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MAR ABERTO | Serra Gaúcha – cinema, turismo e história

por Boca Migotto

Eu estava morando fora do Brasil quando fui convidado pelo amigo, César Prezzi, a escrever um texto que tratasse da produção audiovisual na Serra Gaúcha. Um desafio, afinal, apesar de vivermos esses tempos de internet e conexões facilitadas, estava longe demais das minhas fontes, dos meus livros e das minhas referências no Brasil. Mesmo assim, aceitei o convite.

O artigo seria incorporado a um livro sobre a imigração italiana e figuraria ao lado de nomes como José Clemente Pozzenato, Loraine Slomp Giron, Luiza Iotti, Cleodes Maria Piazza e outros tantos pesquisadores e escritores da Serra Gaúcha que eu já conhecia e admirava. Como dizer que não? Uma vez que o meu último artigo aqui no Rede Sina – “Serra Gaúcha, que país é esse” – chamou a atenção dos leitores, imaginei que poderia aproveitar os bons ventos desse momentâneo interesse para aprofundar um pouco mais o debate sobre a região onde nasci, me criei e que, inexplicavelmente – será mesmo? –, tanto se identifica com Jair Bolsonaro. Por isso, hoje, apresento um texto que se originou a partir do artigo – o qual tenta aprofundar – “Foi ao cinema e salvou a história”, publicado no livro “150 anos da imigração italiana no Rio Grande do Sul”, lançado este ano. De forma semelhante, já antecipando ao leitor, estou também trabalhando no próximo texto, a ser publicado no dia 10 de outubro, o qual pretendo desenvolver a partir de uma carta enviada por mim ao prefeito e ao presidente da Câmara de Vereadores de Carlos Barbosa, no ano de 2016, a fim de questioná-los sobre o então equivocado – ao meu ver – projeto de restauro do prédio da antiga Estação Férrea da cidade. Esta carta, bem como o barulho que eu e conterrâneo, Felipe Guerra, fizemos, à época, evitou que o referido projeto fosse aprovado. Os detalhes dessa peleia braba, bem como suas consequências, no entanto, ficarão para o futuro próximo. Hoje convido o leitor e a leitora a viajarem um pouco pela história do cinema através deste que é o segundo texto desta inusitada “trilogia serrana”: Serra Gaúcha, cinema, turismo e história. Uma boa leitura.

Diferente de hoje, quando o acesso a uma sala de cinema custa meio rim, durante boa parte do século XX ver um filme era uma atividade popular e, portanto, muito barata. As salas de cinema eram enormes, havia várias sessões por dia, os filmes permaneciam em cartaz por semanas e sempre com sessões lotadas. Assim como passou a ocorrer com os shoppings centers, na época, os cinemas eram o “carro chefe” das cidades e, por isso, suas localizações eram estratégicas. As pessoas saiam de casa para ir ao cinema e aproveitavam para passear, ver as vitrines das lojas, esticar as noites agradáveis – ah, saudades do horário de verão – em alguma confeitaria, bar, restaurante ou mesmo no banco da praça, tomando banho de lua. Nas cidades maiores, cada bairro contava com o seu majestoso cinema. Perguntem aos mais antigos, certamente eles podem atestar a veracidade dos fatos. Claro, tudo mudou e mudou para pior. As cidades ficaram mais violentas, surgiu o conceito de multi-sala, que deslocou as pessoas do espaço aberto para dentro da segurança programada dos shopping centers o que, por sua vez, contribuiu para que os cinemas de calçada fechassem as portas e seus prédios os quais, geralmente, eram enormes, fossem ocupados pelas novas igrejas presbiterianas e/ou estacionamentos. Nada contra – ou quase nada – as igrejas ou estacionamentos, mas ainda prefiro pessoas à pé, caminhando pelas calçadas iluminadas, movimentadas e, portanto, seguras, nas nossas cidades, que carros, discursos messiânicos e shopping centers. Infelizmente, a “Era de Ouro” do cinema passou e hoje, principalmente após a pandemia, o que se discute é se – e até quando – as pessoas seguirão frequentando as salas de cinema.

Mas nas primeiras décadas após o nascimento do cinema, em 1895, – agora estamos falando da primeira metade do século passado – a sétima arte não apenas deslumbrava a todos como era percebida como sinônimo de modernidade. Por isso, por mais precário que fosse, toda grande metrópole, rapidamente, passou a inaugurar suas primeiras salas de cinema. No Brasil, os imigrantes europeus, geralmente, estavam por trás da implantação dos cinemas, bem como da realização das primeiras filmagens. Nesse cenário, em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, os italianos logo se destacaram como empreendedores do entretenimento. Em Porto Alegre não foi diferentes. Também na capital gaúcha os “carcamanos” – como eram pejorativamente denominados os italianos em São Paulo e no Rio Grande do Sul – foram pioneiros no negócio de exibição cinematográfica. Cedo ou tarde, consequentemente, acabaram também se envolvendo com a produção de filmes. Talvez dois dos nomes ítalo-gaúchos mais importantes para o período seja Italo Majeroni, o homem por trás da histórica Leopoldis-Som, e Itacir Rossi, criador da Interfilms. Não por acaso, ambos trabalharam com Vitor Mateus Teixeira – o Teixerinha –, principal artista popular regional a se utilizar do cinema para atingir seu público e, até hoje, ainda responsável por algumas das maiores bilheterias do cinema brasileiro.

No entanto, essa relação dos italianos com o cinema não começou no Brasil. É quase tão antiga quanto a própria história dessa arte – e indústria – que, como já lembrei anteriormente, nasceu no final do século XIX, na França. Apesar de um dos mais importantes filmes de todos os tempos ser italiano, “Cabiria” (1914), de Giovanni Pastrone, foi durante a Segunda Guerra Mundial que a Itália deu sua maior contribuição à História do Cinema. O Neorrealismo Italiano influenciou europeus e americanos e contribuiu para com o surgimento de outro movimento determinante na história do cinema mundial, então na mesma França, a Nouvelle Vague. Portanto, a cinematografia italiana nasceu praticamente ao mesmo tempo que o próprio cinema, cresceu ajudando a consolidar a linguagem e os formatos cinematográficos e atingiu a adolescência questionando – como todo adolescente saudável deve fazer – os padrões já consolidados. Ao mesmo tempo, entretanto, os italianos também imprimiram um padrão próprio através, principalmente, das produções da Cinecittà de Roma.

Nesse país que desde sempre soube valorizar as artes – e não poderia deixar de ser diferente com o cinema – Bernardo Bertolucci, provavelmente, foi o diretor que melhor soube explicar a Itália pós-imigrações através da imagem em movimento. “Novecento” (1976) é um épico que aborda a história italiana desde o início do século XX até o término da Segunda Guerra e, ao longo desse período, contextualiza o nascimento e fortalecimento das lutas trabalhistas num país ainda desfragmentado o qual, apenas há alguns poucos anos, havia se unificado e também promovido uma das maiores diásporas do mundo moderno, obrigando milhões de cidadãos a buscar esperança em outras terras além-mar. Essa mesma miséria generalizada que expulsou os imigrantes e, décadas depois, contribuiu para com a ascensão do fascismo e do próprio Benito Mussolini, foi muito bem retratada no filme, “L’albero degli Zoccoli” (1978), dirigido por Ermanno Olmi, o qual chamou a atenção do mundo para a diáspora italiana ao ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1978.

Já na vida real – e bem longe dos tapetes vermelhos dos festivais de cinema – quando os italianos desta mesma diáspora aqui chegaram, foram apresentados a uma região montanhosa, de mata fechada e animais selvagens, até então, habitada apenas pelos índios Kaingangs. Não por acaso, Caxias do Sul era conhecida como Campo dos Bugres e o local onde hoje é a Praça Dante Alighieri, no centro da cidade, num passado não tão longínquo assim, abrigou uma grande aldeia indígena. Sempre me espanta pensar que a pacata São Vendelino, de colonização alemã, já era uma pequena vila movimentada enquanto, na futura Caxias, os Kaingangs vivam seus últimos anos de paz e tranquilidade antes da derradeira colonização italiana. Diferentemente daqueles italianos mais “bem educados”, que vieram para a América melhor estruturados – alguns até com uns bons “patacones” na guaiaca – e que procuraram se estabelecer nos centros urbanos de cidades como São Paulo, Buenos Aires e Nova Iorque os quais, alguns deles, acabariam por se tornar os pioneiros do cinema, os pobres coitados que subiram a Serra Gaúcha, decididamente, não tinham como prioridade o entretenimento. Muito menos as artes e a cultura. O negócio, ali, era trabalhar para sobreviver, rezar a Deus para sobreviver e, se sobrasse um tempo e uns réis, beber uns “vinhotos” para esquecer o quanto doía sobreviver. No traço comportamental desses italianos se reproduz o histórico dilema entre o sagrado e o profano, permanentemente tensionado já desde quando estes ainda habitavam as angustias do Velho Mundo. Dio que o diga.

Lembro do relato, para o meu documentário “Pra ficar na História” (2016), da historiadora da UCS – Universidade de Caxias do Sul, Loraine Slomp Giron, quando ela ressaltou que ninguém se interessava – e segue não se interessando – pela história dos pobres. Bem sabemos que a maioria dos imigrantes italianos que chegaram no Brasil, eram, na sua época, apenas miseráveis desgarrados, sem pátria, sem terras e sem posses. No entanto, isso mudou rapidamente e, na medida que foram enriquecendo, esses mesmos desgarrados passaram a receber “medalhas e homenagens”, ironizava Loraine. Os imigrantes mais sagazes, então, logo perceberam que bastava ter dinheiro para serem valorizados pela “elite” gaúcha e, me parece, aqui está uma parte da explicação de porquê ainda hoje uma das regiões mais ricas do país é, também, uma das mais conservadoras. O filme “O Quatrilho”, adaptado da obra de José Clemente Pozzenato, inclusive, apresenta essa (falsa) dicotomia entre o trabalho e a arte, como se um inviabilizasse ou fosse totalmente incompatível com o outro. Até mesmo nas relações amorosas. No filme somos apresentados a dois “tipos” de imigrantes. De um lado temos o italiano artesão, sensível, que se apaixona pela mulher do amigo, também ela uma sonhadora. Os dois acabam fugindo para poderem viver aquele amor, deixando para trás o marido dela e a esposa dele, ambos típicos gringos da Serra: sérios, pragmáticos e empreendedores. De certa forma, no frigir dos ovos, a troca dos casais acaba dando certo, uma vez que aproxima almas mais compatíveis umas com as outras. Já o filme deixa claro que a verdadeira paixão foi vivida apenas pelo casal sonhador, que corajosamente arriscou tudo em nome do amor. O outro, ao contrário, acaba transformando o relacionamento forçado pelas circunstâncias em um negócio. Ficaram juntos, enriqueceram juntos, formaram uma família mas, lá no fundo, a mágoa da traição permaneceu viva. Infelizmente, aquilo que deu certo no cinema nem sempre foi viável na vida real desses pobres coitados e muitos “sonhadores” acabaram morrendo infelizes, cooptados pela cultura do trabalho acima de tudo ou sucumbindo silenciosamente às bodegas – e garrafas vazias – da região. O mais triste é que na mesma vida real, também aqueles que enriqueceram, tenho certeza absoluta, não se realizaram. Afinal, “dinheiro não traz felicidade”.

À parte da história narrada, veremos, nesse texto, que o filme de Fabio Barreto é um divisor de águas na relação entre a Serra Gaúcha, a cultura ítalo-brasileira e o cinema nacional. Antes dos anos 1990, por exemplo, a produção cinematográfica na região pode ser considerada tão efêmera ao ponto de conseguirmos citar apenas algumas poucas obras como, por exemplo, o curta-metragem institucional, “As colônias italianas do Rio Grande do Sul” (1975), de Antonio Carlos Textor, além de filmagens domésticas como aquelas realizadas pelo caxiense Oscar Boz, nos anos 1950, as quais renderam, em 2003, devido justamente à raridade de tais imagens, um curta-metragem homônimo dirigido por Jorge Furtado. A já citada Leopoldis-Som, conhecida pela realização de inúmeros cinejornais que registraram a sociedade e as cidades gaúchas ao longo da primeira metade do século XX, produziu um documentário sobre a Festa da Uva, em 1937. Aliás, este foi o primeiro registro sonoro realizado no Estado. Além disso, é bem possível – e bem provável – que existam inúmeros outros registros domésticos perdidos, destruídos ou até desconhecidos. No entanto, se num primeiro momento a dificuldade é citar títulos anteriores aos anos 1990, num segundo momento, a quantidade de obras é tão vasta que um texto como esse não é suficiente para elencar todos os inúmeros títulos de obras audiovisuais realizadas na região a partir da virada do século XX.

Para tal fenômeno, existe uma explicação. Acontece que a relação entre a preservação do patrimônio arquitetônico, que faz parte também do que chamamos “paisagem da Serra Gaúcha”, e o resgate da história e da memória local, são elementos cruciais para a viabilidade turística que ganhou força, especialmente, a partir dos anos 1990. A própria Loraine Slomp Giron afirma que foi o turismo, por uma necessidade de negócio, que ajudou a salvar a história dos colonos italianos. História a qual, por causa da vergonha do passado miserável, era preciso apagar da memória. Portanto, tal sentimento depreciativo incentivou e justificou a destruição de milhares de documentos e fotografias dos imigrantes, bem como, contribuiu para com a demolição das primeiras construções erguidas pelos italianos que aqui chegaram. Caxias do Sul é um belo exemplo da saga ensandecida dessa gente. A ascensão financeira dos descendentes, o complexo de vira-lata, conforme o apresentei no texto anterior (ver “Serra Gaúcha, que país é esse”) e o discurso modernista que pautou o governo de Juscelino Kubitschek – 50 anos em 5 – foram determinantes para que praticamente nada construído antes de 1950 permanecesse de pé na “Pérola da Colônia”.

Por outro lado, bem mais recentemente, quando as pessoas ligadas à produção vitivinícola perceberam que os turistas não se deslocavam para a região apenas para comprar uma garrafa de vinho, mas o que os atraia – e atrairia cada vez mais – era justamente ver as velhas casas de pedra e de madeira erguidas na paisagem montanhosa da Serra, o jeito do descendente italiano falar, as comunidades rurais onde o passado parecia ter estacionado no tempo, ficou claro que o diferencial da região não era apenas a qualidade do bom (?) – e absurdamente caro – vinho local mas, sobretudo, justamente aquilo que os descendentes tentaram apagar e destruir com a máxima força e rapidez possível ao longo das últimas décadas. O vinho, o turista poderia comprar em qualquer supermercado do centro do país, mas a tal da experiência, esta, somente deslocando-se para a Serra Gaúcha.

Se dependesse apenas do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –, que apesar do excelente trabalho sempre esbarrou nas limitações orçamentárias, na falta de visão de uma sociedade envergonhada de si mesma e na ganância imobiliária dos empresários locais, o processo de preservação não teria sido tão eficaz. Portanto, a percepção de que o sucesso econômico do turismo estaria diretamente associado à preservação do patrimônio histórico-social contribuiu para com a desaceleração desse processo de destruição enquanto que, paralelamente, promoveu o inicio de um trabalho de resgate de todo o universo do imigrante italiano. Isso foi possível em algumas cidades que ou estavam estagnadas – cito Santa Tereza, Antônio Prado, Garibaldi – ou não tiveram tempo de se desenvolver tanto quanto Caxias do Sul – nesse caso, Bento Gonçalves, acredito, é o melhor exemplo. No entanto, claro, nada é perfeito. Tal afirmação carrega, em si, uma penca de “poréns” que vão desde o exagero “gringolês” do qual escrevi no texto anterior, até uma espécie de “disneylização” dos roteiros turísticos – nesse momento, em pleno desenvolvimento – o que acaba por descaracterizar excessivamente a região em nome de uma pseudo-elitização turística. Ou seja, o mesmo turismo que “salvou” o patrimônio histórico da Serra Gaúcha é aquele que também patrocinou – e patrocina cada vez mais – heresias em nome dessa “italianização” muitas vezes equivocada. Em todas as circunstâncias, a resposta para tais “confusões” conceituais é resultado da soma de fatores já bastante conhecidos: ausência de uma educação humanizadora que perceba a arte a cultura como essenciais para o desenvolvimento social e, claro, o tal lucro a qualquer custo e da forma mais rápida possível. Quanto a isso, no entanto, é preciso destacar que não se trata de uma exclusividade da Serra Gaúcha. Está aí Camboriú, seus arranha-céus e o esquizofrênico processo de aterramento de uma praia sombreada pelos mesmos edifícios para nos mostrar que o furo é bem mais embaixo. Novamente, para complementar a reflexão sobre o colonialismo presente nessa equação, sugiro a leitura do artigo anterior, “Serra Gaúcha, que país é esse”.

De qualquer forma, é preciso admitir que, ao menos num primeiro momento, o turismo promoveu uma certa conscientização sobre a importância de se preservar a memória dos primeiros imigrantes e, “grazie a Dio”, o processo de apagamento do passado foi desacelerado. Não por acaso, é também nesse momento – e essas ações – que despertarão o interesse das produtoras em filmar as paisagens serranas dando início a um circulo virtuoso que aproximou o turismo e a produção audiovisual. Esse processo, o qual se intensificou a partir dos anos 2000, teve inicio com a realização do já citado “O Quatrilho”, em 1995. Portanto, para que o projeto vitivinícola do Vale dos Vinhedos – primeira Região de Denominação para o vinho brasileiro – surtisse efeito, além de melhorar a qualidade da bebida – até os anos 1980 o vinho gaúcho era mais conhecido pela quantidade do que pela sua qualidade – era preciso, também, preservar a memória dos imigrantes, pois um conceito estava diretamente relacionado ao outro. No entanto, sabemos, os gringos se vangloriam pelo trabalho e, de fato, eles foram muito rápidos e eficientes em substituir as velhas casas de madeira por prédios ditos modernos. Por isso, mais do que apenas resgatar, era preciso salvar essa história.

Um dado que ajuda a reforçar tal afirmação vem da própria UCS – Universidade de Caxias do Sul. Apesar da relação direta da instituição com a história da Serra Gaúcha, as primeiras pesquisas acadêmicas sobre a imigração italiana, ainda de forma incipiente, começaram apenas no final da década de 1970. Ou seja, até esse momento muita coisa já havia se perdido. O projeto ECIRS – Elementos Culturais da Imigração Italiana no Nordeste do Rio Grande do Sul, um divisor de águas que muito influenciou a política de preservação daquilo que ainda restava na região, iniciou apenas em 1978. Mesmo com atraso, pesquisadores como Cleodes Maria Piazza, José Clemente Pozzenato e o fotógrafo Aldo Toniazzo, foram determinantes na catalogação, organização e preservação dos bens e valores culturais das comunidades rurais da região onde ainda era possível estabelecer uma conexão com o passado. Os registros fotográfico, oral e videográfico do ECIRS, inclusive, fundamentaram a pesquisa da produção do mesmo “O Quatrilho”, já várias vezes – e não por acaso – citado nesse texto.

Não quero afirmar que a produção audiovisual esteja livre de problemas, vícios e equívocos, mas é bastante perceptível o quanto o filme de Fábio Barreto se mostrou essencial no processo de reconhecimento dos valores culturais dos imigrantes italianos e, consequentemente, foi um ponto de virada determinante para a Serra Gaúcha naquele momento crucial. As filmagens mobilizaram várias cidades como Carlos Barbosa, Garibaldi, Bento Gonçalves, Farroupilha, Caxias do Sul, Antônio Prado as quais, de repente, passaram a receber artistas até então vistos apenas na televisão. Sem dúvida, isso despertou até o mais cético dos “gringos” para o fato de que havia alguma coisa na sua cidade – e na sua história – que merecia melhor atenção. Afinal, “o pessoal de fora” – sempre o “estrangeiro” – estava atravessando o Brasil para filmar aquelas mesmas casas velhas que por muito pouco ainda estavam de pé? Ainda hoje os turistas que fizerem o roteiro do “Caminhos de Pedra”, em Bento Gonçalves, podem visitar uma das locações do filme. Parece pouco, mas aquilo que começou com uma placa convidando os turistas a conhecer a velha casa que foi cenário do longa-metragem se transformou, hoje, num verdadeiro complexo turístico o qual sustenta toda a família Strapazzon – proprietários do lugar – e, certamente, contribuiu para que filhos e netos não deixassem a “roça” em busca de emprego nas fábricas da cidade.

Entretanto, claro, isso também gerou, uma vez mais, uma radicalização comportamental. A baixa autoestima e a vergonha do descendente para com tudo aquilo que remetia ao passado de pobreza dos seus “nonnos e nonnas”, algo que, como vimos, num primeiro momento colaborou para com o apagamento desta memória em nome da “modernidade”, num segundo momento gerou um (falso) excessivo sentimento de orgulho. Defendo, entretanto, que se trata de um sentimento não tão genuíno o quanto parece – ou querem fazer parecer – pois o mesmo está atrelado mais ao progresso econômico, bem como ao passaporte italiano o qual, mais do que conectar os descendentes à “pátria-mãe”, os transforma em “cidadãos da comunidade europeia”, do que à uma percepção verdadeira da importância histórica que permeia o passado daquela região. Mais uma vez, a carência de uma educação mais humanista produz uma anomalia cultural que se disfarça de progresso. O orgulho dos “nonnos”, no entanto, acaba no valor do metro quadrado.

De qualquer forma, acredito e defendo, foi mesmo “O Quatrilho”, um dos filmes da chamada “Retomada do Cinema Brasileiro”, o responsável por tamanha transformação comportamental na região. A título de registro, é irônico pensar que é o governo do Presidente Jair Bolsonaro, “mito” para uma média de 80% dos eleitores da Serra Gaúcha, o responsável direto por, mais uma vez, estrangular a produção audiovisual brasileira através de ataques sistemáticos à ANCINE – Agência Nacional do Cinema Brasileiro, entidade que veio a ser criada, justamente, para substituir a EMBRAFILMES – Empresa Brasileira de Filmes, destruída por Fernando Collor de Melo no início dos anos 1990. Não é preciso julgar os méritos artísticos e técnicos do filme para saber que “O Quatrilho”, segundo o site da mesma ANCINE, fez uma bilheteria de 1.117.754 espectadores, gerou muita publicidade, teve veiculação televisiva, foi distribuído para o mercado de Home Video e foi indicado ao OSCAR de Melhor Filmes Estrangeiro em 1996. Não levou o tão esperado prêmio, mas a partir dessa experiência muita coisa mudou na Serra Gaúcha. No entanto, não apenas do “Quatrilho” se construiu o imaginário daquela que é uma das regiões mais procuradas pelos turistas brasileiros. No Rio Grande do Sul, particularmente, é preciso ainda lembrar que a chegada da tecnologia digital em meados dos anos 2000 também contribuiu para com o nascimento do Núcleo de Especiais da RBS TV o qual, ao longo de 15 anos, desde 1999, ajudou a viabilizar inúmeros projetos de ficção e documentários em formato curta-metragem. Para se ter uma ideia, desde o primeiro programa lá filmado, “Mundo Grande do Sul – Viagem à Terra da Fartura” (2001), de João Guilherme Barone, passando por “Sapore d’Italia” (2011), a primeira série de ficção da RBS TV – e do Rio Grande do Sul – a ser filmada no exterior, codirigida por mim e pelo Rafael Ferretti em mais de 20 cidades entre a Serra Gaúcha e a Região do Vêneto, na Itália, até o último programa gravado na região, em 2012, “Se milagres desejais”, de Andre Constantin e Nivaldo Pereira, foram, segundo Gilberto Perin e Alice Urbin – responsáveis pelo Núcleo de Especiais – 21 programas que tiveram a Serra como cenário. Isso sem contar as inúmeras reportagens que a RBS-TV realizava para, direta ou indiretamente, divulgar as produções em andamento. Tal projeto, além de mobilizar a economia das cidades onde as histórias se passavam, também contribuía ainda mais para com um sentimento regional de valorização da própria cultura. Afinal, aparecer na TV é – ou era – de certa forma, uma comprovação da importância de algo ou de alguém.

Então, durante esse período de pujança do audiovisual brasileiro – e gaúcho – inúmeras produções procuraram as prefeituras da Serra Gaúcha como parceiras. Não por acaso, a primeira Film Commission do Rio Grande do Sul – um órgão que existe em várias cidades, estados e países do mundo para receber e facilitar as produções audiovisuais – foi criada em Bento Gonçalves pela então Secretária do Turismo, Ivane Fávero. Tal iniciativa foi repetida também em Garibaldi e, essas duas Film Commissions foram responsáveis, desde então, por capitalizarem inúmeros projetos. Para citar apenas alguns, os longas-metragens “Real Beleza” (2013) e “Saneamento Básico” (2007), filmados em Bento Gonçalves, Santa Tereza e Monte Belo, além da série da Globo, “Decamerão, a Comédia dos Sexos” (2009), gravada em Garibaldi, todos os três dirigidos por Jorge Furtado. Segundo dados das próprias Film Commissions, além destas produções da Casa de Cinema de Porto Alegre, também vale destacar os longas-metragens “O céu sobre mim” (2012), uma produção da produtora caxiense Spaghetti Filmes, com direção do italiano Gian Vittorio Baldi; “A Oeste do Fim do Mundo” (2012), de Paulo Nascimento; “Os Senhores da Guerra” (2012), de Tabajara Ruas, “O Filme da Minha Vida” (2017), de Selton Mello e “Os Bocheiros” (2016), minissérie dirigida por mim e toda filmada em Santa Tereza e Monte Belo. A paisagem e as características culturais da Serra Gaúcha também estiveram presentes em novelas, reportagens, comerciais de TV, DVDs como, por exemplo, o programa “Estrelas”, da TV Globo, gravado em 2017; o documentário “Nas trilhas da imigração italiana”, gravado em 2017, pela RAI, o comercial de Natal da Coca-Cola, de 2015 e o DVD “Chitãozinho & Xororó – ao vivo em Garibaldi”, dirigido por Paulo Nascimento e Gilberto Perin ainda em 2003, o qual vendeu mais de 40 mil cópias. Ali perto, a pequena cidade de Cotiporã serviu de locação para “Os famosos e os duendes da morte” (2009), longa-metragem de Esmir Filho, o qual foi filmado também em outras cidades da região, além do documentário “Morro do Céu” (2009) e do longa-metragem de ficção “Os Dragões” (2018), ambos de Gustavo Spolidoro. Novamente, vale lembrar que estou apontando apenas as produções que passaram pela chamada “Região da Uva e do Vinho”. Se ampliarmos o escopo para Gramado e Canela, os Campos de Cima da Serra, ou mesmo Flores da Cunha e Antônio Prado, há muito mais produções a listar. Nem todas, claro, abordaram diretamente a história dos imigrantes italianos. Mesmo assim, o simples fato de as obras registrarem a paisagem – natureza, construções, pessoas e seus sotaques – já é, em si, um ato de preservação – e resistência – da memória. Assim, todas essas produções contribuíram para com a divulgação da Serra Gaúcha. Não por acaso, as duas Film Commissions criadas na região nasceram de dentro das Secretarias de Turismo mas poderiam, também – e em muitos lugares do mundo é o que ocorre – terem sido alocadas junto às Secretarias de Indústria e Comércio pois, como já citado anteriormente, a economia dos municípios onde ocorre uma filmagem ganha muito com a chamada Indústria Criativa.

Uma produção artística sempre demanda fornecedores como hotéis, para receber as equipes; restaurantes e/ou supermercados, para suprir a alimentação; postos de gasolina, para abastecer caminhões, carros e vans envolvidos nas filmagens, além de material de ferragem, marcenaria e papelaria para cenários e costureiras para os figurinos. Quanta gente e seus negócios pequenos, médios e grandes não faturaram, das formas mais diversificadas possíveis, ao longo do tempo quando tais produções ocorriam com frequência na região? No mundo, o valor da economia criativa é estimado em 4,7 trilhões de dólares. Segundo um estudo do SEBRAE, que serviu de base para uma matéria da revista Meio&Mensagem, de abril de 2019, no Brasil, o mercado audiovisual mobiliza – ou mobilizava, uma vez que o governo Bolsonaro sucateou radicalmente o setor – recursos na casa de 20 bilhões de reais por ano, gerando, a cada real investido, um retorno de 2,60 reais em tributos. Esses números que refletem o mercado nacional o qual, até 2019, vinha crescendo 7% ao ano – números chineses em um país de economia estagnada –, ilustram também o que ocorria na Serra Gaúcha quando era comum, inúmeras vezes, ocorrerem diversas produções simultâneas. Obviamente, tamanha mobilização de recursos gerou muitos empregos – diretos e indiretos –, pagou impostos e movimentou as economias locais. Mas, ainda mais importante que isso, ajudou a construir um imaginário sobre a Serra Gaúcha, influenciando corações e mentes ao mesmo tempo que as produções realizadas, cada qual para o seu público e conforme seus objetivos, divertiram, educaram, informaram, valorizaram e divulgaram a cultura de onde foram realizadas. Além de – e até mais importante – contribuírem para com a preservação da memória daquelas comunidades e sua gente.

Os Estados Unidos, sempre uma referência para nós, brasileiros, aprenderam desde cedo a importância do cinema e influenciaram o mundo através das produções hollywoodianas. A França, por outro viés, tem no cinema uma das suas principais ferramentas de integração cultural. Enquanto isso, Espanha, Canadá, Reino Unido, Japão e até a sempre falida Argentina, para citarmos apenas alguns países, vêm aumentando consideravelmente os incentivos para o desenvolvimento de suas indústrias do entretenimento e da cultura. A Netflix é um bom parâmetro para constatarmos isso. A quantidade de filmes e séries asiáticas, europeias e até latino-americanas, bem como, ao mesmo tempo, o reduzido número de produções brasileiras, atestam as prioridades de cada país e região para com o seu próprio futuro. Isso porque, é fato, os países que investirem no audiovisual e suas inúmeras ramificações, certamente terão mais chances de não apenas sobreviverem mas, principalmente, de se afirmarem culturalmente perante as demandas apontadas para as próximas décadas. No período que morei na França, entre 2019 e 2020, obviamente, acessava o Netflix com assiduidade. Ao contrário do Brasil, onde, para encontrar um filme nacional é preciso procurar muito, na França, os produtos nacionais aparecem já na primeira página da provedora. Isso não ocorre porque o audiovisual francês é melhor que o brasileiro ou porque a Netflix gosta mais deles do que de nós. Isso é resultado de leis de proteção ao produto nacional algo que, desesperadamente, diz muito sobre quem somo e quem queremos ser como nação.

Assim como qualquer outro setor da economia – agronegócio, metalomecânico, pesquisa e ciência – também o audiovisual necessita proteção e incentivos. Nenhuma Indústria Criativa se estabelece sem investimento, vontade política e, sobretudo, percepção social acerca da importância desta para toda a cadeia produtiva nacional. Ainda, retomando os anos de ouro da produção audiovisual na Serra Gaúcha, é preciso ressaltar que nada daquilo teria sido concretizado sem o trabalho exaustivo de milhares de profissionais. Ironicamente – e infelizmente – os mesmo que tanto lucraram com o trabalho dos artistas e técnicos por trás de todas as obras citadas nesse texto são os mesmos que votaram e apoiaram o político que mais desserviço prestou ao setor audiovisual em toda a história recente desse país. E olha que o páreo é duro, afinal, bem sabemos, cultura e arte nunca foram prioridades na política nacional. Para estes eleitores de Bolsonaro nós, os artistas e técnicos por trás dos projetos realizados na Serra Gaúcha, somos apenas “vagabundos”. Um discurso que é reiterado pelo presidente, logo ele, o maior vagabundo que a política desse país já produziu, e ecoa pelas bocas, ouvidos e grupos de Whatsapps dessa pobre gente de “bem” que a tudo sabe e de tudo tem certeza. Trabalhador, para essas pessoas, são apenas os escravos da rotina, aqueles que acordam cedo, batem o ponto e permanecem trancados num chão de fábrica ou numa construção civil até o sol se pôr. Fácil de compreender esse discurso, afinal, a rotina impede a reflexão e, consequentemente, o questionamento sobre esse propagado estilo de vida baseado, apenas, no sucesso financeiro. Quase nada contra esses empreendimentos ou mesmo o enriquecimento das pessoas que acreditam nesse discurso, mas está mais do que na hora de o Brasil perceber que até para isso o mundo mudou. O trabalho braçal, bem como a lógica do capitalismo selvagem, cada vez mais dá espaço para experiências mais criativas, ecológicas e sensoriais. Enquanto inúmeros países, há tempo, já perceberam isso e desde muito implementam projetos desenvolvidos para – e pelas – suas indústrias criativas, o Brasil se agarra a um governo retrógrado, corrupto e populista. Mas, graças a Deus, à Pátria e às famílias de “bem”, a mamata acabou.

 

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design.
Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Como professor de Documentário ajudou seus alunos a ganharem prêmios importantes como Kikito de Melhor Curta-metragem, no Festival de Gramado, e Melhor Curta-metragem pelo Voto Popular, no Festival de Tiradentes.
Hoje não é mais professor, mas acabou de finalizar seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção; Na antessala do fim do mundo.Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens; Filme sobre um Bom Fim, Pra ficar na história, O sal e o açúcar e Já vimos esse filme. No momento prepara uma adaptação “menos acadêmica” da sua tese de Doutorado; Um tal cinema gaúcho de Porto Alegre ou como essa cidade mata seus artistas, livro que pretende publicar paralelamente ao seu quinto longa-metragem, o documentário homônimo, que realizou junto à pesquisa de Doutorado.
Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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