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NOTAS DE CONTENÇÃO de Helena Tabatchnik

NOTAS DE CONTENÇÃO 3

(22 de março de 2020)

Cuidar da minha mãe, do meu filho e da casa tem me tomado o tempo todo. Isso tem um lado bom: me mantém no presente enquanto evito pensar no futuro. E minha mãe fica feliz quando cuido dela. Ainda preciso ter mais paciência, mas estou me saindo bem. Nessa história toda, quem cuida de mim? Essa é uma pergunta que já nem me faço. Eu cuido. Vou molhar as plantas.

NOTAS DE CONTENÇÃO 10

(19 de março de 2020)

Acho bonito quem disponibiliza listas de livros e filmes para aproveitar a quarentena em imersões culturais – acho mesmo. Tenho vontade de pegar algumas delas e mergulhar de cabo a rabo pra voltar um mês depois. Mas fico me perguntando como eles fazem com as crianças. Verifico que a maioria não tem e que os que têm devem usufruir de trabalhos domésticos e de cuidados muito mal divididos. Também tem gente que não dorme: eu preciso. Aqui tem Proust, queria ler, mas as plantas precisam ser regadas, meu filho não pode ficar largado, minha mãe tem que fazer fisioterapia, é preciso dar um jeito de manter a alimentação nutritiva e de comprar/cozinhar todos os dias e tudo o mais. Cada dia findo, não há energia para Proust.

Quim resolveu que, antes de deitarmos, ele deve arrumar a cama sozinho (dormimos juntos em um sofá-cama). É o carinho que ele dedica a quem ele sabe muito bem que teve um dia cansativo. As crianças fazem tudo valer a pena.

NOTAS DE CONTENÇÃO 21

(8 de abril de 2020)

Quando estive grávida do Quim, passei 6 meses enjoando tanto que mal conseguia sair da cama. Foram 6 meses enjoando, sem intervalo. Pensava muito em como as pessoas faziam para aguentar anos de cárcere e me identificava: é um dia de cada vez, um tempo que deve se superpor em vez de avançar. Entramos propositalmente nessa outra concepção de tempo: um dia, outro dia, mais um dia e assim a situação vai se fazendo suportável – já que não há o que fazer senão suportar. Ontem, por algum motivo que já não me lembro, olhei o calendário. Eram 27 dias. Pareceu bastante porque não senti a passagem do tempo. Foi um dia, outro dia, outro dia…

NOTAS DE CONTENÇÃO 29

(16 de abril)

Tem sido difícil por aqui. Quim, 6 anos, anda à flor da pele; chora todos os dias e tem acessos de raiva. Não que ele não entenda a situação, entende muito bem – e acha injusto ele e todas as outras crianças do mundo terem que passar por “essa MERDA!” tão no comecinho da vida. Eu e todas as outras mães, imagino, estamos vendo as crias em sofrimento sem poder fazer nada.

Hoje jantamos todos juntos e consegui, com ajuda dele, disparar um ataque de riso em todo mundo – durou um bom tempo nós três falando absurdos e gargalhando. Descarregamos. Hoje pode ser que o dia termine bem. Amanhã recomeço.

NOTAS DE CONTENÇÃO 38

(1º de maio)

Hoje acordei enormemente triste e chorei enquanto fazia o café da manhã. Continuei chorando enquanto eu e Quim comíamos, com a impressão de que vivemos agora todas as fases do luto coletivamente.

Houve negação: primeiro tentamos acreditar que não seria por muito tempo e que depois a vida voltaria aos trilhos. Depois, que isso serviria para iniciarmos a construção de um novo mundo, que seria melhor e mais humano. Mas o genocídio governamental, os números crescendo descontroladamente, países fechando as fronteiras para se prevenir do nosso desvario, covas ou valas comuns, parentes, amigos ou conhecidos morrendo… A negação se tornou rapidamente impossível.

E iniciamos a fase da barganha: muitos crushs  virtuais aparecendo, planos de homeschooling e atividades criativas para as crianças, planos de entrar em um programa de exercícios ou dietas de emagrecimento, planos de repor leituras atrasadas por uma vida de trabalho e correria – nada disso deu certo. E a negociação acabou.

Estamos infinitamente tristes e impotentes diante da morte e do extermínio calculado. Isso sem contar as pessoas que votaram no inominável e que provavelmente vão se agarrar à negação até a morte, morte essa que já abandonou o sentido figurado faz tempo.

Hoje estamos chorando, eu estou chorando.

Tenho que fazer compras. Vou de óculos e máscara e provavelmente chorarei durante as compras também.

Fico pensando na fase da aceitação: como faremos para aceitar o inaceitável? Eis a nossa miséria particular.

NOTAS DE CONTENÇÃO (ironicamente) 68

(31 de maio)

Hoje acordei chorando, mais uma vez. Como fazer o luto? Me parece impossível aceitar as vinte e oito mil oitocentas e quarenta e nove mortes confirmadas até hoje, junto com um governo que só espera, babando e gozando, por mais mortes.

Aliado a isso, os trinta por cento de negacionistas que saem às ruas, babando e gozando, por mais mortes. E que talvez, não sei se acredito nisso, talvez se sintam culpados um dia por transmitir o vírus e matar pessoas próximas. Eles estão em transe, não sei se há dado de realidade forte o suficiente para acabar com esse transe, babando e gozando, por mais mortes.

É impossível aceitar o genocídio que estamos assistindo, trancados em casa, impotentes.

Mas nunca enterramos nossos mortos, de genocídios imensos que fundaram a história desse país. Nunca enterramos nossos mortos e não sei como enterraremos os de hoje.

E há uma outra negação: a negação que atinge os que sabem ser necessário ficar em casa, mas talvez não suportem. Talvez essas pessoas entrem também em outro tipo de negação, a negação do insuportável das vinte e oito mil oitocentas e quarenta e nove mortes confirmadas até hoje. Vejo essas pessoas andando em grupos, sem máscara, com bebês. Se visitando, se encontrando, fazendo festas em casa. Os setenta por cento também não estamos indo muito bem e voltamos à negação.

Temo que esse outro tipo de negação,  a negação do insuportável das vinte e oito mil oitocentas e quarenta e nove mortes confirmadas até hoje, do inaceitável das vinte e oito mil oitocentas e quarenta e nove mortes confirmadas até hoje, contamine dessa forma os setenta por cento de brasileiros que não estavam em negação. Porque é mesmo impossível a aceitação das vinte e oito mil oitocentas e quarenta e nove mortes confirmadas até hoje – e porque não sabermos o que fazer.

NOTAS DE CONTENÇÃO 70

(5 de junho)

PANQUECA

– Pode por a tapioca, filho.

– Peraí que tem um ovo meio mimado.

– Meio o quê?

– Mimado. Ele não entra em contato com a massa.

 

NOTAS DE (qual?) CONTENÇÃO 78

IMPOTÊNCIA

(13 de junho)

Agora precisamos muito de arte, dizem. Concordo. Eu preciso.

E fico aqui oferecendo amor, humor e arte.

Perdemos nosso país no dia em que um monstro pegou o microfone para elogiar o torturador da presidenta deposta. E não saiu algemado. Que força a dessa mulher! Eu teria morrido.

Mas fico aqui oferecendo amor, humor e arte.

O monstro não foi preso. Ao contrário, foi eleito para governar o país que já não existia mais. O presidente do Nada.

E eu aqui, oferecendo amor, humor e arte.

Melhor focar no presente. Quarenta e um mil, novecentas e uma mortes só nos registros oficiais. Sabemos que há muitas mais.

Viramos seres sozinhos contando coraçõezinhos. Seres virtuais, porque impotentes.

E fico aqui, oferecendo amor, humor e arte.

Melhor olhar para as montanhas, meu privilégio. Mas diante de quarenta e um mil, novecentas e uma mortes só nos registros oficiais (sabemos que há muitas mais), as montanhas me lembram que horizonte já não há. “Não verás país nenhum” fica tocando na rádio do meu inconsciente. “Não verás país nenhum”.

E eu aqui, impotente, oferecendo amor, humor e arte.

O plano do genocida vai de vento em popa. Queria trinta mil mortes, pelo menos. E agora chegamos a quarenta e um mil, novecentas e uma mortes só nos registros oficiais. Sabemos que há muitas mais.

O impronunciável e os seguidores de sua seita babam de gozo. E, não contentes, derrubam as cruzes na areia que tentam desesperadamente lembrar que há quarenta e um mil, novecentas e uma mortes só nos registros oficiais (sabemos que há muitas mais).

Gozam com a dor de quem perdeu amores, amigos, família. Não contentes, invadem hospitais com licença para matar.

E eu fico aqui, oferecendo amor, humor e arte impotente.

Os que ainda escutam a razão, e que não foram obrigados a voltar às ruas, estamos nos descuidando também. Por não suportar mais a angústia de tentar respirar por trás da máscara,  ou dos rituais constante de esterilização da vida, do amor e da arte também. São quarenta e um mil, novecentas e uma mortes só nos registros oficiais. Sabemos que há muitas mais. E entramos em momentos de negação para conseguir respirar. Diante da nossa impotência, diante do país que já não há. E das quarenta e um mil, novecentas e uma mortes só nos registros oficiais. Sabemos que há muitas mais.

E eu aqui, fazendo o que mesmo?

Sozinhos e precisando de amor, nos apaixonamos virtualmente. Fazemos sexo sozinhos, virtualmente. Conversamos com nossos queridos, virtualmente. E virtualmente tememos por eles. E virtualmente ficamos sozinhos, ganhando coraçõezinhos impotentes.

A vida se resume a nada dentro de país nenhum. Mas estamos, ou não estamos, aqui, diante das  quarenta e um mil, novecentas e uma mortes só nos registros oficiais (sabemos que há muitas mais). Ficamos fazendo amor, humor e arte. Ou nada. “Nada, ninguém. Amor, puro fantasma”.

NOTAS DE CONTENÇÃO 82

(19 de junho)

Logo logo chega o inverno e estará aberta a temporada de gripes. Uma loucura, porque os sintomas da covid-19 e o de uma gripe mais forte podem ser muito semelhantes. E não temos testes gratuitos.

Lembro vagamente de que era verão quando isso tudo começou. Ontem foi um grande dia para o brasil. Ou não. Nunca sei se a coisa vai dar em si mesma ou em seu contrário. E atingimos quarenta e sete mil, oitocentas e sessenta e nove mortes, sabemos que há muitas mais.

Todos os dias confiro o cheiro sutil das minhas axilas pra ver se ainda tenho olfato.

NOTAS DE CONTENÇÃO 89

(23 de junho)

Gosto muito de preparar o café da manhã com música, cantando e dançando. Quim sempre se irrita. Ai, Quim, deixa eu ser feliz!

Não sei exatamente o que o incomoda. Tenho voz pequena, mas sou afinada e não canto nada mal. Dá até pra pegar o microfone vez em quando na roda de samba. E foi difícil aprender a cantar alto. Ele não gosta que eu cante.

Quim, me deixa, eu canto pra ficar feliz!

Lembro do meu pai atravessando a sala numa dança animadíssima enquanto eu e meu irmão escutávamos alguma música. Ai, pai, você tá ridículo! Hoje constitui uma das minhas  melhores lembranças. Continuo cantando e dançando. Vou sair daqui, mãe!

Quando danço, danço com o corpo todo. Não tem essa de bracinhos pra cima. A música me atravessa e o corpo, treinado mais no baile que no balé, sabe bem o que fazer. Deixo o quadril levar o resto. Quim se retira.

Talvez ele não goste da mulher potente e sexuada que aparece na cozinha mexendo todas as articulações ao mesmo tempo. A dança que juntava na pista amigas pretas que me deram a honra de ser chamada também de Nêga, não pertence, ou pertencia, à Mãe.

Mas Quim está crescido e já deve compreender que a mãe dele é também muitas coisas que são só dela. Sem me privar do sacolejo, exclamo para o outro cômodo,

VOCÊ PREFERIA TER UMA MÃE QUE NÃO DANÇASSE?

 

Helena Tabatchnik é escritora, mestre em Teoria Literária, autora de Tudo que eu pensei mas não falei na noite passada, anteriormente lançado sob pseudônimo (Anna P.), e Do amor e outras brutalidades, que atualmente aguarda alguma melhora nessa pandemia para ir ao prelo. Diante disso, passou a escrever as Notas de contenção em sua página no Facebook:
https://www.facebook.com/helena.tabatchnik
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