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Fonte: Polícia Federal/Divulgação

O TRABALHO ESCRAVO EM URUGUAIANA OU SOBRE COMO ÀS VEZES OS POBRES PENSAM COMO RICOS. por ROGER BAIGORRA MACHADO

Cheguei na rodoviária de Uruguaiana às seis da manhã. Eu estava vindo de Santa Maria, num quente sábado de 2004. Aproveitei um feriado na Universidade Federal de Santa Maria e me mandei para as bandas da Fronteira Oeste. Já fazia tempo que não via minha família. Como de costume, antes de uma viagem para Uruguaiana, eu me preparei e deixei que todas minhas camisetas ficassem sujas, guardadas juntas numa mala. É que a ideia era sempre a mesma: aproveitar a máquina de lavar roupas que havia na casa dos meus pais, assim eu poderia levar tudo limpinho quando do retorno para Santa Maria.

Ainda na Boca do Monte, antes do embarque, depois de umas cervejas no bar do Seu Zé, o Café Cristal, resolvi ir até minha casa para trocar de roupa. O problema é que, de limpo mesmo, pendurada na área de serviço, eu só achei uma camiseta do Movimento Sem Terra – MST. A camiseta era de um colega que havia dado aulas para crianças num assentamento. Pois bem, peguei a camiseta do MST, sacudi para retirar as marcas do amarrotamento e vesti. Mochila nas costas, mala de roupas sujas do lado e fui pegar um ônibus na rua do Acampamento.

Em Uruguaiana, desci do ônibus e fui procurar por um táxi. Achei um carro, o último da fila, o taxista com cara de sono sequer me abriu a porta ou o bagageiro. Entrei e sentei no banco de trás, pus a mala do lado e a mochila em cima dela. Tomamos a Presidente Vargas. Dentro do táxi, o motorista viu que eu usava uma camiseta vermelha. Ele arrumou o retrovisor, como alguém que arruma o óculos na ânsia de ver melhor. Ele olhou bem para a estampa da camiseta e depois me encarou demoradamente. De repente, e de forma muito seca, ele me pergunta:

– Então quer dizer que vocês tão vindo fazer baderna aqui em Uruguaiana?

– Como é que é? Respondi, sem entender direito. Eu nem lembrava que estava com a camiseta do MST.

– Vocês dos “Sem terra”, dizem que são tudo um bando de vagabundo e maconheiro, vivem por aí invadindo a terra dos outros.

Foi somente então que eu entendi toda a força simbólica que eu carregava numa simples camiseta vermelha. É que vivendo em Santa Maria, com um governo progressista em Brasília, outro no Estado e mais outro na Prefeitura da cidade, eu tinha esquecido de como era a minha aldeia. O comentário do taxista me fez lembrar onde eu estava, e obviamente, que eu resolvi dar conversa e entrei no jogo.

– Cara, é que funciona assim… Comecei a falar enquanto me ajeitava no banco de trás. – O negócio é o seguinte, tu não sabes, mas nós somos organizados. Eu vou na frente e faço um estudo das terras improdutivas, sou tipo um “batedor”. Somente depois de analisar bem, de ver os latifúndios desertos é que eu ligo para a rapaziada do assentamento e passo o relatório. Dependendo do relatório que eu envio, nós realizamos a ocupação e começamos a plantar no latifúndio improdutivo.

– Pouca vergonha! Esbravejou o taxista, batendo com a mão no volante. Olhando fixamente pelo retrovisor, ele me encara e diz: Se dá comigo eu meto é bala em vocês. Cambada de vagabundo!

Percebendo que o motorista estava muito incomodado com a camiseta do MST e com a minha fala, eu disse: – Calma, meu amigo! Não precisa dar tiro. Não te preocupas! Só me diz onde ficam as tuas terras que eu cuido de não ocuparmos elas, é claro, desde que elas estejam produtivas e gerando empregos. Eu te dou minha palavra. Onde ficam as tuas terras?

Aí o motorista abriu um sorriso e disse: Eu não tenho terras! Rapaz, se eu vou ter terra! Eu não tenho nem casa, vivo de aluguel…

Acabou que o táxi chegou na frente da casa dos meus pais e ficamos proseando por ainda mais uns dez minutos. Ele me contou da vida que levava, do sonho que tinha para os filhos, queria que estudassem e não precisassem trabalhar tanto quanto ele. Contou que trabalhava de dia num supermercado e nos finais de semana, ficava durante a noite com o táxi do cunhado para incrementar a renda. Eu contei a verdade, disse que eu não era do MST, juro que ele pareceu desapontado. Daí eu expliquei para ele o que era uma classe social, o que são capitalistas, o que são proletários, o que era ideologia, principalmente isso, o que era uma ideologia.

No fim, o taxista ainda se desculpou e agradeceu pela conversa, disse que nunca ninguém tinha falado sobre aquelas coisas com ele, que eu falei de uma maneira que ele conseguiu compreender, ao menos, até aquele momento. Na saída, ainda deu uma buzinada em tom de despedida. Naquele dia eu fui dormir pensando sobre o poder de uma ideologia em uma comunidade, eu gosto de pensar que o taxista também.

Ontem, aqui em Uruguaiana, 56 trabalhadores, todos homens, 10 deles com menos de 17 anos, foram resgatados pela Polícia Federal e pelo Ministério Público do Trabalho. Situação parecida com a que aconteceu na Serra gaúcha. Estavam todos acampados numa lavoura de arroz, no interior do município. Não tinham equipamentos de proteção individual, nem banheiro, nem alimentação adequada, sequer tinham as carteiras de trabalho assinadas. Recebiam cem reais por dia para aplicar, com pedaços de canos, os venenos na lavoura e colher ervas daninhas, o arroz vermelho, com facas de serra, destas que a gente usa para almoçar.

Recebi muitas mensagens de leitores e amigos, todos me questionando sobre o que estava acontecendo aqui? E a maioria deles queria saber o motivo de muitos uruguaianenses se manifestarem nas redes sociais como favoráveis ao trabalho análogo à escravidão. Mensagens que defendiam os patrões e usavam suas próprias experiências de explorados como argumento para que outros trabalhadores também fossem explorados da mesma maneira ou em condições ainda piores.

A resposta é a mesma que explica o comportamento do taxista: Trata-se de ideologia. Pois ideologia é isso: É quando você está tão cercado das ideias das classes dominantes, da visão de mundo de um grupo economicamente dominante, tão cercado pelos seus medos, envolto em seus valores de tal maneira que você defende fervorosamente um mundo do qual você não faz parte. Você defende o mundo deles, dos dominantes. Defende uma organização social que te exclui constantemente dela. Acreditando em coisas que não são verdadeiras, então você acredita em versões falseadas da realidade.

Essa história que contei, do taxista que estava tomado pela ideologia local e que defendia o latifúndio sem ter sequer uma casa para morar, aconteceu mesmo. E eu sempre conto ela para exemplificar as motivações que fazem com que pobres tenham comportamentos de ricos. Comportamento este que se manifesta nos comentários em redes sociais de pessoas achando normal o trabalho escravo.

A questão é que a dominação intelectual é muito pior que a dominação econômica. Estas pessoas, que acham normal esse tipo de trabalho, não é que elas pensem que são ricas, nada disso.

A questão é que a ideologia das classes dominantes faz com que as pessoas esqueçam de uma coisa muito simples: que elas são pobres. Pobres iguais à qualquer outro trabalhador assalariado.

 

 

 

SOBRE O AUTOR: Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.

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