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MAR ABERTO | Serra Gaúcha – pobre não dá nome à rua

por Boca Migotto

Estou lendo a trilogia de Laurentino Gomes sobre o Brasil. Seus livros, “1808”, “1822” e “1889” abordam a história do país desde a vinda da família real para os trópicos até a chamada República Velha. Trata-se de três livros necessários a todo brasileiro, de fácil leitura e fundamentais para compreendermos muito do que vigora, neste país, até os dias de hoje. Uma das primeiras coisas que nos damos conta, quando retomamos a História do Brasil através de obras como estas, que propõem uma espécie de releitura dos fatos históricos, é que estes nunca foram registrados pelos pobres, pelos escravos e/ou pelas minorias.

Portanto, a História – com “h” maiúsculo… ainda existe isso? – que nos chega é (praticamente) sempre contada através do olhar, da percepção e dos registros das elites. Afirmar isso parece lugar comum, mas a verdade é que, passados mais de 500 anos do “achamento” do Brasil, a grande maioria das pessoas nunca refletiu acerca deste fato. Dessa forma, desde o Império, podemos afirmar que quem nos contou como eram aqueles tempos de construção do que viria a ser o Brasil de hoje foram, basicamente, os integrantes e frequentadores da nobreza. E os relatos são os mais surreais uma vez que, desde sempre, foi o cambalacho que embalou os negócios nesse vasto território abençoado por (d)Deus. Não são poucos os nomes de logradouros, por ai, que homenageiam bandidos de toda estirpe, desde traficantes de escravos até corruptos notórios.

Já imaginaram como seria a História do Brasil se esta tivesse sido contada através do olhar e da percepção dos índios que, das praias, avistaram aqueles homens brancos, peludos, vestidos e mal cheirosos, que em suas “naves” chegaram oferecendo espelhos e panelas? Ou dos negros, que viviam em suas terras, no vasto continente da África, até o dia quando um europeu lá chegou para captura-los e leva-los para um lugar estranho, transportando-os desumanamente dentro de porões de navios pestilentos? E, uma vez nas Américas, sob a tortura dos homens brancos de (d)Deus, foram obrigados a cavar a riqueza que, por séculos, sustentou e desenvolveu a “civilizada” Europa?

Não, a História que nos chega não foi contada por índios, negros e pobres mas, nasce da pena dos mesmos europeus – e seus descendentes diretos – que, a partir do seu ponto de vista eurocêntrico decidiram o que valia e o que não valia ser transmitido às futuras gerações. Apenas bem recentemente, e ainda muito singelamente, estamos revendo essa que, por séculos, foi considerada a História oficial. Por isso, indico a leitura desses três livros para que esse tipo de percepção provoque algumas reflexões sobre o quanto somos, ainda hoje, resultado dessa mesma sociedade que fundamentou as raízes profundas de um Brasil injusto e desigual a partir e através da escravidão e da constante exploração de seres humanos tidos como inferiores. Um Brasil que nunca deixou de ser, apenas, uma espécie de “balcão de negócios” onde homens, brancos e ricos, disfarçados de “pessoas de bem”, e sempre em nome de (d)Deus, conspiram de todas as formas possíveis para atingir um único objetivo: enriquecer ainda mais. E, por fim, um país que, ainda hoje, paga pau para europeus, americanos e tudo que chega de fora batendo panela e anunciando as “boas novas”.

E é nesse sentido que penso minha própria história. Longe de mim querer me comparar aos indígenas e aos negros em suas seculares lutas por justiça e contra o preconceito e o racismo estrutural. No entanto, a mim é impossível perceber o mundo sem que, para isso, eu parta de mim mesmo. Dessa forma, inicio a minha reflexão, neste terceiro – e último – texto sobre a Serra Gaúcha, explicando rapidamente de onde eu vim e quem eu sou a partir da minha experiência de vida para, após, relatar um acontecimento específico, do qual fiz parte e o qual ilustra os temas abordados por mim nos dois primeiros textos. Aliás, aproveito o momento e indico os textos anteriores: “Serra Gaúcha, que país é esse?” e “Serra Gaúcha – cinema, turismo e história”, para melhor aproveitar este que, agora, submeto a vossa leitura.

Meu pai era pedreiro. Embora o sonho dele fosse ser engenheiro, infelizmente, no tempo e espaço onde ele nasceu e cresceu, até o conceito de faculdade era algo inatingível. Por isso, talvez, nem ele soubesse, conscientemente, que esse era o seu sonho. Até porque sonhar, a ele e aos seus conterrâneos, não era algo real. Nascido em 1921, em uma típica família de imigrantes italianos pobres e iletrados, que mal falavam português, meu pai mudou várias vezes de lar até, finalmente, se instalar onde hoje é o centro de Carlos Barbosa. Com muito custo, e sua própria teimosia frente à teimosia do meu avô, ele mal conseguiu terminar o “ginásio”. Portanto, para deixar de ser agricultor, lhe coube ser pedreiro. Já eu, antes de me descobrir um “contador de histórias” – com “h” minúsculo, uma vez que não sou um historiador – fui seduzido por ele para seguir na sua profissão. Por isso, inúmeras vezes, depois dos meus treze anos de idade, o acompanhei em várias pequenas obras e/ou reformas. Com ele aprendi a fazer argamassa, levantar um muro de tijolos, revestir uma parede com azulejo. Não desgostava do trabalho, mas também não tinha a paixão necessária para optar pela construção civil. Olindo Migotto – esse era o nome do meu pai – era um homem de poucas palavras. Principalmente em casa. No entanto, quando passávamos em frente a alguma edificação por ele construída, não perdia a oportunidade de me contar como havia, com inteligência e persistência, solucionado os problemas práticos inerentes a qualquer projeto. Até porque, naquela época, muitos engenheiros vinham da capital ou do centro do país apenas para entregar o projeto e receber o pagamento. Acompanhar o andamento das obras não era algo normal. Restava ao mestre de obras fazê-lo acontecer. E esse era o meu pai que, como tantos filhos de imigrantes, só sabia falar de trabalho. Respirar trabalho. Viver para o trabalho. Foi assim que ele se tornou um dos mais prestigiados mestres de obras da região. E foi assim que ele ajudou a construir Carlos Barbosa.

Embora a cidade não reconheça – ele morreu sem nunca ser lembrado pela sua contribuição –, praticamente todos os edifícios que serviram de alicerce para a comunidade barbosense contaram com a mão, o cérebro e, sobretudo, a paixão do meu pai. O Hospital São Roque, o Colégio Santa Rosa, os primeiros prédios do centro da cidade, as primeiras fábricas da Tramontina, a própria Igreja Matriz. Havia sempre várias histórias para cada uma destas construções e, quando criança, era comum passear com ele e entrar nesses lugares para ouvir seus relatos. Eu não entendia bem o que ele tentava me dizer, afinal, as histórias eram preenchidas por inúmeros dados técnicos, como se estivesse falando para um colega de trabalho. Mesmo assim, eu curtia tudo aquilo, afinal, cada passeio era um mundo novo que se abria aos meus olhos de criança. Hoje, sempre quando ouço a canção “Cidadão”, escrita por Lúcio Barbosa e gravada, pela primeira vez, por Zé Geraldo, me vejo um pouco naquela história que ficou famosa, também, na voz de Zé Ramalho. Mas, então veio a adolescência e, naturalmente, como ocorre nessa fase da vida, a gente se distanciou. Ele, por já ter uma idade avançada – quando nasci, meu pai já tinha 55 anos – se aposentou ainda quando eu estava iniciando a transição da infância para a puberdade. Nessa época, naturalmente, o conflito de gerações falou alto mas, mesmo “afastados”, eu o acompanhava em alguns trabalhos menores que ele aceitava mais por passatempo – e para me introduzir no seu universo de trabalho – do que por necessidade.

Boa parte da família Migotto, no entanto, seguiu o caminho do Seu Olindo e do meu avô, Pedro, que também trabalhou como pedreiro. Primeiro alguns dos seus irmãos e primos, depois, na medida que os anos passavam, muitos dos filhos e netos destes irmãos e primos também ingressaram no “métier”, tornando-se pedreiros, engenheiros e/ou arquitetos. Alguns até investiram nas suas próprias construtoras. No entanto, justamente aquele que mais deveria dar sequência à profissão – no julgamento do meu pai, claro – resolveu ser artista. Cineasta, para ser mais preciso. E essa profissão o meu pai não entendia. Às vezes, confesso, nem eu entendo. Aliás, quando falo sobre isso sempre lembro da minha ex-gerente de conta, no Banco do Brasil, quando através de um comentário carregado de preconceito, ela disse: “quem diria que tu seria diretor de cinema”. Acho que foi naquele momento quando me ficou claro que nem para uma simples funcionária de uma agência bancária de uma pequena cidade do interior eu tinha o “direito” de ser um artista. Para ela, e acredito, para muitas outras pessoas, esse direito está reservado às pessoas “bem nascidas”. Mas, quis o destino – e foi mais o destino do que minha convicção pessoal – que eu enveredasse por esse caminho. Na época eu trabalhava bastante para a RBS e, para essa gente, trabalhar para a TV era deslumbrante. Portanto, como aceitar que o filho do pedreiro tivesse saído da cidade – um sonho de tantos – para conquistar seu direito de dirigir programas para a televisão?

Para mim, no entanto, fazer cinema nada tinha a ver com deslumbre. Tanto que acabei me identificando mais com os documentários e, tenho certeza, isso se deu muito por causa do meu pai. Como cineasta, ainda em formação na faculdade de Comunicação, eu inclusive o documentei inúmeras vezes. Cheguei a fazer, com ele, uma espécie de caminho de volta ao passado, levando-o para cada lugar onde ele havia morado desde quando pequeno. Eu atrás da câmera e ele em frente. Meu pai, como um documentarista ou repórter experiente, ia chegando nos lugares e, sem o mínimo constrangimento, ia puxando conversa e entrevistando as pessoas que encontrava pelo caminho. E não é que ele levava jeito?  Embora em casa fosse um homem quieto, na rua, com os “desconhecidos”, era um falador que adorava puxar uma conversa. Ainda mais se fosse sobre os “velhos tempos”.

Embora nem ele, nem eu soubéssemos, foi só após a sua morte e graças à terapia que me dei conta de como havia sido decisivamente influenciado por aquele homem. Mesmo atuando em uma área totalmente diferente da dele. Quem assistir meus filmes, por exemplo, facilmente perceberá que há, neles, muito dessa vontade de seguir contando suas “histórias dos velhos tempos” para, assim, melhor compreender o lugar e o tempo onde nasci e me criei. Nos meus primeiros curtas-metragens o mergulho nos “italianismos” foi mais no sentido de contribuir para com a preservação da memória da região. Percebo hoje que, ao fazer isso, de certa forma, estava também preservando-o. Foi quando me dei conta que o discurso de “orgulho da própria história” era uma mentira que a verdade logo desvendava assim que havia algum dinheiro na jogada. Como escrevi nos meus dois textos anteriores, o “orgulho sempre acaba no valor do metro quadrado”. Depois dessa fase, mais amadurecido e menos ingênuo – sim, realmente acreditava que os empresários da região, por exemplo, se importavam com a própria história –, foi a vez de refletir melhor sobre o que havia por trás desse passado que era constantemente apagado justamente por aqueles que, dele, mais enalteciam o tal orgulho. Por último, claro, a reflexão naturalmente deu lugar a um pensamento mais crítico – e muitas vezes ácido – acerca de todo esse universo do qual faço parte. Inevitavelmente – e mesmo não mais morando em Carlos Barbosa –, por conta disso, me tornei uma voz dissonante até entre meus amigos mais próximos. Mal sabia eu que, um dia, por volta do ano 2018, isso pioraria ao ponto de eu romper definitivamente com boa parte destes meus (ex)amigos. Afinal, uma coisa é menosprezar a importância da História – e da cultura, e das artes, e da pesquisa, e dos livros… –, outra é apoiar um Presidente desumano que a manipula em nome de um projeto de destruição do próprio país e sua população.

Tudo é um processo e, este, não se dá através de uma reta ascendente e ininterrupta mas, sim, mais se parece com uma espiral que, muitas vezes, inclusive, necessita retornar para seguir em frente. Foi apenas após todo esse movimento pessoal – e profissional – que me dei conta sobre a relação entre mim, meu pai e as “casas velhas” da região. Não apenas porque ele construía casas mas,  principalmente, porque passear com ele, de carro, pelo interior da cidade, era um dos poucos momentos quando nos reaproximávamos verdadeiramente. Nesses passeios, o pai voltava a ser pai, e aquele homem introspectivo que habitava a cadeira ao lado da minha, na mesa, comentava empolgado sobre as técnicas de construção de determinada edificação, encontrava pessoas com quem conversava sobre “antigamente” e olhava para mim com os olhos sorrindo por poder compartilhar todas aquelas histórias. Um pouco disso, inclusive, é possível assistir no meu longa-metragem, “Pra ficar na história”, no qual fiz questão de inserir uma pequena sequência do meu pai em “plena atividade” quando, ao visitarmos a primeira casa onde morou, ele relembrou da infância com uma riqueza de detalhes que eu, até então, ainda não havia escutado. Incrivelmente, a casa onde ele se criou seguia lá, de pé, habitada por um primo também de idade avançada. Aquele dia até foi possível enxergá-los brincando, de carrinho de lomba, debaixo de uma velha figueira que também seguia por lá, conforme ambos me relataram.

Já tem oito anos que meu pai faleceu – com 91 anos de idade – e o interior de Carlos Barbosa, que visitávamos juntos nesses passeios, também já não existe mais. Não daquela forma como eu o conheci há pouco mais de vinte ou trinta anos. Ou seja, é muito pouco tempo para tamanha transformação. A sempre referenciada Itália, por exemplo, mantém de pé edificações com mais de duzentos, trezentos e até mil anos. Já em Carlos Barbosa, um dia, enquanto pedalava sozinho por uma estrada de chão no interior da cidade, me dei conta que as velhas estrebarias de tijolos e telhas de barro, que faziam parte daquela paisagem, também haviam desaparecido quase que por completo e/ou estavam dando lugar para edificações em pré-moldado. Consegui imaginar o pessoal demolindo as edificações enquanto elogiavam a “qualidade” dos tijolos de antigamente. Aliás, uma bela analogia de como funciona o “orgulho” dessa gente.

Naquela mesma época, fazia pouco tempo, havia comprado uma briga com a Câmara de Vereadores porque estavam tentando aprovar, a toque de caixa, um projeto de restauro do prédio do Parque da Estação. Quem conhece Carlos Barbosa – e se não conhece, procura ai no Google – sabe que esta construção levantada pela “Compagnie Belgique du Chemin de Fer” não apenas simboliza a cidade hoje, como define a própria história de Carlos Barbosa que, inclusive, se desenvolveu a partir da chegada do trem. Quando realizei o documentário “Dormentes do Tempo”, na região de Gaurama, Viadutos e Marcelino Ramos – que conta com o mesmo padrão arquitetônico – através das pesquisas que deram fundamentação ao projeto, descobri que estas estações, construídas pela empresa belga no início do século XX, produziram uma arquitetura industrial que, hoje, apenas é encontrada aqui no sul do Brasil. Na Bélgica, por conta dos dois conflitos mundiais que assolaram a Europa na primeira metade do século passado, essas estações ferroviárias foram completamente destruídas e, por isso, substituídas por um novo projeto. Ou seja, é mais do que um prédio. É a história da cidade. É mais que a história da cidade, é algo que, no mundo todo, assim como as estrebarias de tijolos e telhas de barro, apenas é encontrado no Brasil.

Sabendo disso, e lembrando que em nome do “progresso”, também no passado, muitos barbosenses que viraram – ou ainda virarão – nomes de rua na cidade defenderam a demolição do mesmo prédio histórico – e isso apenas não ocorreu de fato porque parte da população literalmente o abraçou – iniciei, junto ao amigo e conterrâneo – e também cineasta – Felipe Guerra, uma campanha para que os poderes públicos explicassem melhor a pressa em aprovar um projeto de restauro que visava a construção de duas torres em ferro e vidro, uma de cada lado do prédio original. Claramente despreparados para discutirem o tema, foi fácil perceber que os vereadores da cidade estavam praticamente aprovando o projeto às cegas, na calada da (última) noite (de sessão do ano). Segundo as primeiras informações, na época, a desculpa para atrelar o restauro do prédio da Estação à construção daqueles dois “monstrengos” de vidro e ferro, é que haveria uma lei – embora ninguém a tivesse citado em momento algum – que “obrigaria” qualquer projeto de restauro a prever e realizar a construção de uma edificação “nova” e “moderna”. Uma falácia repetida inúmeras vezes ou por ignorância, o que é grave, pois demonstra que os vereadores que emitiram essa opinião nem ao menos haviam pesquisado a lei, ou por estarem mal intencionados, o que seria ainda pior, pois atestava interesses escusos por trás dessa falsa informação. Na época, me dei ao trabalho de me informar com alguns arquitetos especialistas em restauro sobre essa tal lei. O que descobri é que havia, sim, uma norma que determinava – e creio que a mesma segue em vigor – adequações de um prédio histórico quando este é submetido a um processo de restauro. No entanto, a lei fala de uma adaptação específica e direcionada, apenas, à acessibilidade da edificação. Este, obviamente, um conceito contemporâneo o qual não existia em 1910, quando da construção da Estação. No entanto, se, por um lado, essa intervenção deve ser feita de forma que não confunda o observador sobre a técnica de construção empregada no passado e no presente, ou seja, que esta intervenção se utilize de técnicas que evidenciem a qualquer leigo as diferenças entre a construção original e suas “novidades” – nesse caso, o uso de ferro e vidro seria indicado –, por outro lado, percebamos juntos, tal adequação não deve “agredir” a construção original nem na sua forma, nem na sua estética. Ainda, o que me causou mais perplexidade, na época, é ter descoberto que a própria prefeitura já havia, anteriormente, contratado o arquiteto Edegar Bittencourt da Luz para desenvolver o projeto de restauro do prédio. E que, apesar deste ser um especialista em restauro e patrimônio histórico, que atuava já há 45 anos na área de restauração em edificações como o Palácio Piratini, a Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul, o Paço Municipal de Porto Alegre, o Solar dos Câmara, entre outros, o projeto por ele – e sua equipe – desenvolvido havia sido descartado e, portanto, não seria executado. Mesmo após este também já ter sido aprovado pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – em 23/11/2015. Me perguntei – e perguntei aos envolvidos – quais seriam os motivos que levaram a prefeitura a abandonar um projeto já pago, com dinheiro público, e desenvolvido por uma autoridade na área, referenciado pelo próprio IPHAN, em nome de um outro projeto desenhado por um escritório de arquitetura de Bento Gonçalves formado por profissionais que, até onde se sabia, não detinham notório saber na área de atuação.

As respostas às minhas dúvidas, claro, nunca vieram. Ao mesmo tempo, alguns vereadores, sabedores ou não de todas essas informações, utilizaram a lei citada acima para, subvertendo-a, justificarem a construção dos dois novos prédios em ferro e vidro, conforme os conceitos mais cafonas propagados nas faculdades de arquitetura. Lembro que, em defesa de tal projeto e através do Facebook, uma das arquitetas proprietárias do referido projeto chegou a compará-lo com o Louvre de Paris. Apesar da breguice típica de (mais) uma postura colonialista e da referência equivocada do projeto em questão, uma coisa que não estava claro para mim é porque os vereadores (não todos, ainda bem) estavam tão ansiosos com a aprovação do mesmo. Na época, além das intensas publicações no Facebook o que, inclusive, nos rendeu um inusitado protagonismo de boa parte de uma sessão dos vereadores, quando nos acusaram de “pseudo-intelectuais escondidos atrás das redes sociais”, eu fiz questão de escrever uma carta para o Prefeito, para o Presidente da Câmara e para os dois jornais da cidade. Parte da carta – que era longuíssima – foi publicada no Jornal Contexto e a mesma me rendeu uma reunião privada com o então Prefeito, Evandro Zibetti, que me garantiu que o projeto seria suspenso. E, de fato, foi o que ocorreu. O projeto foi “arquivado” e assim permanece até hoje. O símbolo do tão aclamado progresso da cidade está lá, fechado, criando teias de aranhas e se deteriorando às vistas de toda a população que, por sua vez, permanece indiferente – e inerte – frente ao abandono do seu principal “monumento”. Uma bela ironia disso tudo, inclusive, surge do fato que, nesse mesmo prédio, nos anos 1990, foi inaugurado o Cine Ideale, uma sala de cinema pequena mas que, por anos, movimentou a cinefilia da região. Embora Carlos Barbosa figure, consecutivamente, no topo do ranking do IDH – Índice de Desenvolvimento Humano – no Rio Grande do Sul, a cidade não conta mais com uma mísera sala de cinema, um teatro, um centro cultural ou mesmo um singelo museu que possa preservar e contar a sua História. Prova de que o “desenvolvimento humano”, no Brasil, realmente não percebe a cultura como um fator importante na sua avaliação e constituição.

Para ser justo a este texto, fiz questão de entrar em contato com o Diretor da Fundação de Cultura e Arte (Proarte) de Carlos Barbosa, Eliseu Demari, e lhe consultar sobre as intenções da nova administração, que assumiu a prefeitura em 2021. Segundo o que me foi relatado, a intenção era ter iniciado o restauro no início deste ano mas, por questões burocráticas entre a Secretaria Especial da Cultura do Governo Federal, IPHAN e FUNARTE, o mesmo atrasou. Segundo Demari, em agosto uma comitiva de Brasília visitou o prédio e prometeu liberar a verba captada para dar início às obras que não contarão com nenhuma nova construção no seu entorno. Fico feliz, no entanto, aguardarei as cenas dos próximos capítulos antes de soltar rojões. Até porque, como escrevi anteriormente, minha ingenuidade sobre a percepção das pessoas acerca da importância da nossa memória – e não falo apenas da Serra Gaúcha – há muito deu lugar ao mais robusto ceticismo. Me tornei um São Tomé, inclusive agora, de óculos bifocal, que só acredita vendo.

Os meus anos de vida, estudo e observação do país onde vivo, somados à minha experiência como um filho de pedreiro que resolveu ser cineasta, infelizmente, me fizeram perceber que a essência de tudo isso está ligado, única e exclusivamente, ao dinheiro e ao poder. O passado, o patrimônio histórico, a memória daqueles que construíram a cidade e até mesmo o desenvolvimento – ou não – de qualquer projeto minimamente sustentável, seja este qual for, é atravessado, sempre, pelo lucro. Portanto, aos olhos desses “cidadãos de bem” de nomes pomposos, contas bancárias recheadas, carros novos nas garagens e nenhum livro nas estantes, o prédio da Estação até pode merecer um restauro, mas desde que seja modernizado para que o famigerado progresso esteja impresso no principal cartão postal da cidade. Nada ou pouco importa se esta falsa ideia de modernidade, na verdade, apenas refletirá a pobreza intelectual dos nossos tempos em suas fachadas em vidro fumê ou espremerá o passado até este não mais conseguir respirar. O futuro não pode ser detido. Inclusive, resistir ao “progresso acima de qualquer coisa” é pauta de “comunista,  petralha ou artista vagabundo”. Ou tudo junto ao mesmo tempo. Aqueles que são contra o desenvolvimento, são contra a Pátria. Entretanto, a verdade é que os séculos passaram, alguns prédios, fábricas e avenidas até foram construídos, mas o Brasil segue sendo aquele mesmo país atrasado culturalmente e injusto socialmente, conforme relatado nos livros de Laurentino Gomes. Nada mais que uma mina a céu aberto, de onde os ditos “cidadãos de bem”, há séculos, retiram tudo o que podem – a partir do trabalho escravo – para, depois, investir o produto desse roubo em alguma offshore qualquer no Caribe. Para essas pessoas, o conceito de nação inexiste. Por isso um país sem memória é conveniente afinal, quanto menos as pessoas conhecerem a sua própria História, mais fácil a manipulação social e mais difícil o surgimento de um verdadeiro sentimento patriótico, para além de simplesmente ostentar a bandeira nacional nas janelas e carros, que irmane a todos em torno de um projeto de nação. Uma vez que não há nação, não há pertencimento. A espoliação do país está liberada, seja do jeito que for possível. Exploração ilegal da fauna e da flora, da especulação imobiliária e/ou financeira, do agronegócio predatório, das privatizações criminosas, da mineração ilegal, da sonegação de impostos ou da corrupção endêmica. Quem pode, pode. Deixa os incomodados que se incomodem.

Pensando assim, me parece, há uma certa coerência no fato de nossas ruas e avenidas, que nos guiam pelos mapas das cidades, terem sido batizadas com tantos “nomes de bem”. Nomes e sobrenomes que, precisamente, refletem este Brasil. Um país originado da pilantragem de náufragos, traficantes e degredados, que sustentou o luxo das realezas europeias por séculos, que se abriu todo para receber a corte portuguesa quando esta teve que fugir de Lisboa mas que, por ela, foi rapidamente abandonado tão logo Dom João VI pode retornar à Europa. Um país de aluguel que, vergonhosamente, apenas para seguir garantindo o lucro das elites coloniais, foi o último território latino-americano a abolir a escravidão e o mais atrasado país das Américas a constituir uma educação pública. Não é por acaso que os problemas sociais do Brasil são históricos e permanecem aí, expostos nos morros e periferias das nossas cidades. E também não é por acaso que o Brasil é um país que se orgulha mais daqueles que o pilharam – e pilham – do que aqueles que realmente o construíram. Dessa forma, ironicamente, até é positivo que pessoas honestas e trabalhadoras, como o meu pai, por exemplo, não emprestem seus nomes às nossas ruas. Afinal, no Brasil a imoralidade e a injustiça está, literalmente, impressa no nosso ir e vir cotidiano.

Já pararam para imaginar o dia quando o Waze indicar “entre à direita, na rua Jair Bolsonaro”?

 PS: meus filmes, citados ou não nesse texto, podem ser assistidos através do Vimeo da Teimoso Filmes e Artes e/ou do YouTube do Boca Migotto.

 

I. BOCA MIGOTTO

I., de Ivanir, Boca Migotto é cineasta, pesquisador, fotógrafo e escritor. Publicitário formado pela Unisinos, cedo se deu conta que estava na área certa – a Comunicação – mas no curso errado. Formado, então, largou tudo e foi para Londres. Nos dois anos que permaneceu na Inglaterra fez de tudo: lavou prato, fez café, foi garçom e auxiliar de cozinha, estudou inglês e cursou cinema na Saint Martins College of Arts and Design.
Ao regressar para o Brasil, fez Especialização em Cinema e Mestrado em Comunicação, ambos pela Unisinos. Nesta mesma instituição, foi professor de Documentário no Curso de Realização Audiovisual, onde permaneceu por dez anos, atuando também em disciplinas dos cursos de Jornalismo, Comunicação Digital e Publicidade. Como professor de Documentário ajudou seus alunos a ganharem prêmios importantes como Kikito de Melhor Curta-metragem, no Festival de Gramado, e Melhor Curta-metragem pelo Voto Popular, no Festival de Tiradentes.
Hoje não é mais professor, mas acabou de finalizar seu Doutorado em Comunicação pela FABICO/UFRGS, com extensão na Sorbonne/Paris 3. Foi quando morou em Paris, aliás, que decidiu lançar seu primeiro livro de ficção; Na antessala do fim do mundo.Como cineasta – diretor e roteirista – realizou mais de vinte curtas-metragens e séries de TV, além dos longas-metragens; Filme sobre um Bom Fim, Pra ficar na história, O sal e o açúcar e Já vimos esse filme. No momento prepara uma adaptação “menos acadêmica” da sua tese de Doutorado; Um tal cinema gaúcho de Porto Alegre ou como essa cidade mata seus artistas, livro que pretende publicar paralelamente ao seu quinto longa-metragem, o documentário homônimo, que realizou junto à pesquisa de Doutorado.
Com essas duas últimas obras, Boca pretende fechar mais um ciclo de vida e de produções. A partir daí, o destino apontará novos caminhos e, quem sabe, o convide para escrever uma coluna quinzenal para a Rede Sina seja um indício de para onde seguir.
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