da porta de uma casa descuidada. As pequenas janelas haviam sido calafetadas com papéis de vedação e plástico. Feltro betumado cobria as portas de madeira.

Pedaços de lenha de diversos tamanhos recobriam as paredes do vestíbulo. Era, de fato, um interior desagradável, sujo e descuidado. Sentia-se o cheiro de mofo, madeira e terra — molhada e voraz. O odor de fumaça, de longa data, envolveu as paredes com uma camada de gordura.

A porta da cozinha estava entreaberta. Assim, de imediato avistei o corpo de Pé Grande prostrado no chão. Meu olhar roçou nele fugazmente, para logo recuar. Demorou um bocado antes que eu conseguisse olhar para lá outra vez. Era uma cena horrível.

Estava deitado, retorcido numa posição estranha, com as mãos junto do pescoço como se quisesse afrouxar a gola apertada. Ia me aproximando aos poucos, como que hipnotizada. Vi os seus olhos abertos fixados em algum ponto debaixo da mesa. A camiseta suja estava rasgada na altura da garganta. Parecia que o seu corpo tinha travado uma luta consigo mesmo, foi derrotado e se entregou. Fiquei com frio de tanto horror, meu sangue gelou nas veias e senti como se tivesse cedido para o próprio fundo do meu corpo. Ainda ontem havia visto esse corpo vivo.

— Meu Deus — balbuciei. — O que aconteceu?

Esquisito deu de ombros. — Não consigo ligar para a polícia, o sinal da operadora tcheca deu interferência outra vez.

Tirei meu celular do bolso e digitei o número que conhecia da televisão — 997 — e, em seguida, uma voz tcheca automática ressoou no aparelho. Aqui é assim. O sinal vagueia, sem se importar com as fronteiras nacionais. Às vezes, a fronteira entre as operadoras ficava por um tempo na minha cozinha. Outras, se fixava durante alguns dias junto à casa de Esquisito ou no terraço. No entanto, era difícil prever o seu caráter quimérico.

— Você devia ter subido a colina — o aconselhei tardiamente. — O corpo vai enrijecer por completo antes que eles cheguem — disse Esquisito num tom que eu não gostava, particularmente no seu caso: era um tom sabichão. Tirou a samarra e a pendurou no encosto da cadeira. — Não podemos permitir que fique assim. Está com um aspecto repugnante, mas, enfim, era nosso vizinho.

Olhava para o pobre e retorcido corpo de Pé Grande e me custava entender que ainda ontem tinha medo desse homem. Não gostava dele. Talvez não gostar fosse até um eufemismo. Deveria, aliás, dizer: ele me parecia repugnante, horrível. De fato, nem sequer o considerava um ser humano. Agora estava prostrado no chão manchado usando uma cueca suja, pequeno e magro, impotente e inofensivo. Ora, um fragmento de matéria que, em consequência de transformações difíceis de ser imaginadas, virou um ser frágil, isolado de tudo. Fiquei triste, extremamente triste, pois mesmo uma pessoa tão desagradável não merecia morrer. Aliás, quem mesmo merece morrer? Eu também compartilharei o mesmo destino, assim como Esquisito e aquelas corças lá fora; todos nós seremos um dia nada mais que um corpo morto.

Olhei para Esquisito, na esperança de algum consolo, mas ele já tinha se entregado à tarefa de arrumar a cama revirada, improvisada sobre um sofá-cama em ruínas, então fiz o possível para me consolar sozinha. Passou, então, pela minha cabeça a ideia de que a morte de Pé Grande poderia ser considerada, de alguma forma, algo bom, pois o libertou da bagunça que era a sua vida. E libertou outros seres vivos dele. Eis que, repentinamente, me dei conta dos benefícios da morte e de como ela era justa, à semelhança de um desinfetante ou de um aspirador. Admito, foi o que pensei, e continuo com a mesma convicção. Era meu vizinho, menos de um quilômetro de distância separava as nossas casas, mas, por sorte, o meu contato com Pé Grande era esporádico. Normalmente avistava-o de longe — sua figura franzina e rija, sempre um pouco instável, se deslocava com a paisagem ao fundo. Ao andar, balbuciava algo e, de vez em quando, a acústica ventosa do planalto propagava os farrapos desse monólogo, essencialmente simples e pouco diversificado, trazendo-os até mim. Seu vocabulário era composto principalmente de palavrões aos quais acrescentava apenas nomes próprios.

Conhecia cada pedaço de terra deste lugar, pois parece que nasceu aqui e nunca foi além de Kłodzko. Era perito na floresta — sabia como usá-la para ganhar dinheiro, o que poderia vender e para quem. Cogumelos, mirtilos, lenha roubada, gravetos para acender o fogo, armadilhas, o rali offroad anual, as caçadas. A floresta alimentava esse pequeno gnomo, e por isso ele deveria respeitá-la, mas não era o caso. Uma vez, em agosto, durante a estiagem, ele incendiou todo o mirtileiro. Liguei, aliás, para os bombeiros, mas não consegui salvar quase nada. Nunca soube por que ele fez aquilo. No verão, caminhava pelas redondezas com uma serra e cortava as árvores cheias de seiva. Quando chamei sua atenção, reprimindo a raiva com dificuldade, ele respondeu de forma simples: “Cai fora, sua velha”. Só que com mais grosseria. Ele sempre ganhava um dinheirinho extra roubando alguma coisa, dando um jeitinho; quando os veranistas deixavam uma lanterna ou um podador no quintal, Pé Grande sempre aproveitava a ocasião para levar tudo e depois vender na cidade. Na minha opinião, inúmeras vezes deveria ter recebido punições, ou até ido para a cadeia. Não sei como sempre saía impune. Talvez tivesse a proteção de certos anjos; às vezes eles tomam o lado errado.

Sabia também que ele caçava ilegalmente de todas as formas possíveis. Tratava a floresta como se fosse a sua própria fazenda — tudo o que havia lá lhe pertencia. Era do tipo saqueador. Passei muitas noites em claro por sua causa. Por impotência. Algumas vezes liguei para a polícia — quando alguém enfim atendia, minha denúncia era registrada, mas nada acontecia. Pé Grande outra vez percorria o seu caminho com uma armadilha no ombro, gritando de forma agourenta. Uma divindade pequena e malvada. Maldosa e imprevisível. Sempre estava um pouco embriagado, e era provavelmente isso que lhe despertava o humor rancoroso. Balbuciava e batia nos troncos das árvores com uma vara, como se quisesse espantá-las do seu caminho. Ele parecia já ter nascido num leve estado de entorpecimento. Muitas vezes eu segui os seus caminhos e recolhi as armadilhas grosseiras de arame que ele deixava para os animais, laços amarrados a pequenas árvores inclinadas de tal forma que o animal preso neles era lançado para o alto, como se tivesse sido arremessado de uma atiradeira, e ficava suspenso no ar. Às vezes, achava animais mortos — lebres, texugos e corças.

— Precisamos transferi-lo para o sofá-cama — disse Esquisito.

Não gostei dessa ideia. Não gostei da ideia de tocar nele. — Acho que deveríamos esperar pela polícia — disse, mas Esquisito já tinha arranjado espaço no sofá-cama e arregaçado as mangas do suéter. Ele me fulminou com seus olhos claros. — Você não gostaria de ser encontrada assim, não é? Nessas condições. Isso é desumano.

Pois é, o corpo humano é certamente desumano. Especialmente um corpo morto.

Não era um paradoxo sinistro que agora nós precisássemos nos ocupar com o corpo de Pé Grande, que ele tivesse nos deixa- do esse último problema? Nós, os vizinhos que ele nunca res- peitou, de quem não gostava, e com quem nunca se importou?

Na minha opinião, depois da morte, a matéria deveria ser aniquilada. Seria o método mais adequado para lidar com o corpo. Assim, os corpos aniquilados voltariam diretamente para os buracos negros de onde vieram. As almas viajariam para a luz com a velocidade da luz. Isso se de fato existir algo como a alma.

Quebrando uma terrível resistência, eu agia conforme Esquisito mandava. Seguramos o corpo pelas pernas e braços e o transferimos para o sofá-cama. Para minha surpresa, constatei que ele era pesado, mas não de todo inerte, teimosamente rijo como lençóis recém-engomados. Vi também as suas meias, ou aquilo que ele usava nos pés — panos sujos, grevas feitas de um lençol rasgado em tiras, agora cinzento de tão manchado. Não sei por que a imagem dessas grevas causou em mim um impacto tão forte que me atingiu no peito, no diafragma, no corpo inteiro, de tal forma que já não conseguia estancar o soluço. Esquisito olhou para mim com frieza, de relance, e com uma nítida reprovação.

— Precisamos vesti-lo antes que cheguem — disse Esquisito, e notei que o seu queixo também tremia ao olhar para essa miséria humana (embora por algum motivo não quisesse admiti-lo).

Primeiro tentamos remover sua camiseta suja e fedorenta, mas não havia como tirá-la pela cabeça, então Esquisito sacou do bolso um canivete complexo e rasgou o tecido ao longo do peito. Pé Grande estava prostrado agora diante de nós em cima do sofá-cama, seminu, peludo como um troll, com cicatrizes no peito e nas mãos, com tatuagens já ilegíveis, entre as quais não conseguia reconhecer nada que fizesse sentido. Seus olhos estavam ironicamente semicerrados enquanto procurávamos no armário quebrado algo decente para vestir antes que o seu corpo endurecesse para sempre e voltasse a ser aquilo que essencialmente era — um torrão de matéria. A cueca rasgada aparecia debaixo das calças de moletom prateadas, novinhas em folha.

Desenrolei cuidadosamente as grevas repulsivas e vi os seus pés. Fiquei surpresa. Sempre tive a impressão de que os pés são a parte do corpo mais íntima e pessoal, e não os genitais, ou o coração, nem mesmo o cérebro — órgãos insignificantes e supervalorizados. É nos pés que se encontra todo o conhecimento sobre o ser humano, é para lá que flui todo o sentido fundamental daquilo que realmente somos e de como nos relacionamos com a terra. Todo o mistério — o fato de sermos compostos de elementos da matéria e, ao mesmo tempo, estranhos a ela, isolados — jaz no contato com a terra, em sua ligação com o corpo. Os pés são nossos pinos da tomada. Contudo, nesse momento, esses pés nus eram, para mim, a prova de sua estranha ascendência. Não podia se tratar de um ser humano. Devia constituir uma forma inclassificada, uma daquelas que, como disse Blake, dissolvem os metais em vastidão, transformam a ordem em caos. Talvez ele fosse uma espécie de demônio.

As criaturas demoníacas sempre podem ser reconhecidas pelos pés, pois carimbam a terra com um selo distinto.

Esses pés — muito compridos e finos, com dedos delgados e unhas negras e disformes — pareciam preênseis. O dedão destacava-se levemente dos restantes, como um polegar. Estavam cobertos por uma pelagem negra e espessa. Alguém já viu algo parecido? Esquisito e eu trocamos olhares.

No armário quase vazio encontramos um terno cor de café um tanto manchado, mas obviamente pouco usado. Nunca o tinha visto com ele. Pé Grande sempre usava valenkis, calças desgastadas, uma camisa xadrez e um colete acolchoado, independentemente da época do ano.

Associei o ato de vestir o morto a uma forma de carícia. Duvido que ele tenha recebido tanto carinho enquanto vivo. Nós o seguramos gentilmente pelos braços e o vestimos. Sustentava seu peso com meu peito e, depois de uma onda inevitável de asco que me deixou nauseada, de repente me ocorreu abraçar esse corpo, dar tapinhas nas suas costas para acalmá-lo e dizer: não se preocupe, vai ficar tudo bem. Não o fiz porque Esquisito estava presente e poderia pensar que era algum tipo de perversão.

Meus gestos abortados transformaram-se em pensamentos e fiquei com pena de Pé Grande. Talvez sua mãe o tenha abandonado, e ele tenha sido infeliz durante toda a sua triste vida. Longos anos de infelicidade degradam um homem mais do que uma doença letal. Nunca vi convidados em sua casa, não aparecia nenhuma família, nem amigos. Nem sequer os catadores de cogumelos paravam na frente de sua casa para conversar. As pessoas tinham medo e não gostavam dele. Parece que andava apenas com os caçadores, mas mesmo isso era raro. Eu diria que ele tinha por volta de cinquenta anos. Quem me dera ver a sua oitava casa para verificar se havia lá a conjunção de Netuno, Plutão e Marte em algum aspecto no ascendente, pois, com aquela serra de dentes afiados nas mãos, lembrava um predador que vivia apenas para semear a morte e provocar sofrimento.

Esquisito o sentou para lhe vestir o paletó. Percebemos, então, que sua língua grande e inchada prendia algo na boca. Assim, depois de um momento de hesitação, cerrando os dentes de asco e retirando a mão sucessivas vezes, segurei o objeto pela ponta e percebi que o que tinha apanhado entre os dedos era um osso longo e fino, afiado como um punhal. Um som gutural e um pouco de ar emergiram da boca morta formando um assovio suave que lembrava um suspiro. Ambos pulamos para trás. Esquisito deve ter sentido o mesmo que eu: horror. Sobretudo porque, depois de um instante, um sangue escuro, quase negro, apareceu na boca de Pé Grande. Um fio sinistro começou a verter dali.

Ficamos paralisados, aterrorizados. — Então — Esquisito disse com uma voz trêmula — ele se engasgou. Ele se engasgou com um osso. Um osso ficou preso em sua garganta, engoliu um osso, se engasgou — repetia nervosamente. E depois, como se estivesse acalmando a si próprio, acrescentou: — Mãos à obra. Não é um prazer, mas nossos deveres com os vizinhos nem sempre são prazerosos.

Percebi que ele se autodeclarara o chefe desse plantão noturno e me subordinei a ele.

Entregamo-nos por completo ao trabalho ingrato de meter Pé Grande no terno cor de café e acomodá-lo numa posição digna. Fazia bastante tempo que eu não tocava em nenhum corpo estranho, muito menos num morto. Eu podia sentir a inércia fluindo rapidamente dentro dele, que se tornava mais rígido a cada minuto. Era por isso que tínhamos tanta pressa. E, no momento em que Pé Grande estava deitado vestido com seu melhor terno, seu rosto enfim perdeu a expressão humana, e ele definitivamente virou um cadáver. Apenas o dedo indicador da mão direita não queria se sujeitar complacentemente à tradicional posição das mãos entrelaçadas, e se erguia para o alto, como se quisesse atrair nossa atenção e interromper por um instante nosso esforço nervoso e apressado. “E agora prestem atenção!”, dizia esse dedo. “Agora prestem atenção, há algo que vocês não enxergam, o ponto de partida essencial de um processo oculto, mas digno da maior atenção. Graças a ele todos nós nos encontramos neste lugar e tempo, numa pequena casa no planalto, entre a neve e a noite. Eu como um corpo morto, e vocês como seres humanos pouco importantes e um tanto envelhecidos. Contudo, é apenas o início. Tudo está apenas começando.”

Lá estávamos nós, num cômodo frio e úmido, no vazio gelado que tomou conta daquela hora cinzenta e monótona, e me ocorreu que aquilo que se desprende do corpo suga um pedaço do mundo, e não importa o quanto foi bom ou mau, culpado ou imaculado, ele deixa atrás de si um grande nada.

Olhei pela janela. Amanhecia e, aos poucos, os vagarosos flocos de neve começaram a preencher esse vácuo. Caíam vagarosamente, vacilando no ar e girando em torno do seu próprio eixo como se fossem plumas.

Pé Grande já partira, portanto não havia sentido em guardar qualquer ressentimento ou mágoa. Permaneceu apenas um corpo morto, enfardado num terno. Nesse momento parecia tranquilo e contente, como se o espírito se alegrasse de ter se livrado, enfim, da matéria, e a matéria contentava-se de finalmente ter se livrado do espírito. Durante esse curto espaço de tempo efetuou-se um divórcio metafísico. O fim.

Sentamo-nos à porta da cozinha e Esquisito pegou uma garrafa de vodca aberta que estava sobre a mesa. Achou um copo limpo e o encheu — primeiro para mim, depois para ele. A alvorada, leitosa como as lâmpadas hospitalares, penetrava lentamente pelas janelas nevadas e nessa luz percebi que Esquisito estava com a barba por fazer, uma barba tão branca quanto o meu cabelo, e que o seu pijama de listras esmaecidas aparecia desabotoado debaixo da samarra, que estava suja, com todos os tipos possíveis de manchas.

Tomei um grande copo de vodca que me aqueceu por dentro. — Acho que cumprimos nosso dever com ele. Quem mais teria feito isso? — disse Esquisito, dirigindo-se mais para si mesmo do que para mim. — Era um pequeno filho da mãe miserável, mas e daí?

Encheu mais um copo, o tomou de uma vez e depois sacudiu-se, enojado. Claramente não estava acostumado a beber.

— Vou telefonar — disse e saiu. Pensei que estivesse tonto. Levantei-me e comecei a observar essa terrível bagunça. Esperava achar em algum lugar a carteira de identidade de Pé Grande com a sua data de nascimento. Queria saber, verificar seus números.

Sobre a mesa coberta por uma toalha impermeável gasta, havia uma caçarola com pedaços assados de algum animal; na panela ao lado, dormia um pouco de borsch sob uma camada branca de gordura. Uma grossa fatia de pão, a manteiga envolta em papel vegetal. No chão revestido de linóleo rasgado ainda havia alguns restos de animais, espalhados, caídos da mesa junto com o prato, o copo e os pedaços de bolacha. Tudo isso estava esmagado, pisoteado no chão sujo.

Foi então que vi algo numa bandeja de metal sobre o parapeito da janela que o meu cérebro, num esforço de fugir, reconheceu apenas depois de um longo instante: era a cabeça de uma corça cortada com precisão. Junto dela havia quatro patas. Os olhos semicerrados devem ter seguido, constante e atentamente, todos os nossos passos.

Sim, era uma dessas jovens esfomeadas que, no inverno, se deixam atrair ingenuamente pelas maçãs congeladas e, apanhadas na armadilha, morrem em tormento, estranguladas pelo arame. Enquanto percebia, aos poucos, segundo após segundo, o que acontecera ali, fui tomada pelo horror. Ele apanhou a corça na armadilha, a matou, então esquartejou, assou e comeu seu corpo. Uma criatura havia comido outra no silêncio e na quietude da noite. Ninguém protestou, nenhum raio caiu do céu. No entanto, o castigo atingiu o demônio, ainda que nenhuma mão tivesse guiado a morte.

Rapidamente, com as mãos trêmulas, recolhi os restos, esses ossos pequenos, empilhando-os num único lugar para depois enterrá-los. Achei uma velha sacola de plástico e os juntei assim, um depois do outro, nessa mortalha de plástico. E então, com cuidado, também guardei a cabeça ali dentro.

Queria tanto saber a data de nascimento de Pé Grande que comecei a procurar nervosamente sua carteira de identidade — na cômoda, entre alguns papéis e folhas arrancadas de um calendário, jornais, depois em gavetas; é lá que se guardam documentos nas casas rurais. E era exatamente lá que estava, com uma capa verde danificada, e, decerto, com a validade expirada. Pé Grande tinha vinte e poucos anos na foto, um longo rosto assimétrico e olhos semicerrados. Na época, tampouco apresentava vestígios de beleza. Anotei a data e o local de nascimento com um cotoco de lápis. Pé Grande nasceu em 21 de dezembro de 1950. Neste mesmo local.

E devo acrescentar que havia mais uma coisa nessa gaveta: uma série de fotos relativamente novas, coloridas. Examinei-as rapidamente, apenas por costume, mas uma me chamou a atenção. Olhei mais de perto para ela e estava prestes a colocá-la de volta. Demorei a entender o que era aquilo que estava vendo. De repente, tudo ficou em silêncio e eu me encontrei bem no meio dele. Olhei para a foto. Meu corpo se retesou, eu estava pronta para a luta. Fiquei tonta e um zumbido sombrio ressoava nos meus ouvidos, um murmúrio, como se um exército de centenas de milhares de homens emergisse de trás do horizonte — vozes, o tinir de ferro, o ranger das rodas, tudo distante. A ira torna o raciocínio mais claro e perspicaz, faz enxergar com mais nitidez. Concentra as outras emoções e controla o corpo. Não há dúvida de que toda a sabedoria deriva da ira, pois a ira é capaz de ultrapassar quaisquer limites.

Coloquei a foto no bolso, com as mãos trêmulas, e logo ouvi tudo avançar, ouvi os motores do mundo sendo ligados e sua maquinaria decolando — as portas rangeram, o garfo caiu no chão. Lágrimas correram dos meus olhos.

Esquisito estava parado na porta. — Ele não merecia suas lágrimas.

Estava com os lábios cerrados e digitava um número, concentrado.

— Outra vez a operadora tcheca — falou. — Precisamos subir para a colina. Você vem comigo?

Fechamos a porta silenciosamente e seguimos mergulhados na neve. Na colina, Esquisito começou a girar segurando os dois celulares nas mãos estendidas, procurando a cobertura. Diante de nós víamos todo o vale Kłodzko imerso no resplandecer prateado, cinzento da alvorada.

— Oi, filho — disse Esquisito ao telefone. — Eu o acordei?

Uma voz indistinta respondeu algo que não consegui entender. — Nosso vizinho está morto. Acho que se asfixiou com um osso. Agora mesmo. Hoje à noite.

A voz do outro lado falou algo outra vez. — Não. Já vou ligar. Não tinha sinal. Já o vestimos, eu e a sra. Dusheiko, sabe, a minha vizinha — olhou para mim de relance — para que o corpo não enrijecesse…

E novamente a mesma voz, dessa vez talvez um pouco mais nervosa.

— De qualquer forma, ele já está de terno…

Foi então que alguém do outro lado começou a falar muito e rápido, então Esquisito afastou o telefone do ouvido e olhou para ele com desgosto.

Depois ligamos para a polícia.

 

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