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Pandemia, Parkinson e Psique POR ROSANA ZUCOLO

“O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem” (
João Guimarães Rosa)

Não sei dizer exatamente em qual momento comecei a escrever este texto, e nem o porquê da ordem no título. Apenas sei que ao voltar aqui, encontrei-o como rascunho e com o trecho de Rosa como epígrafe. Resolvi seguir deste ponto, talvez porque escrever sempre me pareceu uma forma de reorganizar internamente os tumultos. Ao menos como tentativa, pois este período pandêmico trocou todos os lugares. Ou melhor, transformou quase tudo em não-lugares. O mundo tornou-se hostil e fluído, num espaço aonde a nossa humanidade vaga na tentativa de apreender alguma concretude.

Um texto recente publicado no jornal inglês The Guardian aborda o significado do isolamento físico para a saúde mental da espécie humana. Há mais de um ano em “cativeiro”, muitos de nós estão lidando com um estresse profundo sem o conforto de um toque modulador e gratificante ao sistema fisiológico. De repente, de forma aguda, descobrimos que somos profundamente dependentes de contatos táteis. Tocar as pessoas sempre foi algo automatizado e ocorria em diferentes níveis e circunstâncias. A impossibilidade momentânea e radical de o fazermos torna consciente essa codependência, ao ponto do adoecimento.

A angústia decorrente da impossibilidade de aproximação, da falta que o Outro faz, do contato sensorial e da necessidade de pertencimento traduz um sofrimento coletivo cuja forma de resolução futura ainda é desconhecida. Como seremos uns com os outros pós-pandemia? Como estamos conseguindo lidar conosco mesmo? E com aqueles amig@s que se recusam a qualquer proximidade para além da virtual? Como me vejo diante desse Outro que me teme e a quem eu também temo?

Neste momento esvaziado de abraços, até mesmo os desafetos nos fazem falta, porque a presença do Outro delimita a nossa existência de modo concreto. E é quando tudo se torna muito, muito relativo.

A vida, no ritmo imposto pela pandemia, parece marcada por um imenso esforço em busca de alguma normalidade. Esforço de continuidade dos fazeres e afazeres que, muitas vezes, soam anacrônicos e sem sentido.

Antigas obrigatoriedades e normativas se tornaram irrelevantes diante do crescente número de mortes e da tentativa de sobrevivência. Tateamos em busca de assegurar a institucionalidade de um cotidiano que já não existe. Ao menos não como o conhecíamos, e esse outro normal parece permeado de múltiplas tentativas, inovações e soluções imediatas que carecem de profundidade e fundamento, porque isto é algo que só o tempo permite maturar e adquirir.

A ordem é reorganizar o mundo do trabalho que diz ser preciso resolver e continuar, indefinidamente. Mas para onde? Todos os projetos estão fadados ao imprevisível e ao imponderável. Improvisamos diante da ameaça maior.

Há quem não suporte. Parar pode ser um exercício duro do ponto de vista individual, porque requer paciência, tolerância, complacência à pessoa com quem, de repente, nos deparamos a ver no espelho por mais tempo do que o habitual. É como mergulhar numa infindável sessão analítica. Não há para onde escapar agora que as mediações foram reduzidas. É cada um consigo mesmo sem ter como procrastinar. E ser gentil com o estranho que nos habita não é tarefa das mais fáceis.

Resta alimentar a sanidade possível, amparando-nos uns aos outros. Porque vivemos de medo e coragem, dor e saudade, esperança e desespero num tempo que não termina. O espelho do individual mostra o coletivo. E a imagem está feia, pesada, sofrida, violenta, distópica.

Estamos numa guerra na qual o inimigo, invisível, não apenas nos mata, mas antes nos revela.

Imagem de israelbest /pixabay

Há cerca de dois anos escrevi e postei aqui um texto sobre nossa experiência familiar no enfrentamento do Mal de Parkinson. Não consegui, à época, voltar ao texto. Naquele momento, e sem pandemia, tudo parecia mais “controlável” e eu enfrentava a resistência interna diante do que me parecia ser a exposição do Outro diante de outros tantos.

Não sei dizer em que medida isto parecia ser uma proteção, ou se seria a negação da perda do sujeito. Escrever sobre a transformação do Clovis, pai dos meus filhos, em decorrência do Parkinson soava como uma violência. Uma traição ao homem que ele era e à sua consciência. Teria que admitir que estávamos perdendo-o para a doença. Fragilidade do doente e da família diante da doença.

E sim, estamos perdendo. Ela avança, mais rápida do que gostaríamos. Piorou com a pandemia. Não há válvulas de escape, nem reversão no horizonte. Adiante é a finitude, ainda que saibamos – uma vez passado o caos e por causa dele- , novos rumos e tratamentos virão para as gerações futuras.

O processo é tragicômico e, ao mesmo tempo, é quando se faz outras descobertasa priori. Entre elas a de que o tempo não é linear, nem que a vida pode ser apreendida em parâmetros definitivos ou rígidos, ainda que eles sugiram uma suposta “segurança”. E também que as dinâmicas familiares têm raízes muito mais profundas do que supõe uma análise meramente racional, afetando positivamente ou não, o tratamento. Lidamos com as limitações de cada um, num momento de fim das certezas e o início das possibilidades, lembrando Ilya Prigogine ao tratar da flecha do tempo.  Assim que, hoje, tratamos com uma pessoa mais solta e despreocupada do mundo à sua volta, fácil de cuidar, parecendo um guri com as canelas lanhadas dos inúmeros e inevitáveis tombos. Que brinca com água a ponto de esquecer as mangueiras e torneiras abertas, que plantou tomates, pimentões, couve, alfaces, temperos e depois trocou tudo de lugar. Que faz mandalas com pedras no jardim e depois desmancha de novo e de novo; que escondido, dá comida para a Flor, a cocker spanish da Melina, proibida de comer outra coisa além de ração especial; que engorda os cachorros e os gatos porque sempre ao ver os pratos vazios, enche de ração; que fica faceiro com presentes e usa tudo imediatamente; que adora pudim de leite moça e o arroz com leite da Luiza; que guarda as coisas e depois não lembra onde deixou; que quer voltar a dirigir e ir aos bancos; que gosta de ler longos textos para a Carina durante as sessões de fono e, por vezes, dribla a Quellen durante os exercícios da fisioterapia, dizendo que cansou…logo depois corre para o pátio a mexer nas plantas; que queimou a cafeteira italiana e a chaleira esquecendo-as no fogo; que disputa a lavagem das louças na pia depois do almoço e já quebrou todas as xícaras do jogo de café; que esquece da pandemia e quer ir na padaria e no supermercado; que sempre quer ligar para o Maul e o Daniel; que gosta da companhia da Tay e Melina por serem gentis ao ficarem à noite com ele.

Clovis e Aquiles, fiel escudeiro

Então também se aprende durante esse processo de adoecimento prolongado, pesado e pesaroso, apesar de permeado de levezas e risos. E todos envolvidos até a medula no processo, tentando viver a normalidade possível.

O diagnóstico de Parkinson dado em 2016, não sinalizou quando tudo teve início. Não há como precisar, embora o somatório de sintomas sejam indícios preciosos ao mapeamento do tempo da enfermidade. No entanto, saber deles é sempre tardio, é quando a doença já está instalada. Não foi diferente conosco.

O alívio de se ter uma definição da doença, o ímpeto em buscar o maior número de informações fidedignas possíveis, de se balizar pela medicina tradicional que indica os caminhos até então traçados e cristalizados no tratamento, parece convergir para um certo alívio e até mesmo negação quanto à gravidade do comprometimento crescente que a doença determina. Propostas como a introdução de novos elementos — da pauta alimentar à atividades inovadoras -, não conseguem ir além porque a psique resiste à  mudança profunda e necessária.

Acredito ser uma etapa, na qual principalmente o doente, aprende mais sobre o como enfrentar a doença em suas diferentes etapas, do que se colocar convictamente em movimento para fazê-lo. E mudar é profundamente difícil para a maioria das pessoas.

Penso que isto não se limita à minha família. Há relatos de casos similares que envolvem, principalmente, os pacientes homens. Por aqui ainda estão escorados os bastões utilizados na caminhada nórdica, conhecida por seus bons resultados como auxiliar no enfrentamento do Parkinson. Foram adquiridos há mais de dois anos e nunca usados. Talvez tenham sido recusados porque sair para fazer caminhadas nunca fora um hábito, ainda mais utilizando dois bastões que “chamariam a atenção”. E o desejo de não ser visto não tem necessariamente a ver com o Parkinson. É sim um traço de quem sempre se balizou por uma certa discrição. Assim, eles entraram na relação das inúmeras recusas.

Claro que nem tudo se perde. Cada profissional de apoio se torna, não raro, próximo e traz elementos mobilizadores. O problema é que o resultado possível não é exatamente o esperado pelo doente ou pela família. E ele vem acompanhado do cansaço, do desalento, da descrença e do medo.

Clovis e Flor, cúmplices

É preciso admitir que ninguém ( ou raros conseguem) pode se manter num clima up permanentemente. Ver uma pessoa ir definhando, paulatinamente, é algo atroz e angustiante. Tanto quanto perceber a autoconsciência da qual o doente é tomado em muitas ocasiões. Doloroso para eles e para quem está a cuidar deles.

Pode-se racionalizar de diversas maneiras, pensar que a impermanência é uma máxima, que os processos vitais cessam e de diferentes modos, etc, etc…mas no dia-a-dia a exigência é imediata. Aqui e agora, sem amanhã. Mesmo porque pandemia não permite projetar um amanhã.

Num dado momento, os remédios param de fazer efeito ou tem a sua capacidade reduzida. Quando se toma a medicação por muito tempo se enfrenta o chamado ‘fim da deterioração de dose’ ou flutuações motoras. Muitas vezes são confundidas com sintomas da doenças, mas são efeitos colaterais da medicação. Estão aí os movimentos não intencionais, involuntários e incontroláveis, como empurrões, torções, inquietação que afetam diferentes partes do corpo (discinesia). Tais movimentos descontrolados fazem, não raro, a pessoa se machucar ao esbarrar em portas e objetos diversos. Ou ainda, sentir muita dor em determinada parte do corpo pela repetição involuntária do movimento e a impossibilidade de fazê-lo cessar.

Outro sintoma é a compulsão. A atividade constante que pode tomar diferentes direções é uma das mais atribuladas para quem acompanha o paciente. Não há lógica aparente na ação. No entanto, parece ser possível identificar uma motivação de fundo naquele fazer tão permeado por atos ilógicos ou desconectados capaz de gerar uma angústia em quem vê.

O mais duro disso é ouvir/saber que a redução da dose ou mesmo a retirada do medicamento faz com que o processo da doença se acelere. Ao mesmo tempo, a compulsão, por si só, traz sequelas como um emagrecimento repentino, uma vez que a pessoa não consegue se alimentar como deveria. Ou seja, a hiperatividade faz com ela gaste mais energia do que consome. Olfato, paladar deixaram de existir ao nosso parkinsoniano que ainda se alimenta bem.

No caso do tratamento do Parkinson, pandemia trouxe a impossibilidade de continuar muitas das alternativas de abordagem, como aquelas que envolvem o contato direto com terceiros, agravaram o quadro. Depois de cinco meses de isolamento praticamente absoluto, tivemos que flexibilizar porque o atendimento fisioterapêutico se tornou imprescindível. Houve um forte recrudescimento das habilidades motoras, com prejuízos evidentes quanto ao equilíbrio e à perda da massa muscular.

Também flexibilizamos para a família íntima, porque se a pessoa não morre pelo Covid, o faz pelo isolamento. Se a ausência do contato com o outro já é difícil para quem está em plena saúde, para quem está em tratamento contínuo é uma questão terapêutica crucial.

E assim prosseguimos. Vivendo e improvisando!

 

ROSANA ZUCOLO

Jornalista, professora universitária (UFN), mestre em Educação(UFSM) e doutora em Comunicação(Unisinos). Nascida gaúcha, mora em Santa Maria, tem alma cigana, a Bahia como segunda terra e o mundo como casa. Se diz  ” parideira de jornalistas” e renasce com eles todos os anos. Descobriu ter uma certa predileção por pares: dois filhos, dois gatos, dois prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, dois empregos por muito tempo, dois projetos de cursos de comunicação, dois blogs,  duas casas, dois irmãos, dois cachorros, duas cachorras…

 

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