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Maria Fernanda Elias Maglio. Foto: divulgação

SÃO PAULO por Maria Fernanda Elias Maglio

– Tá doce?
– Bem docinho, pode provar.
– Não, só de ver a boca pinica, tenho afta desde novinha.
– Não quer levar? Um por seis, dois por dez.
– É, eu tenho afta mesmo, começou de criança.
– Trabalha por aqui?
– Ali naquele prédio.
– Babá?
– É, mais ou menos babá. A patroa tem dois meninos, de cinco e de sete, eu fico com eles antes da escola.
– Registrada?
– Ela falou que me registra mês que vem, sem falta. Você trabalha aqui?
– De quinta eu fico nessa esquina, porque tem o movimento do culto, aquilo ali é uma igreja, sabia?
– Sabia não.
– O povo sai seco por um abacaxi, ainda mais nesse calor. Hoje vou vender quase tudo, se Deus quiser, garanto o leite das crianças. Você tem filho?
– Sou casada não, moço. Queria estudar, terminar escola, fazer curso de enfermeira.
– Faz bem.
– Deixa eu ir que o Pirituba tá chegando, se perder esse, só daqui uma hora.

*

– O bagulho tá sinistro. Os polícia que nem perdigueiro atrás de nóis, vão chegar esculachando.
– Fica na paz, Estopa, vâmo manter a atividade, suave. Daqui a pouco os cara esquece, arrebenta um cativeiro, descobre refinaria. Viu que mataram uma grávida na Rebouças? Deu na televisão, estouraram a cabeça, dava pra ver até os miolo tudo pregado no banco do carro. Cabuloso, mano, cabuloso.
– Porra, Café, tu é muito mole, é por isso que nosso negócio não vai pra frente. Parece veado, mano, medo de sangue, de miolo. Tem que sentar o dedo sem dó, se não é eles, é nóis.
– Sei lá, Estopa, matar não é pra mim não. Vender pó, saidinha de banco, tudo suave. Mas não nasci pra matar não, tenho dó, penso na minha mãe.
– Tu é um bundão, Café, não vai subir na vida nunca, tua mulher nunca vai botar silicone nos peito, tu não vai ter carrão, casa com churrasqueira. Vai por mim, Café, negócio que dá dinheiro é matar, passar cerol geral, sem dó. Quem tem pena é galinha, bagulho aqui é lôco.

*

– Vai passar clarinho?
– Não, Dirce, hoje vou de vermelho.
– Tem festa, é?
– Casamento da minha cunhada, lembra que eu te falei, é sábado agora.
– É mesmo, tu é madrinha, né?
– Nem me fala, vontade ter um piriri bem no dia, se bem que piriri não, era melhor hospital, internação, cirurgia, coisa de cancelar o casamento. Aí eu queria ver a cara dela. Esse fica bom? Tâmara, não tinha mais esse, né, eu passava quando mocinha, nunca mais tinha visto. Te contei que ela escolheu verde pras madrinhas? Verde, cristo rei, quem é que fica bem de verde. Ainda mais eu que sou branquinha, verde me apaga, fico bem de vermelho, laranja, amarelo, cor solar. Olha essa chuva, Dirce, preciso chegar na Mooca antes das cinco, se chover ferrou. É muita gente nessa cidade, muito carro, hoje a coisa mais fácil é ter carro, parcela em não sei quantas vezes e já sai da concessionária com um golzinho. Ai, acho que não gostei, Dirce, muito apagado. Você se importa de tirar? Vou passar esse aqui, inveja boa, gostei do nome, é mais aberto, mais solar. Rapinho, Dirce, antes de cair essa chuva.

*

– Moço, onde eu acho chia por aqui?
– Chi o quê?
– Chia, sementinha, tipo natural, sabe?
– Ah, se for essas coisas de natural, negócio de orgânico, granola, só no mercadão da Lapa.
– É longe?
– Uma andadinha. Desce quatro, vira a esquerda na Guaicurus, você já vai ver o mercado.
– Lá eu encontro chia, certeza?
– Certeza, eu não sei não, mas se é coisa natural, diferente, deve ter no mercado.
– É que eu tô com um sapato que tá me matando, fez até bolha, ó, carne viva. Por acaso o senhor não tem band aid pra vender, não, né?
– Tenho sim. Aqui tem tudo, moça, band aid, curriculum, xerox, desodorante, chiclete, lixa de unha, zona azul, capa de chuva, só não tem esse negócio aí, como é que chama mesmo, chiva?

*

Ainda não deu tempo de chegar polícia, isolar a área com fita amarela, interditando a rua. Ninguém viu quem atirou, uns dizem que eram dois caras, uma mulher jura que era um só, pediu um abacaxi e tá. O rapaz do posto de gasolina diz que não foi tá, não foi tá de jeito nenhum, foi tá, tá, tá, três. A atendente da farmácia diz que viu tudo, eram dois, um apertou o gatilho três vezes, mas dois tiros pipocaram, só saiu um, ela sabe dessas coisas, o primo fez curso de tiro em um estande da Vila Prudente. Os carros enfileirados na rua formam uma cobra metálica gigantesca, imóvel. Não fossem as buzinas incessantes, pareceria um animal morto. O homem gordo, de camisa laranja, três botões abertos revelando o pescoço denso e vermelho, fala do trânsito: pode ver, tudo quanto é carro dá uma paradinha pra olhar, é por isso que faz trânsito. A moça de cabelo vermelho concorda, verdade, e ainda buzinam, pra que buzinar? Solta a sacola por alguns instantes, está pesada, comprou coisa demais, farinha de berinjela, manteiga ghee, linhaça dourada, chia, óleo de coco. A serpente prateada começa a se mover devagar. Um SUV branco baixa o vidro e olha a cena: um homem estendido sobre a pilha de abacaxis, a cabeça estourada do lado direito, do buraco escorre sangue e uma pasta cor de rosa, os olhos estão abertos, mas não veem o céu de chumbo que afiança tempestade. Daqui a três ou quatro minutos caem as primeiras gotas. A chuva vai enxaguar o sangue dos abacaxis, a moça de cabelo vermelho vai correr de sacola na mão e band aid nos pés, a mulher do SUV branco vai sentar a mão na buzina e as unhas esmaltadas de vermelho não vão reluzir, porque não tem sol nenhum.

 

Maria Fernanda Elias Maglio nasceu em Cajuru-SP, em agosto de 1980. É escritora e defensora pública, trabalha fazendo a defesa de pessoas pobres que estão cumprindo pena. Seu primeiro livro, “Enfim, imperatriz” (Patuá, 2017), venceu o Prêmio Jabuti 2018 na categoria contos. Publicou também o livro de poesias “179. Resistência” (Patuá, 2019), vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional de 2020.

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