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SANTA MARIA, 18 DE DEZEMBRO DE 1987 por Márcio Grings

Sábado, 11h da manhã — na velocidade da besta — o Opala envenenado do Arcanjo Miguel atravessa a Presidente Vargas. Rastro de fumaça & um aroma ocre de monóxido de carbono. Sem carteira de habilitação, ele desvia de uma barreira & parte para o lado oposto da linha férrea.

Em estado de confusão mental, solitário & seminu, Ragnar avança com seu cavalo pela Professor Braga & para logo depois de perder-se da Tuiuti. Pilotando sua Monareta cromada, Anita dobra na Visconde & estaciona na esquina com a Dr. Bozano. Encontro marcado com Giuseppe — todas as quartas-feiras, meio-dia em ponto, ala minuta para dois. Camuflado dentro de seu Uno, Átila vê a esposa saindo da porta lateral de um cabaré. Ela parece tão triste… A espera de Marlon, sentindo-se psicologicamente exaurida, chambre entreaberto, Vivien lentamente arrasta suas pantufas Duque acima & pega a Niederauer até a altura da Appel. No quintal de um muquifo na Floriano, Jano vê o verme cor de clorofila a submergir numa piscina de plástico — “Quando o maldito novamente emergir, golpeio-o no estômago”, lhe sugere Carmese.

Com uma ficha da CRT no bolso, Delfina cruza pela Olavo Bilac & se depara com as ruínas de uma cabine telefônica. Por aquelas bandas, Bonifácio frequenta uma casa de espetáculos que devido à crise de abstinência está prestes a fechar as portas. Descendo pela Riachuelo, sobre o teto do Mercado, Michelangelo vê um bando de pombas brancas em pé de guerra com o Vento Norte. Galeria Chami adentro, Edgar impõe a mão & admira a negritude do Escaravelho — “símbolo da Guarda Pretoriana de Júlio César”. A voz de Nelson Gonçalves ainda sobrevive no sobrepiso da Cafeteria —”Elo Perdido da cultura local”, segundo Pedro Freire. Paulo & Jeane — um tablete de manteiga & o Último Tango no Edifício Imembuy — TV ligada, muda, “Caça-Fantasmas” & o chroma key de uma parede azul celeste.

No Cine Glória, Alfredo confere a estreia d“Os Intocáveis” & chora no ombro de Elliot Ness. Banquete dos Mendigos na escadaria de acesso ao Condomínio. Na Paul Harris, próximo ao prédio da Rádio, Tereza Louca & seu amigo imaginário devoram uma generosa porção de batatas-rústicas. Bar do velho Hoffmann — na borda da mesa de bilhar, dois copos de aguardente com alguma mistura rubra — Bonnie & Clyde cabulam o segundo período trocando o lápis por tacos de madeira. Antes que Leonardo coe os grãos de erva-doce & e misture o líquido com Hidromel Bouchet, Suzanne aparece na sua porta, cheirando a Cashmere Bouquet & com uma proposta de emprego — “É possível caramelizar um instantâneo de felicidade”, pergunta o poeta no mesmo instante em que a oferece uma taça de chá. Praça Saldanha Marinho, menino Sorriso copiosamente chora. A Rua dos Andradas, entre André Marques & Rio Branco, nunca mais foi a mesma depois daquele beijo roubado, relembra Melanie, a última das Virgens Vestais. Pelas bandas da estação férrea, ao lado da Vila Belga, Virgílio vibra ao ver o triunfante desfile do guaipeca de três patas com um osso roubado — sua Ilíada ­— Pedra de Roseta entre os dentes, rumo a Getsêmani.

Debruçada no balcão de Seu Gumercindo, segurando firme o walkman verde limão, Guinevere chora ao ouvir “I Still Haven’t Found What I’m Looking For”. No Parque Itaimbé, amaldiçoado pela auréola de uma cesta de basquete, Yuri leva um fora de Lara & resolve retornar ao Clube dos Descontentes. Vindo de Itaara, General Custer abaixa sua espada para ouvir Monaseetah entoar uma canção indígena. É quase impossível superar a boca-de-fogo da zaga montada pela Gangue da Maria Quitéria, mas Denoir emplaca dois gols na gaveta em pleno campo de guerra — salve o gramado esburacado da Praça do Mallet! Sentada no meio fio, Telma fica toda lambuzada de ketchup. Louise ri da amiga — as duas dividindo o tradicional xis salada da Borges. Pouco depois de uma chuva de verão, Ernesto embarra o tênis branco no chão batido da Liberdade. Enquanto isso, o Velho do Saco vagarosamente desce a lomba da Sete. Com sorte, quem sabe conseguirá ouvir o melancólico apito do Trem Húngaro, máquina, vagões & um monte de gente serpenteando rumo à Uruguaiana.

De “Engarrafando o Vento” (Chiado Books), lançado por Márcio Grings em janeiro deste ano. O livro está disponível na Cesma ou pelo site https://memorabiliastore.com.br/.

 

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