O corpo de João Garcia Leal estava lá, pendurado e amarrado na grande figueira. E embora quente, há muito já não existia vida nele. Tinha os olhos abertos, quietos. Olhos imóveis, parados no tempo, na dor, no absolutamente nada. As moscas varejeiras, zumbindo faceiras, voavam rápido entre uma ferida e outra. Algumas caminhavam por dentro de um dos olhos abertos. Sem pressa, pisavam em cima da iris pálida, raspavam as patas dianteiras, como que se preparando para um banquete, depois, revezavam-se brilhosas da luz do sol no sangue escuro que escorria por detrás de uma das orelhas.
Os braços de João, amarrados num galho, estavam estendidos acima da cabeça. Os dois braços, pobres braços, restavam como coisas irreconhecíveis. Em cada um deles havia um rasgo horizontal feito próximo aos pulsos, cortes que serviram como ganchos para que os dedos dos assassinos pudessem puxar com força a pele para baixo. Nacos de peles arrancadas. Os braços estavam nus, em carnes e veias. Da mesma forma, fizeram com a cabeça, dando um corte que cruzava toda a extensão da testa, indo de uma orelha à outra, por onde foi puxado para trás todo o couro cabeludo.
As costas, as pernas, as coxas, os pés, quase toda a pele, quase tudo tinha sido retirado.
O corpo do irmão de Januário tinha sido “despelado” na sombra da figueira e permanecia ali, assustadoramente, de olhos abertos. Era uma figura dantesca no meio do mato do interior de Minas Gerais. No peito de João, num buraco profundo, via-se o caminho de uma lâmina de faca que trespassara o coração.
Januário Garcia Leal, ficou um bom tempo parado diante do corpo do irmão morto, observando cada detalhe da crueldade que ele sofreu. Em silêncio, com os olhos vertentes em lágrimas, sentiu medo e ódio. E jurou diante de deus e do diabo, jurou diante do sertão e do mato, que os assassinos de João teriam uma vingança ainda mais brutal e odiosa. Januário prometeu a própria vida e alma ao demônio para que lhe fosse permitido destruir, com requintes da mesma crueldade, cada um dos assassinos que fizeram aquilo.
Vinda de São Paulo, a família Garcia Leal chegou na Capitania de Minas Gerais nos idos de 1770. O patriarca, Pedro Garcia Leal, chegou às terras do Brasil depois de migrar do Arquipélago dos Açores, onde nasceu por volta de 1722. No Brasil, tomou o rumo da Capitania de São Paulo, onde casou-se com Josefa Cordeiro Borba, em novembro de 1749, permanecendo em Mogi Mirim até por volta de 1768.
No início dos 1770, o casal Pedro e Josefa resolveu tentar a sorte nas terras da Capitania de Minas Gerais, partindo junto com um grupo de bandeirantes que estava desbravando novos caminhos em busca de escravos fugitivos.
Em Minas, depararam-se com uma terra cheia de oportunidades, mas também cheia de perigos, violência e de pessoas em busca da última descoberta: O ouro.
Muitas das terras por onde os Garcia Leal chegaram já possuíam donos. Posseiros e mineiros armados andavam pelos matos e rios. Bandoleiros assaltavam nas estradas abertas à facão no meio dos matos. Indígenas e escravos fugitivos atacavam na beira dos córregos. Mineiros chegados de todos os lados lutavam entre si para tomar conta de tudo que pudesse ter ouro. Com isso, a família Garcia Leal precisou seguir caminhando, ingressar sem parar no Brasil profundo, num mundo sem lei de uma Capitania desconhecida. Explorando um território que se tornava ainda mais inóspito quilômetro após quilômetro, assim, eles foram desbravando matas e morros, até que chegaram próxima de uma sesmaria de um padre e se estabeleceram num local chamado de “Talhados”.
Cansados da viagem, deram por encerrada a aventura e no lugar construíram uma fazenda, onde deram rumo para as suas vidas.
Fincaram moradia numa uma região de passagem de pessoas, lugar por onde cruzavam cordões de escravos, tropeiros com suas tropas de mulas e bandeirantes em busca de escravos e índios. Um caminho antigo que ligava outras duas localidades importantes, Jacuí e São João Del Rei. Em pouco tempo a propriedade dos Garcia Leal cresceu e prosperou, tanto que rapidamente ganhou importância na região. Pedro se descascou em sua profissão, como um mercador, atividade importante e que trazia diversos produtos para as demais fazendas.
No passar dos anos, Pedro e Josefa fizeram o óbvio. Eles criaram os nove filhos, seis homens e duas mulheres, e trabalharam muito. Para os habitantes locais, os Garcia Leal eram tidos como uma família de pessoas boas, respeitosas da lei dos homens e das leis de deus. E assim, com o tempo, os Garcia Leal foram adquirindo mais terras, plantando e criando gado. Em 1780, Pedro Garcia Leal, aos 58 anos, acabou morrendo, mas a família seguiu unida e forte e alastrando suas propriedades pela região. Os filhos de Josefa, aos poucos, foram ocupando espaços importantes também na estrutura social colonial. Alguns seguiram o caminho do pai e se tornaram fazendeiros. Outros acabaram por se ocupar da vida militar. O filho mais velho de Pedro e Josefa, por exemplo, era sargento mor e também um homem muito respeitado em toda a região. Os Garcia Leal se tornaram uma família influente e uma das mais tradicionais do sul de Minas
Em 1800, Januário estava com 39 anos e tinha optado pelos dois caminhos, a vida da fazenda e a vida militar. Ele tinha esposa e dois filhos. Vivia numa boa casa e era dono de uma fazenda chamada Ventania e há pouco havia adquirido outra perto da vila de São Bento.
A vida de Januário era uma história de sucesso e felicidade.
Em 1802, logo no início do ano, por ser um respeitável servo real, ele recebeu a notícia de que sua indicação havia sido aceita e ele seria nomeado como Capitão de Ordenanças da Capitania de Minas Gerais, função geralmente distribuída entre os cidadãos mais ricos e respeitados da localidade.
A nomeação de capitães era uma forma da coroa portuguesa tentar se fazer presente com o mínimo possível de investimento, numa região tão rica e cheia de tantos conflitos, como a Capitania de Minas Gerais. Assim, era estratégico delegar autoridade para moradores locais, criando um tipo de “jurisdição dos capitães” que seriam responsáveis por manter a lei com suas milícias. E dependendo do capitão, ora a justiça era mediada pela lei escrita, ora ela era mediada pela lei das próprias mãos. A vida de Januário era um exemplo para muitas pessoas, um objetivo à ser atingido. Januário era uma liderança local afirmada, um homem que por todos era visto como digno e correto.
Assim, em 13 de junho de 1802, Januário tomou posse na função de Capitão de Ordenanças, cargo para o qual não se recebia nenhuma remuneração, além do status, dos privilégios e das honrarias que os capitães eram detentores. Januário era o chefe de uma espécie de guarda municipal, uma milícia, e seria o responsável por guarnecer a região contra ataques de indígenas, de bandoleiros e dos demais bandidos que multiplicavam-se pelo sul de Minas Gerais. Agora como um capitão, Januário seguiu residindo na sua nova fazenda, a fazenda Campo Formoso. Para a manutenção da propriedade, demarcação de terras, manejo dos animais, ele contava com a ajuda do seu irmão mais próximo e querido, João, que era dois anos mais velho e veio para a fazenda com a esposa, com quem era casado há nove anos.
Acontece que a fazenda Campo Formoso tinha terras lindeiras com a fazenda de Francisco Silva, um sujeito tido como de personalidade difícil, um homem rude, inculto e ignorante. Os Silva tinham a fama de serem verdadeiros bárbaros, eram homens robustos como pedras e violentos como animais, não respeitavam leis e viviam metidos constantemente em conflitos.
Não tardou para que os limites entre as duas fazendas virasse tema de discórdia.
Januário, como homem respeitador das leis, conseguiu judicialmente a demarcação das terras da Campo Formoso. Deferido o seu pedido, entre as fazendas apareceram agrimensores que mediram e indicaram os limites. Como na época não haviam cercas de arame, foi colocado uma sinalização por onde deveriam ser cavadas as valas que no chão seriam as divisórias entre as duas propriedades.
Por dias à finco, Januário mandou cavar os buracos para que a demarcação fosse feita, contratou valeiros que tentaram em vão abrir as valas, pois acabavam sempre sendo dissuadidos por Francisco e seus sete filhos. Às vezes, os valeiros eram ameaçados, noutras vezes, retornavam no dia seguinte para dar continuidade na abertura das valas e encontravam tudo soterrado novamente.
Francisco Silva fazia de tudo para aumentar suas terras, mesmo que isso significasse desrespeitar decisões judiciais.
Num dia, João Garcia Leal cavalgava pela fazenda quando encontrou um grupo de pessoas estranhas, elas estavam cavando uma vala divisória em suas terras, demarcando um piquete para o lado dos Silva numa das suas melhores invernadas, lugar conhecido como “O pasto das vacas”. Um piquete composto pela melhor pastagem da fazenda Campo Formoso. Prontamente João foi até o grupo de homens e mandou que se retirassem dali. Impedidos de fazer a vala de demarcação no local indicado, a equipe de valeiros retornou até Francisco Silva e contou o ocorrido.
O velho Francisco ficou possesso com a audácia e a afronta de João Garcia Leal. Sentado na cozinha da casa grande, disse aos seus sete filhos, Luís, Carlos, Antônio, Joaquim, Francisco, Paulino e Bento, para que encontrassem João. Era uma ordem cheia de ódio, uma raiva que respingou em cada um dos filhos. Francisco ordenou que quando o fizessem, que o amarrassem numa árvore, e que depois retirassem sua pele, estando ele ainda vivo, para que aprendesse e servisse de exemplo. Depois, pediu para que os filhos retornassem com a pele de João para comprovar o feitio da ordem dada, e pediu para que deixassem o corpo de João amarrado na árvore, para que os animais se alimentassem dele.
Uns dias depois da ordem ter sido dada, João e Januário estavam no “Pasto do Córrego”, cavando uma vala demarcatória num dos locais indicados pelos agrimensores e discutiram com alguns dos irmãos Silva que do nada apareceram no loca. Com isso, o trabalho não pôde ser concluído antes do anoitecer e os irmãos Garcia Leal acabaram retornando para casa. Durante a noite, uma chuva demorada e serena caiu por sobre a Campo Formoso.
No dia seguinte , depois de um bom café da manhã, João saiu cedo para terminar de abrir a vala. Tinha planos de terminar o serviço antes do almoço. Chegando no lugar, amarrou o cavalo e descarregou as ferramentas. Ele estava recém iniciando o trabalho quando, de repente, viu-se cercado por todos os sete filhos de Francisco Silva.
Não muito longe dali, Januário cavalgava em busca de umas reses que tinham se desgarrado durante a noite chuvosa, quando entrou no “Pasto do Córrego”, queria saber se o seu irmão não teria visto os animais passando por ali. Ao chegar no local onde João estaria cavando a vala, viu as ferramentas no chão, a pá sequer estava suja de terra, caída ao lado da vala. O cavalo do seu irmão seguia amarrado na sombra. Januário viu no pasto molhado as marcas das patas de cavalos e pegadas de pessoas. Perto do buraco, viu também o rastro de alguém sendo arrastado.
Januário estava desarmado, andava apenas com sua faca. Mas não poderia se dar ao luxo de ir até a sua casa e retornar, precisava encontrar logo o paradeiro de João. Resolveu seguir os rastros. O caminho serpenteava na direção de uma pequena mata que havia ao lado do Pasto do Córrego. Depois de alguns minutos andando em silêncio, ouviu vozes, em seguida, viu os filhos do velho Francisco Silva. Januário chegou no exato momento em que um deles arrancava a pele das pernas de João, que já parecia morto. Eles estavam rindo, conversavam despreocupadamente. Januário se abaixou por detrás de uns arbustos e esperou por quase uma hora até que partissem. Em seguida, foi até a figueira e viu o seu irmão.
João estava amarrado na árvore, tinha o corpo nu, o peito ainda sangrando, o corpo todo esfolado e a cabeça em carne viva, sem nenhum dos cabelos. A luz do sol, cruzando por entre os galhos e folhas da figueira, como numa dança, movia-se por sobre o corpo ensanguentado de João, iluminando as moscas e sangue coagulado.
Nos dias que se seguiram, Januário seguiu com a imagem do irmão tatuada dentro dos olhos. Enxergava-o na hora de dormir, ao encilhar o cavalo, na hora de ter suas orações. Ele relatou o ocorrido para as autoridades locais, mandou correspondências para pessoas importantes e, na condição de Capitão de Ordenanças, pediu ajuda para que se fizesse apenas o mínimo, justiça. Suplicou por auxílio, implorou aos conhecidos para que se prendessem os irmãos Silva e seu pai. Por medo, muitos não quiseram se meter na rusga territorial entre as duas famílias. Rapidamente a notícia da cruel e brutal morte de João Garcia Leal tomou conta da cidade e das fazendas vizinhas.
Francisco Silva, percebendo que a população havia ficado revoltada com a morte de João Garcia Leal, disse para que os filhos se cuidassem, evitassem ir na vila. Falou também que iria vender a fazenda, já tinha até um comprador, e que, assim que recebesse o dinheiro da venda, todos deveriam partir dali, pois permanecer em São Bento seria muito perigoso.
Januário, num misto de perplexidade e tristeza, rapidamente foi percebendo que ninguém iria lhe ajudar, seu pedido tinha sido tratado com desdém por todas as autoridades. A impressão que ele tinha era de que a morte do irmão era qualquer coisa de banal, sua vida era coisa menor, num mundo onde a lei existia só de vez em quando, ela não seria usada para prender os assassinos de João. De noite, deitado em sua cama, ouviu os cães latindo. Seriam os irmãos Silva? Levantou pé por pé. Pegou sua arma e foi até a janela. – E se fossem eles? Pensou preocupado. Quem viria lhe ajudar? Mas, por sorte, não eram eles, tratava-se apenas uma raposa ligeira. Januário foi dormir com uma certeza. Ele não esperaria mais.
Passados alguns dias, Januário soube da venda da fazenda de Francisco Silva. Estava tomando uma pinga no armazém do Antenor quando um vizinho comentou. Soube também que a família Silva, toda ela, estava indo embora. Sim, os assassinos de João estavam fugindo, descaradamente, e ninguém se importava com isso. Januário falou com seu irmão mais novo e com um tio, e contou-lhes o que estava acontecendo. No outro dia, ele foi até Mariana, sua esposa, disse-lhe que partiria numa viagem. Que se ele demorasse mais de três anos para retornar, que ela vendesse a fazenda, pagasse as dívidas e retornasse para a casa de seus pais.
Januário pegou uma bolsa de couro, nela ele colocou umas poucas roupas e um saco cheio de sal. Acomodou na cintura a bainha prateada da “Língua-de-Bandeira”, a sua faca de quase 40cm de lâmina, cujo nome era uma referência ao tamanduá bandeira, e pegou seu chapéu de couro. Partiu antes do sol nascer, junto do irmão, Salvador Garcia Leal, e do tio Mateus Luís Garcia. Com eles, numa pequena tropilha de mulas, foram mais alguns escravos da fazenda. O plano era simples, pegar os sete irmãos Silva, um por um, onde quer que eles estivessem.
AS DUAS PRIMEIRAS ORELHAS.
Os irmãos Garcia Leal e seu grupo ficaram sabendo que ainda haviam dois homens da família Silva na vila, Francisco e Paulino. Tinham ficado para trás, finalizando a venda dos poucos pertences que restaram na fazenda. Encontraram-nos bebendo num armazém, estavam num tipo de festa, com muita gente e música. Pelo tanto de pessoas ao redor, e não podendo fazer nada, Januário resolveu esperar até que estivessem sozinhos.
Não demorou muito para que os dois irmãos saíssem do armazém, quase como se estivessem fugindo da festa. Foram pelos fundos e se dirigiram por um caminho pelo meio do campo. Havia dois cavalos amarrados logo adiante. “Sim, pelo jeito eles estão indo embora da vila”, pensou Januário, enquanto se levantava da escuridão em que estava observando os irmãos.
Januário foi caminhando silenciosamente atrás dos irmãos. Seus passos eram cadenciados, pisando no chão como se fosse um predador atrás da presa. Cravou a lâmina da Língua-de-Bandeira com tanta raiva, que ela cruzou para o outro lado de Paulino sem nenhuma dificuldade, em seguida, torceu a faca e puxou para cima. Quando Francisco ouviu o grito do irmão, sequer deu tempo para tentar uma fuga, menos de dez passos de corrida e o estrondo seco do bacamarte de Januário anunciava mais um Silva caído no pasto. Os demais membros do bando não fizeram nada, apenas observaram Januário. Com a sua faca, terminou de matar os irmãos e em seguida, depois de uns minutos parado em silêncio, arrancou uma orelha de cada. Retirou de dentro de um bornal que carregava, um saco com sal e inseriu as orelhas dentro. Na vila o som do tiro e os gritos dos homens sendo mortos ecoou como um trovão.
A TERCEIRA E A QUARTA ORELHA
Nos meses que se seguiram às mortes de Paulino e Francisco, o bando de Januário vagou como um cão farejador pelo sertão mineiro, parando em vilas, assuntando com as pessoas nas estradas e grotas. Paravam em garimpos, estalagens, sempre em busca de informações que pudessem levá-los até os demais irmãos. Até que num dia, depois de uma parada numa venda, Januário ficou sabendo que um grupo de bandidos andava atuando próximo do arraial de São José da Barra. Depois de cruzar num garimpo de diamantes, ouviu de um velho mineiro que numa fazenda próxima haveria uma festa de casamento. Parece que os noivos eram irmãos e vinham lá do sul de Minas, chamavam-se Antônio e Joaquim Silva. Não poderia ser coincidência!
Chegou na fazenda ao entardecer, Januário deixou o bando acampado num mato próximo e se aproximou devagar, andando pelos escuros das sombras das árvores. Levava no pescoço um colar feito de corda, onde carregava as duas primeiras orelhas, salgadas e secas. Ele viu os dois irmãos Silva, felizes, casando-se numa festa com muitas pessoas, bastante bebida, comida e música. Os convidados e os noivos dançavam. Até que num dado momento, os dois irmãos e as suas respectivas noivas saíram em direção aos fundos da fazenda. Ambos foram até duas casas que tinham sido construídas lado a lado para lhes servirem de morada. Januário aguardou do lado de fora, até que teve certeza de que o sono tinha tomado conta dos casais, ele entrou numa das casas. Com uma das mãos tapou a boca de Joaquim enquanto com a outra cravou a Língua-de-Bandeira no seu peito, atravessando o coração do homem. O problema foi que, enquanto ele arrancava a orelha de Joaquim, a noiva acordou e começou a gritar em desespero.
Ao sair da casa, Januário encontrou o outro irmão, Antônio, abrindo a porta do rancho em que estava para ver o que eram os gritos. Caiu ali mesmo na porta. Minutos depois, os convidados da festa também ouviram os gritos das mulheres e quando chegaram nas casas, viram as noivas chorando trêmulas e dois homens mortos, sem suas orelhas. A fama do bando dos Garcia Leal e da sua caçada aos Silva já antecedia sua chegada aos vilarejos e ocupava as conversas nas saídas das missas, no balcão dos armazéns e até nas brincadeiras infantis. E Januário ostentava em cada parada que fazia, um colar mórbido, com quatro orelhas humanas.
A QUINTA ORELHA.
O bando de Januário andou por meses pelo Triângulo Mineiro sem encontrar mais nenhuma pista dos outros três irmãos Silva. Eles já não eram os mesmo homens que saíram da fazenda, o bando tinha novos membros e já começava a praticar crimes, roubando propriedades e assaltando pessoas, como forma de sustentar a sina vingativa de Januário.
As mesmas autoridades que dois anos atrás conferiram a patente de Capitão de Ordenanças para Januário, agora pediam a sua cabeça. Perseguidos, os Garcia Leal resolveram ir na direção da Serra da Canastra. Indo por uma estrada boiadeira, depararam-se com um acampamento onde os tropeiros pernoitavam. Ao longe, viram a poeira de uma grande boiada se aproximando. Não demorou para que um grupo de peões chegassem no local do acampamento. Encontraram Januário, já recostado sobre os pelegos e o fogo acesso.
Os peões pediram permissão para usar o fogo e prepararam o jantar. Januário estava deitado, debaixo de uma capa de couro grossa. O frio da serra fez um dos peões se levantar e pegar um tição para acender o cigarro de palha, quando a labareda da madeira se acendeu com o vento, sua luz iluminou o rosto do homem. Os olhos de Januário, no breu da capa, arregalaram-se diante da imagem que viram, o rosto sujo de terra era de Carlos Silva.
De madrugada, todos dormiam no acampamento, Januário já tinha avisado o resto do bando, que partira em silêncio, levando as mulas no cabresto para longe. A lâmina da Língua-de-Bandeira cortou o pescoço do homem, que sequer pode gritar, pois Januário havia usado a mão para cobrir sua boca. Quando os peões acordaram pela manhã, viram a poça de sangue do corpo de um homem degolado e sem uma das orelhas.
A SEXTA ORELHA.
Já tinha se passado alguns anos desde que Januário havia deixado sua família e sua vida para trás. Ele e seu bando estavam nas bandas de Vila Rica, próximos do garimpo de Tijuco. Um velho ermitão praticava benzeduras e curas, um serviço que fazia dezenas de pessoas esperarem numa enorme fila para receber o atendimento. O bando de Januário apeou ao lado do lugar onde o curandeiro estava trabalhando. Os irmãos Garcia Leal inventaram de entrar na fila para ver que tipo de benzedura o tal curandeiro fazia. Depois de alguns minutos, estava chegando a vez de Januário, foi quando seus olhos se fixaram no rosto do ermitão. Os dois se encararam por alguns segundos, frente a frente, lá estavam Januário e Luís Silva. Ambos se reconheceram e, de imediato, o curandeiro suspendeu os atendimentos e foi embora junto com um outro homem, seu empregado, para uma estalagem próxima.
Januário os seguiu e se hospedou no mesmo lugar em que estava Luís Silva, que viu quando o Garcia Leal entrou e se recolheu num dos quartos, por sinal, exatamente ao lado do seu. No jantar, Luís falou para o seu empregado que Januário era um homem perigoso e que, certamente, estava lá para matá-lo. Disse-lhe também que, por isso, tão logo a madrugada chegasse, entraria sorrateiramente no quarto de Januário e o mataria. Ordenou que seu empregado deveria, depois da morte de Januário, entrar lá e dar fim no corpo.
De madrugada, a porta do quarto de Januário se abriu lentamente. Luís esgueirou-se silenciosamente até o lado do catre, mas antes que pudesse cravar seu punhal, sentiu a lâmina da Língua-de-Bandeira perfurar sua barriga. Januário sequer tinha dormido. A lâmina da faca saiu da barriga e rapidamente foi cravada no peito de Luís Silva. Minutos depois, o homem, empregado de Luís, seguiu a ordem recebida e entrou no quarto, no escuro, juntou o corpo que estava no chão, colocou-o no ombro e foi caminhando para fora da estalagem. De repente, ao cruzar perto de um candeeiro, reconheceu um anel num dos dedos do morto, rapidamente colocou o corpo no chão, horrorizado, viu seu patrão, morto e sem uma das orelhas.
A SÉTIMA ORELHA.
Alguns anos depois da última morte de um dos Silva, Januário e o seu bando haviam se separado. Enquanto seu tio e irmão aterrorizavam as vilas mineiras, ele andava sozinho pelos córregos da região da cabeceira do Jequitinhonha e há muito que não cruzava por uma viva alma. Januário tinha a barba longa e espessa, bastante suja e esbranquiçada. O chapéu de couro cobria os cabelos compridos e fedorentos. Ele tentou caçar, mas nada, comia pequenas frutas e bebia das fontes abundantes da região. A fome já se abatia com força, quando Januário encontrou um casebre no pé de um morro.
De dentro do casebre, rodeado por cachorros igualmente magros, saiu um homem de barba branca e que, ao ver o Garcia Leal, prontamente disse-lhe para que descesse da mula e entrasse. Exausto e faminto, Januário entrou na casa, recebeu água, comida e um bocado de prosa. Depois de alimentado, veio a noite e os dois homens dormiram no silêncio do morro. O velho reparou que Januário tinha um colar no pescoço, com seis pedaços de algo que parecia ser carne seca, mas não disse nada.
De manhã, o velho homem preparou um chá. Disse que se Januário quisesse, que ficasse por ali o tempo necessário, pois naqueles grotões era bom ter companhia. O Garcia Leal agradeceu, mas declinou da oferta, dobrou seu pelego e foi preparar a mula para seguir viagem. Na despedida, Januário novamente agradeceu a hospitalidade do velho, mas antes de partir, e por insistência do solitário homem, resolveu sentar um pouco na sombra de uma árvore para uma última prosa. No meio da conversa, o velho começou a contar a sua história, num misto de alegria e tristeza. Narrou sua vida toda. Falou do pai, da mãe, da fazenda onde morava, contou dos seis irmãos que nunca mais viu e da vida que levavam lá no sul de Minas. No fim, segurando um pasto seco entre os dentes, disse: “E assim vive Bento Silva, sozinho nesse fundão de campo”. Januário ouviu tudo calado. Ao término da história do velho, levantou-se e foi até sua mula. Voltou com uma arma. Pediu para o velho olhar para ele: “Não está me reconhecendo, Bento Silva?” Diante da negativa de Bento, que disse nunca tê-lo visto antes, falou seu nome: “Pois eu já te vi antes e nunca mais me esqueci de ti. Eu te procurei por anos, Bento Silva. O meu nome é Januário Garcia Leal”.
O velho se tremeu todo, sentiu a urina escorrer pelas pernas e começou a chorar como uma criança. Ajoelhou-se e pediu clemência. Pediu perdão pela morte de João. Disse que era uma ordem do seu pai. Falou que viveu o resto da vida arrependido. Com o cano encostado na testa do homem, Januário disse que pela hospitalidade, o velho não morreria na lâmina da Língua-de-Bandeira, como os outros seis. Por isso, como forma de agradecer a pouca comida e o chá, mataria o velho no tiro. E disse também que daria uma chance ao velho Bento, ele teria a chance de fugir, teria cinquenta passos de vantagem. “Vamos, corre seu bosta! Vamos, corre Bento Silva!” Um. Dois, Três. Quatro. Cinco. Seis… Bento corria o mais rápido que podia, os cães, pensando ser uma brincadeira do velho, corriam ao seu redor, quase o derrubando algumas vezes. A respiração de Bento Silva era ofegante e o seu coração um tambor desenfreado. Quarenta e oito. Quarenta e nove. Januário não anunciou o passo de número cinquenta com a voz, mas com um estampido seco. O buraco do tiro estourou na coluna do último Silva que caiu esfregando a cara na terra. Bento, ainda vivo, sentiu sua orelha ser decepada pela lâmina seca da faca de Januário. Afinal, Januário deu sua palavra que não o mataria com a Língua-de-Bandeira, por isso, deixou-o lá, esvaindo em sangue em meio aos cães.
Januário Garcia Leal nunca mais voltou para sua fazenda. Mariana, fez o combinado e foi embora. Durante sua vingança, Januário deixou uma vida pacata e boa para trás, no caminho do ódio, há muito tempo que ele já tinha deixado de ser Januário, agora ele era conhecido apenas como O Sete Orelhas. Terminada a sina da vingança da morte de João, Januário tornou-se o líder de um temido grupo de bandoleiros que aterrorizou toda a Capitania de Minas Gerais. Eles mataram, roubaram, pilharam, queimaram casas, afrontaram autoridades.
E quando o bando passou a ser perseguido pela coroa portuguesa, à mando do próprio Dom João VI, Januário desapareceu como um fantasma.
Séculos depois, historiadores encontraram registros da sua morte. Ele morreu longe de São Bento, morreu em Lages, onde mais tarde seria a Capitania de Santa Catarina, ironicamente, acertado pela madeira de um portão que estourou e arrebentou sua cabeça, acertando-o com violência em sua orelha direita e quebrando sua mandíbula.
Essa história aconteceu há mais de duzentos anos. A figueira onde João Garcia Leal supostamente foi morto, escalpelado e esfolado vivo, ainda existe e resiste. É considerada um patrimônio histórico. Fica no município mineiro de São Bento Abade, na fazenda do “Tira Couro”. Na cidade também há estátuas que contam a saga de vingança do herói-bandido. A história de Januário, foi coisa que sobreviveu ao tempo, agarrou-se no imaginário mineiro, sendo publicada em livros do século XIX. Foi tema de peças teatrais e de pesquisas acadêmicas, documentários e até filme da Netflix.
Bibliografia utilizada:
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Tese de doutorado de Rodrigo Leonardo de Sousa Oliveira, “Bandos Armados nas Minas Gerais – redutos de Dominação Bandoleira e Poder Local nos sertões mineiros setecentistas”, defendida na UFMG em 2014.
Tese de doutorado de Márcia Sueli Amantino, “O mundo das feras: os moradores do sertão oeste de Minas Gerais: século XVIII”. Defendida na UFRJ em 2001.
Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana, também é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.
Textos escritos por Roger são sempre muito bem-vindos, qualquer hora do dia, toda santa noite. Este é mais um para guardar, ler agora, voltar a ler depois.