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Lendas do Cerro do Jarau por VITOR BIASOLI

Não conheço o Cerro do Jarau, no município de Quaraí (cidade da fronteira do Rio Grande do Sul), apenas a lenda em torno do local, criada no tempo das Missões Jesuíticas. Ali viveu uma princesa moura (fugida das guerras entre mouros e cristãos, na Espanha) transformada em uma lagartixa com uma “pedra luzente” na cabeça, chamada Teiniaguá, capaz de atrair, enfeitiçar e também proporcionar riqueza.

Um dia a Teiniaguá apareceu para um sacristão (de uma missão jesuítica do lado oriental do Rio Uruguai), ele a capturou e levou-a para o seu quarto. O sacristão sabia que a Teiniaguá podia enriquecer um homem e era isso que ele pretendia. Mas, quando foi alimentar a lagartixa, ela se transformou numa linda mulher.

– “Eu sou a princesa moura encantada” – ela disse. – “Sou jovem… sou formosa…, o meu corpo é rijo e não tocado.” (Assim a mulher se apresenta no conto de João Simões Lopes Neto, inspirado na lenda.)

A princesa capturou a alma do sacristão e terminou levando-o para o outro lado do rio, para o Cerro do Jarau. Duzentos anos depois, o gaúcho Blau Nunes quebrou o feitiço e concedeu o “livramento” do sacristão. (A expressão “livramento” é de Lopes Neto.)

A lenda tem mais voltas, mas vou ficar apenas com essa parte: a da princesa moura que vem parar no Rio Grande do Sul (trazida na bagagem de uns mouros vencidos pelos cristãos em Salamanca), passa a viver no corpo de uma lagartixa… e de repente desabrocha. História de uma mulher capaz de enfeitiçar um homem.

Pois certa vez soube da história de um médico que foi passear com uma professora em Quaraí e os dois enlouqueceram nas imediações do Cerro do Jarau. Um episódio do final dos anos 1990, a respeito do qual eu nunca soube muita coisa, mas sempre me fascinou.

O essencial, porém, é o seguinte: a professora era uma jovem senhora de 36 anos, muito formosa, vestida numa roupa de couro preta, muito ajustada ao corpo, moldando em especial nádegas e coxas. Um corpo rijo (semelhante à princesa moura) como poucas vezes o médico, 40 anos, sentira nas suas mãos.

Ele a quis intensamente naquela tarde e foi isso que tentou dentro do carro, estacionado nas imediações do cerro. Eles se abraçaram e se beijaram, enroscaram-se “feito duas lagartixas” (a expressão é do médico, contando o caso), as mãos do homem palmilharam cada centímetro do corpo da mulher, mas a moça foi arredia. Gostou, mas não cedeu, surpresa com a sua capacidade de provocar tanto desejo. Ao entardecer, os dois voltaram a Santa Maria, ficaram de se reencontrar, mas o destino os separou.

O médico nunca esqueceu aquele momento de feitiço e excitação vivido na região do cerro, tentou contato com a professora de todo o jeito (escreveu e-mails líricos e até eróticos), mas ela o dispensou. Como o sacristão da lenda, ele se sentiu torturado por uma princesa moura de roupa de couro, mas não sem sentir algum prazer nesse sofrimento. Anos depois, porém, contava a história sorrindo, dizendo que fora um desses momentos de loucura e excitação que às vezes a vida nos proporciona.

Coisas da Teiniaguá, eu concluo (que não desencantou, como reza a lenda). Mais um episódio a enriquecer o repertório do Cerro do Jarau – um local que preciso conhecer.

 

Obs.: o conto de João Simões Lopes Neto referido é “A salamanca do Jarau”, publicado em Lendas do Sul (1913). A foto é da capa da edição organizada por Luís Augusto Fischer, Contos Gauchescos e Lendas do Sul (L&PM, 2013, 328 p.).

 

Vitor Biasoli
nasceu em Pelotas (1955) e vive em Santa Maria desde 1991. Formou-se em História (UFRGS, 1977), fez mestrado em Letras (PUCRS, 1993) e doutorado em História Social (USP, 2005). Lecionou em escolas do Ensino Fundamental e Médio (1978-1991) até ingressar na Universidade Federal de Santa Maria. Atualmente está aposentado. Publicou livros acadêmicos e literários, entre eles: Jorge encontra Lilian (novela juvenil, 1998), Calibre 22 (poemas, 1999), Uísque sem gelo (contos, 2007), Santa Maria: ontem & hoje (crônicas, 2010), O fundo escuro da hora (contos, 2018), Paisagem marinha (poemas, 2021) e Itália, trilhos e café: histórias da família Biasoli (crônicas, 2022). Pertence ao grupo de escritores da “Turma do Café” e é colunista da Rede Sina.
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