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Mais do que um gesto de saúde, ele inventou uma nova fórmula de polidez e respeito: "Lavo minhas mãos para proteger você." Thierry Crouzet Foto: Pixabay

O gesto que salva por Rosana Zucolo

“Cada exemplar deste livro que você comprar dará a um médico, enfermeiro, profissional de saúde ou socorrista em países carentes um frasco de álcool em gel para as mãos e salvará vidas.” Thierry Crouzet

Um leito de hospital é um táxi estacionado com o taxímetro rodando.  Grouxo Marx.

O café da clínica estava desguarnecido de opções naquela manhã de terça. Eu tentava encontrar algo para beber enquanto, já resignada, aguardava a consulta. O médico estava atrasado… mais do que o habitual.

No café, ao invés de quitutes, havia um brechó e um sebo a ocupar o espaço – talvez a alternativa encontrada para a visível decadência do lugar.

Foi nesse ambiente um tanto inusitado que um livro, perdido entre vários títulos de autoajuda, capturou minha atenção: “O gesto que salva” do escritor e blogueiro francês Thierry Crouzet.  Mais do que pelo título, o livro despertou a curiosidade por ser prefaciado pela então diretora geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Dra Margaret Chan, e pelo embaixador da OMS para a segurança dos pacientes Sir Liam Donaldson.

Minha surpresa não acabaria aí. Ao folhear as páginas, constatei que o autor cedera os seus direitos autorais ao Fundo Clean Hands Save Lives (Mãos Limpas Salvam Vidas), iniciativa do médico suíço Didier Pittet, epidemiologista, pesquisador das doenças nosocomiais e diretor do Programa de Controle de Infecções no Hospital Universitário de Genebra, na Suíça. A cada exemplar vendido, um profissional da área da saúde que atua em países pobres, recebe um frasco de álcool em gel para higienizar as mãos.

Numa declaração de intenções, Crouzet afirma ter escrito o livro “porque Didier Pittet forneceu a fórmula para o gel desinfetante, na mais pura tradição do movimento de código aberto na computação. Escrevi este livro porque me deixei encantar por Didier Pittet. Ele tem algo de Gandhi e de Madre Teresa. Sua realização não é tanto médica, mas social. Mais do que um gesto de saúde, ele inventou uma nova fórmula de polidez e respeito: “Lavo minhas mãos para proteger você.”

Para quem (como eu) desconhecia a iniciativa, o livro publicado há pouco mais de uma década (2014) e em seis idiomas, é  uma grata surpresa e a reafirmação da constatação incômoda de consumirmos informações de forma fragmentada e não prioritária.  Fato é que pouco sabemos acerca da enorme e grotesca realidade das doenças nosocomiais no mundo e que, tal qual grandes democratas surdos e cegos, elas ceifam indiscriminadamente jovens bonitos, ricos e famosos, assim como velhos decrépitos, pobres e desconhecidos. São indicadores da má qualidade da assistência à saúde.

Crouzet descreve a jornada de Didier Pittet, sua equipe e da OMS na promoção internacional da higiene das mãos e da luta pela produção e popularização do uso do álcool gel enquanto produto revolucionário, livre de patentes, o que considera um investimento na “economia da paz”.

Desde 2005, em colaboração com a Organização Mundial da Saúde, Pittet lidera uma campanha global da qual participam 170 dos 194 Estados-membros da ONU.  E criou o Fundo acolhido pela Fundação Philanthropia, destinado a apoiar projetos  voltados a prevenir infecções e melhorar a qualidade e a segurança dos cuidados em todo o mundo, e também contribuir para o desenvolvimento de informações, a transmissão de conhecimento, a pesquisa e a disseminação de estratégias de intervenção nas áreas em questão.

A história do trabalho de Didier Pittet e sua equipe na jornada de higiene das mãos é a comprovação de que um “ponto de inflexão” ocorre quando um comportamento ou norma cultural atinge um limite porque o conhecimento, informação, expectativa e/ou pressão dos colegas suficientes são acumulados.  O livro permite entender esse processo a partir do relato das pesquisas da equipe de Pittet, em Genebra, e do seu trabalho de campo que abrange hospitais do mundo inteiro.

Escrito numa perspectiva histórica, o livro faz cortes temporais, relacionando acontecimentos marcantes da medicina. Entre eles, o ocorrido em Viena,  no ano de 1847, quando uma a cada três mulheres parturientes morria de febre puerperal na maternidade do Hospital Geral da cidade. Tratava-se de febre decorrente de uma infecção bacteriana que atingindo o útero, se espalhava pelo peritônio e outros órgão abdominais. Na ocasião, num curto espaço de tempo, 11 de 12 parturientes atendidas na obstetrícia daquele hospital, morreram. A causa foi a contaminação pelas mãos dos médicos ao tratarem as pacientes. As taxas de infecção se repetem 150 anos depois, embora os índices de mortalidade tenham recuado nesse espaço de tempo.

Infecções nosocomiais são doenças adquiridas durante o tratamento. Elas dizimam 16 milhões de pacientes em todo o mundo a cada ano. Desinfetar as mãos com uma solução hidroalcoólica reduz pela metade o número de infecções e, consequentemente, o número de vítimas.

Segundo os estudos da equipe de Pittet, são quatro as principais causas de infecção – afetam o sangue, a urina, os pulmões e os locais cirúrgicos- responsáveis ​​por metade das infecções observadas em hospitais*. “Em 2002, elas afetaram 1,7 milhão de pacientes americanos e mataram 5,8% deles”.

A experiência e pesquisas de Pittet indicam que essas taxas de infecção e mortalidade  dobram fora dos países ocidentais. Ele é conhecido por percorrer hospitais das regiões mais inóspitas do mundo e não abrir mão da prática clínica. Os dados apontados no livro, assustam:

“Quando esses números são comparados à população global em 2013, as estatísticas são alarmantes: todos os dias, mais de 400.000 pessoas são infectadas em hospitais e 46.000 morrem dessas infecções. No Ocidente, 9% das mortes são atribuíveis a infecções nosocomiais, 34% em outras partes do mundo, ou 16 milhões de pessoas no total por ano . Elas são, de longe, a principal causa de mortalidade humana, à frente de doenças cardíacas e derrames, que matam 13,2 milhões de pessoas a cada ano. Nos países ricos, com 69 mortes por 100.000 habitantes, elas ficam atrás apenas do câncer de pulmão e empatam com as doenças vasculares.”

Estudos de observação iniciais nos hospitais de Genebra pela equipe de Pittet mostraram uma baixa adesão às práticas básicas de higiene das mãos e uma falta de conscientização por parte dos profissionais de saúde de que a principal causa da transmissão cruzada de microrganismos é pelas mãos. Entre os elementos determinantes para a baixa adesão dessa prática é a restrição de tempo, associada à resistência comportamental dos profissionais da saúde. O desafio era facilitar a higiene das mãos para a equipe e encontrar uma solução inovadora para isso. Sob a liderança de Pittet, a equipe foi a campo apoiado em conceitos das ciências sociais, buscando entender os determinantes que impulsionam o comportamento dos profissionais de saúde.  A solução encontrada foi o desenvolvimento de uma estratégia multimodal que se baseou na educação, reconhecimento de oportunidades para higiene das mãos e feedback sobre o desempenho. A mudança de sistema se apoiou um componente-chave: a introdução de fricção de mãos à base de álcool no ponto de atendimento para substituir  a lavagem de mãos na pia, reduzindo o tempo de higienização.

Ao mesmo tempo, a equipe aperfeiçoava a fórmula de desinfetante para as mãos baseada em álcool, glicerol e peróxido de hidrogênio, adotada globalmente e recomendada pela OMS. O uso de peróxido de hidrogênio (água oxigenada) para higiene das mãos, juntamente com álcool, pode ser uma medida adicional de desinfecção, especialmente em contextos em que a redução máxima de patógenos é necessária. As técnicas desenvolvidas por Pittet foram adotadas globalmente, adaptando-se a diferentes contextos médicos e culturais.

O livro relata como ele e sua equipe enfrentaram e superaram as resistências e os equívocos relacionados ao uso de desinfetantes à base de álcool, demonstrando sua eficácia e segurança. Também foi necessário o enfrentamento com o mercado dos laboratórios, cujos interesses lucrativos, impossibilitavam o acesso ao álcool gel por profissionais que atuam em regiões de risco. Foram necessárias adaptações para regiões com limitações de recursos,  e isto se tornou um legado duradouro de Pittet na saúde pública. Sem patente e sem exclusividade, a liberação da fórmula permitiu que as instituições ficassem menos dependentes dos laboratórios.

Para muitos, seu trabalho é uma convocação à ação coletiva e institucional sobre a importância de adotar e adaptar continuamente práticas de higiene das mãos,  que têm provado salvar vidas. Para outros, será lembrado mais pela fortuna que deixou de ganhar do que os milhões de vidas salvas a cada ano.

*Zingg W, Huttner B, Sax H, Pittet D, “Avaliando a carga de infecções associadas à assistência à saúde por meio de estudos de prevalência: qual é o melhor método?”, Epidemiologia Hospitalar de Controle de Infecções, 2014.

Rosana Zucolo, jornalista, professora universitária aposentada, mestre em Educação(UFSM) e doutora em Comunicação(Unisinos). Nascida gaúcha, mora em Santa Maria, tem alma cigana, a Bahia como segunda terra e o mundo como casa.  Descobriu ter uma certa predileção por pares: dois filhos, dois prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, dois empregos por muito tempo, dois projetos de cursos de comunicação, dois blogs,  duas casas, dois irmãos, dois cachorros, duas cachorras, dois gatos…

 

 

 

 

 

 

 

 

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