Há dias em que a gente acorda com uma sensação de desassossego a sacudir a alma, como se todos os males do mundo rondassem a porta de casa. Quando acontece, o tempo se reveste de algo não palpável ou objetivo. Algo que não é de um, mas sim de todos. Um sopro denso e invisível a permear todos os espaços sem deixar brechas para a quietude, e cuja origem nunca foi ou fica clara. É quando as coisas são, como dita a fenomenologia em Salvador, na Bahia.
Nesses dias nada parece funcionar direito! Na realidade, não funciona. O carro pifa, o ônibus não chega, o voo é cancelado, a reunião não acontece ou acaba em brigas, a consulta é desmarcada ou reagendada para um horário inviável, a pessoa te deixa esperando e não aparece no compromisso marcado, a secretária adoece, a torneira estraga, o vidro quebra, a luz queima, a água falta, a paciência esgota, a pessoa implica até com a plantinha pendurada…e por aí segue!
E a coisa tão poderosa é, a ponto da sabedoria nagô, marca da cultura soteropolitana, ensinar que em tais dias a solução é abrir mão de qualquer expectativa de obter resultados ou fazer acontecer. Tem é que deixar passar. Algo difícil de entender para a gauchada acostumada à lógica (quase) cartesiana.
Hoje foi um destes dias por aqui ao sul do Brasil. As horas vieram inquietas e modorrentas, talvez pela temperatura a oscilar, de modo ininterrupto, entre o frescor provocado pela chuva – mais forte no entorno do que no centro -, e o abafamento a retornar logo a seguir. Santa Maria, cercada de morros, tem uma pressão atmosférica cruel sobre os corpos!
Também eu não havia atentado à data no calendário mensal – coisa comum para quem deixou de se guiar pelo tempo do mundo do trabalho que dita a rotina das horas, dias, semanas, meses, ano até as tão desejadas férias.
Foi ao assistir o noticiário que percebi ser 27 de janeiro, uma data particularmente difícil à cidade e aos seus habitantes. São 12 anos de uma tragédia que ceifou 242 vidas e feriu gravemente 663 pessoas. Marcou a história de vida de milhares de indivíduos direta ou indiretamente, com desdobramentos inimagináveis que, não raro, acabaram restritos aos profissionais da área da saúde e outras pessoas envolvidas no suporte até os dias atuais.
E as lembranças voltam, inevitáveis, somadas à terrível sensação de uma negligência com muitas faces. Imprudência, omissão, descaso, insensatez, inobservância, inaplicação, irresponsabilidade…para cada sinônimo de negligência é possível relatar um episódio relacionado às causas da tragédia na boate Kiss.
A distração é inevitável à nossa humanidade. É recurso para aliviar a pressão que sobrecarrega os sujeitos física e emocionalmente. Nos distraímos na vida e da vida. Nos distraímos de nós mesmos. No entanto, quando se trata do coletivo, daquilo que afeta muitas pessoas ao mesmo tempo, a distração enquanto ato de negligenciar, seja por ação ou omissão, é inaceitável e intolerável. Do sujeito individualizado ao poder público.
Por isso as questões a envolver a tragédia da Kiss ainda hoje, deixam a sensação/certeza de uma história que não se encerra. É “todo o dia a mesma noite”, como diz o livro da Daniela Arbex transformado em minissérie (outra questão delicada e polêmica. Ainda hoje não consigo assistir).
Há um vácuo não preenchido pela condenação dos quatro julgados, pois ainda há muito a dizer e a ser visto nesta história trágica cujo contexto não tem narrativa legal que dê conta.
Muitas outras pontas e omissões esperam por uma responsabilização que não sabemos se um dia chegará, mas que precisa ser feita enquanto reparação.
Hoje também se comemora os 80 anos da libertação do campo de concentração de Auschwitz. E há uma correlação macabra entre estes dois acontecimentos e locais. Em 2013, a boate Kiss se transformou e provocou mortes do mesmo modo às que ocorreram na Polônia. Mesmo dia, mesmo céu, mesmo modo de morrer. Dadas as proporções e contextos específicos, ambos poderiam ter sido evitados se a atenção e o cuidado tivessem sido outros.
O dia está acabando. Não voltei ao noticiário. Tentei resolver coisas ao modo sulista, o que me custou o dobro de esforços sem os resultados esperados, como prevê o modo baiano. As emoções irromperam e foram pouco gentis, como a ordem do dia. Escrevi para tentar expulsá-las e encontrar uma quietude que ainda não veio.
Rosana Zucolo, jornalista, professora universitária aposentada, mestre em Educação(UFSM) e doutora em Comunicação(Unisinos). Nascida gaúcha, mora em Santa Maria, tem alma cigana, a Bahia como segunda terra e o mundo como casa. Descobriu ter uma certa predileção por pares: dois filhos, dois prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, dois empregos por muito tempo, dois projetos de cursos de comunicação, dois blogs, duas casas, dois irmãos, dois cachorros, duas cachorras, dois gatos…