Juvenal Dornelles, ou como era normalmente chamado, Seu Juca, tinha 75 anos quando foi mandado embora da estância em que trabalhou por quase a vida inteira. No dia em que foi dispensado, desde que acordou, ele sabia que algo ruim aconteceria. É que as nuvens cinzas que se acumulavam para as bandas da Argentina e o vento irritante que vinha do Uruguai, da mesma forma que deixavam loucas as cobras no campo, também incomodavam o velho Juca. Em dias assim, era certeiro sempre algo de ruim acontecia. Ou era bicho que se quebrava, ou gente que se machucava e, no pior dos dias, a morte que arremedava os viventes desavisados.
Juca foi chamado no escritório da Casa Grande logo após o almoço. A conversa foi curta, foi seca.
O novo capataz, um gurizote de vinte e poucos anos chamado Lacerda, agradeceu-lhe os préstimos, falou que não era nada pessoal. Disse-lhe que não era preciso ter pressa para ir embora, que o Juca podia ir se ajeitando, visto que iria lhe fazer o pagamento até o final de semana. E que se o velho quisesse, poderia ficar até o fim do mês. Ao perceber o que estava acontecendo, o velho Juca experimentou um tipo de vazio que jamais pensara sentir. No que restava do dia, ele caminhou pela mangueira de pedra, observou o galpão, andou no prado. Ruminou o campo sentindo o vento com cheiro de bosta de ovelha penetrar nas suas ventas.
Seu Juca era um esboço dele mesmo, um fantasma pairando pela estância.
O dia não andava, só o Juca. Ele caminhava pelo tempo. As horas pareciam feitas de anos, lentamente se movendo na direção de um entardecer frio de inverno. Na copa do angico, os pássaros em seus ninhos observavam o homem velho andando meio sem rumo. O mundo parecia ter se apequenado e diminuído também o homem velho. No chão, o velho espinilho de tantos invernos, cuja sombra era paradeiro de mates e almoços, agora era só um resto de toco no chão. Por alguns minutos, Seu Juca ficou ali, olhando para o que restara da árvore. “Qual o motivo de te cortarem, velho espinilho?”, suspirou o homem. “Qual o motivo de nos cortarem, assim?”, como se esperasse por uma resposta das velhas mangueiras de pedra.
A estância parecia ainda mais letárgica do que habitualmente ficava nas tardes de inverno. O sol se afundava na tumba do horizonte e ia amarelando tudo que havia ao seu alcance. No céu as nuvens em tons laranja formavam imagens em diferentes profundidades de branco. Seu Juca, sempre atento, ouviu uns quero-queros alarmando ao longe, misturados com o cantar de um joão-de-barro. Ele saiu da mangueira e encilhou o baio manso, seu parceiro derradeiro de muitos anos e foram até o arroio que ficava ao lado do capão de mato, perto da sede da estância.
Quando chegou no arroio, o velho peão ficou bem parado em cima do basto, queria sentir o campo, seus sons, seus silêncios. Largou o peso nos estribos e ajeitou o corpo, sentia dores nas costas. As dores sempre estiveram com ele, mas pareciam ter aumentado no último ano, especialmente, desde o dia que um terneiro o derrubou no chão durante uma marcação. “Hoje, essas dores não são nada”, pensou o Juca, enquanto tirava do bolso o fumo. Acendeu um palheiro e recorreu um dos lados do capão de mato, do mesmo jeito como fazia antigamente. Dito e feito. De longe ele viu no céu dois gaviões sobrevoando e abaixo deles uma mancha branca na sombra do umbu. Foi se aproximando sem pressa, pitando o palheiro, observando tudo. A mancha branca foi tomando forma, ganhou movimentos lentos, sim, era um cordeiro. O animal tinha uma pata machucada, não era coisa nova, pois havia mancha de azulão na lã. Recolheu o bicho e colocou no lombo do baio. Ergueu a perna com certa dificuldade, mas o cavalo sabia que ele era assim, mais lento, por isso esperou imóvel. O velho Juca subiu e levou o cordeiro de volta para as casas. Na estância, desencilhou o baio, guardou os arreios numa peça que tinha do lado da mangueira pequena, toda feita em madeira. Depois, dentro do galpão, Juca atiçou o carvão e a brasa, pegou o pelego e jogou sobre o velho mocho de três patas, sentou-se quieto na beira do fogo.
O gelado final de tarde parecia fazer todo o corpo do velho Juca doer. Ele esquentou a perna no calor do braseiro, sentia uma dor bem no lado da coxa. Mais cedo, quando subiu no baio, ele sentiu uma fisgada na lateral da perna, como se uma pequena veia tivesse saltado, uma variz ou coisa parecida. O calor do fogo abrandava o mal-estar. Caminhando com certa dificuldade, Juca foi ao lado de fora do galpão, limpou a cuia e fez um mate novo.
Estava só, o galpão era todo feito de silêncio e o homem velho, um solitário na própria vida, silenciava junto.
Os demais peões ainda não tinham retornado da lida, pois com a chegada do frio, todos já se dedicavam em separar uns touros e uns terneiros para o beneficiamento, que era a ablação dos bagos. Os peões chegaram barulhentos, ainda assim, Juca não deu conversa para ninguém. Não falou para nenhum de seus colegas que tinha sido mandado embora da estância. Era dia vinte de junho e o prazo para ele ir embora se terminava no dia trinta. A água quente enchia lentamente a cuia do mate, Seu Juca, sentado na beira do fogo, seguia mateando em silêncio.
Todos na estância já haviam percebido que a idade tinha chegado para o velho Juca e que o tempo estava influenciando na sua força de trabalho. Alguns faziam piadas, outros, preferiam não dizer nada, certamente, por dever respeito ao mais velho peão da estância. Há muito que ele não participava da maior parte das lidas do campo. Nos últimos anos, frequentava apenas os rodeios, que eram uma das poucas coisas que lhe faziam sair das casas. Juca sempre ia nos rodeios e, nesses dias de marcação e castração, parecia um guri faceiro, rindo, contando causos, ensinando os mais jovens. Um rodeio para o velho Juca era como se fosse as suas férias. No restante do ano, ele trabalhava mais como um peão caseiro. Acordava cedo, mantinha os bichos alimentados, pelegos no sol, água quente nas cambonas e a vassoura de guanxuma sempre recém cortada para manter o terreiro limpo.
Aos poucos, a cambona e o galpão foram se esvaziando. Juca tomou uma chaleira de mate e mais da metade de uma cambona. Só falou uma vez, quando pediu para um dos peões que, antes de ir embora, desse uma olhada no cordeiro que ele encontrou no campo. Alguns peões, os que moravam em pequenas chácaras ao redor da estância, tomaram o rumo de casa primeiro, ansiosos para chegar e ver suas mulheres e os filhos. Outros, que ocuparam uns ranchos velhos que foram erguidos depois da casa do patrão, tomaram uns goles de canha primeiro e só depois se foram. Juca era o único que não tinha para onde ir. Morava ali. Dormia no galpão. Quando tudo se acalmou e o galpão ficou vazio, levantou-se do banco e fechou as grandes portas de madeira, um vento gelado varria a estância e uma escuridão sem lua era o pala da noite.
Passou horas remoendo a sua demissão. Botou mais lenha no fogo, aqueceu o galpão e preparou a janta. Panela pequena feita de ferro, um pouco de banha, cortou um alho e meia cebola. Pegou um pedaço de carne de ovelha, uma tira de costela com o granito do peito. Cozinhou numa trempe que pôs sobre o fogo. Preparou um arroz com costela de ovelha. Comeu bem pouco, na verdade, mal tocou no prato. Nos fundos, anexo ao galpão, perto do quarto em que dormia, atrás da porta, abaixou-se e pegou um garrafão de vinho seco. Deitou-se com dificuldade num catre velho, naquela noite decidira não dormir na cama. Dormiria ali, na beira do fogo. Ficou bebendo vinho e pesando na balança dos dias tudo o que tinha feito e deixado de fazer. Juca queria entender se realmente merecia aquilo tudo que estava acontecendo com ele. “Se eu me vou embora, vou precisar de algum dinheiro”, pensava. No entanto, não lembrava se tinha pego algum dinheiro com o capataz ou com o patrão naquele ano, na verdade, não lembrava quando tinha pego salário pela última vez.
Além dos braços, a memória também fraquejava às vezes.
Não é de hoje que o velho Juca percebera que a sua alma e o seu corpo há muito deixaram de partilhar das mesmas vontades. A alma dizia uma coisa, o corpo fazia outra. Nesses dias em que a força faltava no braço, sustentava a vida na coragem. Foi assim quando tomou um coice de uma vaca que lhe quebrou a canela, ou quando foi atropelado por um terneiro, ou quando um cavalo disparou o arrastando com o pé trancado no estribo. Foi assim quando a demissão lhe acertou, como um soco na cara. Juca optou por se sustentar na coragem, mesmo tomado pelo medo.
Lacerda, o capataz, era um homem jovem que estudou na cidade e sabia escrever e ler. Ele estava no seu primeiro emprego como responsável e chegou decidido em “revitalizar” toda a peonada da Estância Cerro de Pedra. Dona Flor, a cozinheira, viúva do Zeca Quirino, foi a primeira que foi demitida. A mulher velha tinha 78 anos e era forte como uma taipa de pedra, foi embora chorando açudes de tristeza. Depois de uns dias, aconteceu o mesmo com o Mário Tarrã, o melhor tosador da região. Não deu uma semana e foi o Seu Felipe, o homem mais bem humorado e trabalhador que Juca já conhecera. Só de tempo de serviço na estância, Tarrã e Felipe, cada um, tinham mais de trinta anos. E tanto com o velho Juca, assim como, com os outros três, deu-se do mesmo jeito. Não tinham carteira assinada, nem contrato ou coisa parecida, tinham um acordo de palavra com um patrão que já tinha morrido, além disso, não tinham nada. Dona Flor, sequer tinha identidade. Mário Tarrã, não sabia escrever o próprio nome. Do capataz Lacerda, ganharam o mesmo. Uns maços de dinheiros e um prazo para ir embora. Por sorte, Dona Flor tinha uma filha que morava no Aferidor. O Mário Tarrã foi morar com um filho na Vila do Açude. O pobre do Seu Felipe, partiu meio sem destino, foi-se fazendo piada, dizendo que iria para o chinaredo, gastar todo o dinheiro com as gurias e depois iria arrumar outro emprego, mas ninguém nunca mais o viu. Felipe, assim como o Juca, sempre se referiu à estância como “casa”.
Certa feita, no bolicho do Seu Bento, disse o Floriano, um vizinho da estância, que acharam o velho Felipe morto, uns meses depois, caído na beira do brete, lá para as bandas do Itaqui.
Juca, que nunca teve filhos, também nunca teve outro lugar para chamar de casa. Na verdade, ele até teve uma casa, foi no tempo em que ele tinha uma esposa, a finada Maricota. Dela, pelas coisas da vida, raramente se lembrava com nitidez. Às vezes, lembrava de sua voz, de vez em quando lembrava do seu rosto, afinal, ela morreu quando ele tinha apenas 21 anos. Disse-lhe o doutor, na porta do quarto, que o que matou a sua mulher foi “a tal de cólera”. A Maricota, quando morreu, ninguém chegou perto do corpo, nem mesmo o marido. Ela foi enterrada com mais cinco outros, que dizem, também padeceram da mesma doença. Na sua lápide, colocaram uma caveira com dois ossos cruzados e, na fala do padre, ameaças para que ninguém mexesse no túmulo. “Naqueles anos, os barcos que vinham de Buenos Aires traziam muita gente com essa chaga, não era de se duvidar que essa gente doente tivesse vindo mesmo de lá”, remoendo a memória o Juca na beira do fogo. Um trago de vinho. Mais lenha na labareda, mais um trago de vinho, mais pensamentos na balança do tempo: “Certamente, que essa gente saiu do rio Uruguai e andou pelas bandas da minha casa, comprando no meu bolicho, gotejando a peste por sobre as pessoas que eram sãs”, lastimava-se o velho peão.
“Ah, a Maricota…”, suspirava o Juca. “Parecia que ficaríamos para sempre um ao lado do outro”, o olhar fixo no fogo de chão. Era como se as chamas que consumiam o grande toco de espinilho, sem pressa, também queimassem o que lhe restava de memória. O tronco do espinilho era muito grande, um “pai de fogo” de respeito. A árvore tinha idade maior que a estância, cresceu antes das casas se erguerem e da mangueira de pedra ser feita. Para se ter uma idéia da idade da árvore, só o tempo em que Juca estava ali trabalhando era coisa de uns quarenta e cinco anos e, quando ele chegou na estância, a árvore era do mesmo tamanho que tinha quando foi cortada. “Morreu de velha”, sentenciou Flodoardo Nunes, que era filho da Dona Gertrudes e do finado Epaminondas Nunes, o antigo dono da estância. A Dona Gertrudes, desde que enviuvou, foi morar na cidade, lá na capital. A Gertrudes era mais velha que o Juca por pouca coisa, não chegava nuns dois anos. Flodoardo, o filho, quando assumiu no lugar da mãe, prontamente contratou Lacerta para ser o novo capataz. Ainda guri, Flodoardo se foi embora com a mãe e se formou em agronomia na capital. Quando retornou, veio com uma ideia fixa: queria usar uma parte do campo para plantar arroz. A Barragem Sanchuri estava cada vez com mais água, por isso, Flodoardo aparecia na estância duas vezes por semana e se trancava no escritório com o Lacerda. Venderam quase metade do rebanho de ovelhas no primeiro mês. Flodoardo queria vender uma parte dos campos, ele tinha planos de também construir uma barragem perto das casas, bem onde cruza o arroio.
Quando Seu Juca ouviu a sentença de morte do espinilho, olhou para Flodoardo e para o Lacerda com estranhamento. Como assim? Vão cortar o espinilho? Em seguida, olhou para a copa da árvore, para as suas ponteiras, ele tinha a impressão que o espinilho tinha uns brotos saindo nos galhos mais altos. “Essa árvore velha é parte da estância, patrão!”, suplicou o velho peão. No entanto, isso não foi o suficiente para impedir que o machado de Lacerda cortasse o espinilho em dezenas de pedaços.
Mais um copo de vinho, mais uma lenha no fogo.
E naquele dia em que o homem velho se aquecia no galpão, o velho espinilho o abraçava em calor. O toco, recostado contra uma trampe, ficou de pai de fogo, queimando, cercado por pedaços menores de galhos de angico e de corticeira. No calor do fogo do espinilho, a vida voltava para trás, levando Juca para longe, numa viagem por trilhos sinuosos, onde as estações eram suas memórias confusas, misturando os dias e os anos. O velho Juca ia costeando o tempo, tal qual fez com o capão de mato, observando tudo, ouvindo, sentindo os dias para lembrar dos próprios sonhos de quando jovem.
Juca cresceu como tantos que cresceram nos pagos de Uruguaiana, um guri faceiro correndo na costa do Uruguai, pescando piava e lambari, tomando banho de sanga, pegando carona nas balsas que passavam perto do rancho dos seus pais. Era filho de um guasqueiro argentino, Pedro Paysano, que fugindo de Corrientes, acabou se estabelecendo perto do encontro do Touro Passo com o Uruguai. A mãe era benzedeira, uma brasileira conhecida como Bugra Maria. Juca foi guri do campo e, por conta disso, começou a trabalhar muito cedo. Aos cinco anos, ele já ajudava o pai no manejo do couro. Seu primeiro emprego se deu, justamente, por saber fazer bainhas para facas e foi trabalhar no Imbaá. Foi lá que ele conheceu a Maricota, a filha mais velha do Seu Collares, um xirú bruto que trabalhava com alambrado. Nunca se casaram, nem na igreja ou no papel, o casamento foi feito na palavra e na honradez.
Juca e Maricota pareciam se completar. Ela, uma mulher inteligente e bem humorada, ele, um trabalhador braçal sisudo e para quem a palavra valia mais do que dinheiro. Os dois foram morar na costa do rio Uruguai, num pedaço pequeno de campo que o pai da Maricota comprou um pouco antes dos dois se casarem. O plano era fazer um bolicho e abastecer os balseiros com canha brasileira, charque, pão, comida e outras coisas necessárias para quem, por profissão, desce o rio com toras e pranchões de madeira. O jovem Juca queria largar a guascaria de lado, embora fosse bom na lida do couro, era a profissão do pai. Quando Juca disse que iria se casar com a Maricota, Pedro Paysano foi contrário, visto que o Seu Collares era um desafeto de longa data. Collares e Pedro eram quase como inimigos, desde uma cancha reta que aconteceu perto do Touro Passo e onde os dois se desentenderam numa partida de truco. Desde então, nunca mais se deram como antes.
Dias antes do casamento, Juca foi contar ao pai sobre a festa. Pai e filho acabaram discutindo, nunca mais se falaram. Quando a cólera chegou no Imbaá, por volta de 1900, o bolicho já estava funcionando à contento. Muitos balseiros compravam e traziam coisas para o bolicho. Mas os boatos da praga fizeram com que as balsas reduzissem o trânsito. Quando Maricota adoeceu, Juca viu sua esposa emagrecer rápido, vômitos, diarréia, dores nas pernas e câimbras. Foi tudo muito rápido, em menos de dois dias Juca viu sua amada definhar e falecer. No cemitério, Juca pediu perdão para Dona Adelaide, sua sogra, afinal, foi ele que levou Maricota de sua casa e prometeu cuidar dela, coisa que não o fez diante da peste. Dona Adelaide, não aceitou o pedido de perdão. Juca, envergonhado, foi-se embora. Tropeçou pelos bretes por vários dias, até que conseguiu emprego na Estância Cerro de Pedra, propriedade de Epaminondas Nunes, um criador de gado de ovelhas de lã.
Encheu o copo com mais vinho, lembrou-se dos amigos que, naquele mesmo galpão, revezaram-se em noites de cansaço, de tragos e de jogos de truco. “O finado Batista, ele sempre sentava ali naquele canto. E que homem ligão! O Batista não sabia mentir as cartas, mas para cantava uma flor não pedia licença!”. Ele podia ver o amigo ali no galpão, tomando uma canha e rindo com as cartas na mão.
As memórias de Juca estalavam no fogo e se rejuvenesciam no calor do espinilho. “E o finado Leopoldo?”, questionava-se o velho. “Ele dormia num catre bem do lado da janela”, lembrava-se com um sorriso nos lábios. “Gente mui buena! Ele dizia que não jogava, mas todos sabiam que ele era um baita calavera e evitava o jogo com os amigos, pois se jogasse, as amizades na estância se terminariam”, pensava o velho Juca. Enquanto encarava o toco de espinilho quase se desmanchando em brasas, sentiu um aperto no peito: “A maior parte dos que eu conheci já morreram. O mundo é um lugar pequeno e eu sou menor do que eu penso. A gente é uma cousa ainda menor do que pensa”, lastimou-se.
Juca se levantou e botou mais um tronco de lenha no fogo, outro pedaço do velho espinilho. O galpão esfriara um pouco, foi quando viu que uma das janelas estava aberta. Andou e foi até ela. Viu que as luzes de todas as casas da estância já tinham se apagado, não havia nem um fio de luz por debaixo das portas de madeira. O homem velho foi na cozinha e deu uma olhada no relógio que ficava na parede. Já era tarde, quase 22:30. Sentou-se no mocho novamente, tinha a sensação que o último copo de vinho tinha melhorado as dores que sentia nas costas. De repente, a melancolia que sentia e a tristeza que reinava em meio às lembranças da sua vida com a Maricota e diante da ausência dos amigos, tudo foi se misturando e se transformando em um tipo estranho de alegria. “Que bom que eu tive a Maricota! Mesmo que por pouco tempo. Foi uma baita mulher, uma buena companheira, sempre valente.” Nisso, os olhos do Seu Juca pareceram se iluminar, como se a alma e o corpo estivessem fazendo as pazes. A memória parecia ter retornado, detalhes de coisas que ele não pensava há muito tempo surgiam com clareza.
Pegou o fumo e acendeu um cigarro, deu uma pitada na beira do fogo, agora um braseiro grande tinha se formado. A luz do candeeiro a querosene iluminava as duas pontas do galpão, o suficiente para que Juca enxergasse duas paletas e dois quartos de ovelha que estavam pendurados dentro da tela do charque. “Quer saber, esse vinho me deu fome e eu não vou comer aquele arroz. Essa brasa tá muito bonita para desperdiçar”, falou em voz alta. O velho Juca não estava mais solitário, ele já não pensava sozinho, ele falava. Conversava com ele mesmo, dialogava com um outro Juca. Aquele Juca sonhador, dos vinte e poucos anos. Aquele Juca bagual, que não se entregava diante de nada, que não tinha medo de absolutamente nada. A paleta estava aberta e salgada, tinha sido desossada ao meio dia. Uma batida para tirar o excesso do sal e a carne caiu serena, chiando por sobre o ferro quente da trempe.
Mais um copo de vinho, a paleta estava dourada e suculenta. Juca cortou um naco com a sua faca, a carne estava realmente muito boa. Outro gole de vinho. “Que barbaridade, nesse galpão eu vivi a maior parte da minha vida. E daqui do meu pequeno mundo eu não vi quase nada da vida.” Outro gole de vinho. “Eu nunca vi o oceano, o tal do mar. Que barbaridade, eu nunca vi o tal do oceano…”. Juca churraqueou e deixou um resto de vinho no garrafão, deitou no catre e dormiu sereno.
Na manhã seguinte, Seu Juca acordou cedo e fez um mate. Era uma terça-feira, 22 de junho de 1954. Ele esquentou o que tinha sobrado da paleta, tomou uma caneca de café e foi ter uma conversa com o capataz. Lacerda estava encilhando um cavalo em frente a sua casa, um rancho de madeira que tinha sido construído há poucos meses. Dentro da casa, a esposa de Lacerda passava café, o cheiro agradável do dia nascendo e do café eram reconfortantes, tanto para o velho Juca, quanto para o jovem Lacerda.
Juca disse que gostaria de receber o que lhe cabia ainda pela manhã, pois queria sair da estância depois do almoço. Pretendia dormir na Barragem Sanchuri e ainda tinha muita estrada para cruzar. Ele tinha planos de chegar ao seu destino na metade do outro mês. “Chegar onde?”, perguntou Lacerda. “No oceano”, eis que lhe respondeu Juca.
Lacerda, não questionou os planos do velho peão e disse que o patrão viria em breve, ainda pela manhã e que se ele tivesse o dinheiro, já fariam o acerto. Às 11:30, Seu Juca saiu do escritório da Casa Grande. Trazia no ombro uma mala de garupa cheia de dinheiro. Foi para o galpão, juntou seus pertences, guardou as poucas roupas. Vestiu a melhor pilcha, revólver e faca na cintura. Na porta do galpão, os demais peões observavam o homem velho se ajeitando para ir embora. Cavalo encilhado, Juca montado, seus olhos estavam diferentes daqueles olhos opacos que todos se habituaram a ver. Os olhos do velho Juca brilhavam.
Vindo da direção da mangueira, ouviu-se uma voz falando alto: “Seu Juca, não vá gastar tudo com o chinaredo!”, gritou Lacerda. Todos riram. Num movimento com as rédeas, o velho Juca girou o cavalo com rapidez e ficou de frente para o capataz: “Não te preocupes Lacerda, não vou gastar tudo com as gurias, talvez, só a metade. O resto, vou gastar comigo!”.
E como um monarca das coxilhas, num galope, partiu o velho Juca, imponente, ele foi se distanciando do galpão. Quando cruzou pelo que restou do velho espinilho, um toco no chão, ele pensou: “Eles jamais vão me cortar, meu amigo.” E o velho Juca nunca mais foi visto pelos peões da Estância do Cerro de Pedra, mas a sua partida ficou para sempre na memória daqueles que estavam lá.