Uruguaiana, 1996. Cidade Alegria, subúrbio, zona leste, calor do inferno. Fim de tarde normal, gente voltando do trabalho, outros indo. Eu e meus amigos jogando bola e um cara, ao lado do campo, rindo do último tombo que alguém tinha levado. Enquanto a maioria de nós tinha entre treze e quinze anos, o Polaco, o cara que estava rindo, andava para lá das bandas dos cinquenta anos. Enquanto corríamos feito loucos atrás da bola recém comprada na Baixada, o Polaco só observava.
O Polaco era um cara magro, trabalhava na construção civil ou em qualquer changa que aparecesse. O Polaco morava na rua ao lado do campo, numa casa antiga de madeira acinzentada que tinha nos fundos uma taquareira e muita guanxuma. Nos finais de tarde ele gostava de tomar caipira, ao mesmo tempo em que fumava um cigarro paraguaio na beira do gramado.
“Gramado” é forma educada de chamar o campo onde jogávamos, ele era uma mistura de terra e pedras com pedaços de peles de joelho e restos de tênis em decomposição. No lugar onde era o campo, tinha sido uma transportadora com vários caminhões, então era normal também encontrarmos pedaços de metal e parafusos.
O nosso campo de futebol ficava na entrada da Cidade Alegria, ele era meio que o nosso espaço de lazer e terapia. O lugar onde esquecíamos dos problemas de nossas casas, da falta das coisas, esquecíamos a perda dos amigos e virávamos, por algumas horas, craques do futebol.
Nós chamávamos o campo de “A Pedreira”, ainda hoje devo ter algum pedaço de pedra alojado no meu corpo, tipo uma joia encravada. Ainda hoje tenho marcas nos cotovelos e joelhos das quedas que levei, são minhas tatuagens naturais.
A Pedreira era um campo de futebol sete, rodeado por cercas de tela e um pouco de grama nas laterais. Ao fundo tinha a casa do Celito, que tinha que parar de tomar chimarrão toda vez que a bola caía no seu pátio. Num lado a casa do Polaco e na frente da Pedreira tinha a rua Alceu Wamosi e todo o fluxo de gente, cachorros, carros, carroças, bicicletas, tudo em direção a Cohab 2, Cidade Nova e Cidade Alegria.
E teve uma vez que chutei a bola tão mal que ela viajou por cima do gol, cruzou por debaixo dos fios de luz e pousou bem na Alceu Wamosi, entrou direto na janela do ônibus 1001 em pleno movimento. Na hora, todos vibraram, como se eu tivesse feito um gol, mas depois ficaram de cara comigo, pois a bola nunca nos foi devolvida. A sorte ou azar foi que a bola era minha.
Na Pedreira eu vi grandes times de final de tarde serem montados, rivalidades surgirem e amizades até se desfazerem por causa da competição. Havia uma regra na hora de montar os times, os dois melhores jogadores não podiam ficar do mesmo lado, assim, cabia a eles a escolha de quem jogava com ou sem camisa.
Nas vezes em que eu ficava com a função da escolha do time, primeiro, eu adotava o critério de criar uma linha imaginária, do gol até o atacante, enquanto olhava para cada guri que estava esperando para ser escolhido.
Eu lembro sempre de começar a escalação pelo goleiro, afinal, a maioria não gostava de jogar embaixo das traves. Eu chamava o Itaquera para o gol, ele era bem mais novo que a maioria de nós, mas era alto e forte.
Depois, chamava o Edson, nosso melhor zagueiro, pouca técnica, mas estatura e valentia de sobra. Depois, quando dava, escolhia o meio de campo, o alvo era o Negão (O Anderson, ele sempre era um dos que escolhia ou ele era escolhido primeiro), um cara mega habilidoso e que tinha drible e passe ótimos. O Negão morava em diagonal com a minha casa, crescemos jogando juntos de pé no chão, então, era fácil jogar com ele no meio de campo.
E no final, para jogar na frente, eu pegava o Palometa que era um baita driblador ou o Potranca, que era uma mistura de Hulk com Diego Souza e Rambo e um trator. Quando eu conseguia escolher esse time, geralmente ganhávamos diversos jogos, um atrás do outro.
Diversas vezes, entrávamos no campo lá pelas 17h, tinha gente que nem chegava em casa, deixava a mochila da escola atrás de um dos gols e ficava ali mesmo. Geralmente, parávamos de jogar quando nossos pais nos chamavam ou quando ninguém mais conseguia enxergar a bola.
Como o Polaco morava na rua do lado da Pedreira, estava sempre no campinho, tomando mate e fumando e corneteando cada erro ou drible. E quando tinha jogos noutros lugares, ele era o nosso técnico, e então nós virávamos o “Time do Polaco”.
Nos torneios, ninguém dava palpite na escalação, mesmo que todos tivessem um “time ideal” na cabeça, era o técnico que escolhia, assim, o Polaco propunha escalações inovadoras, entre um gole e outro de caipira.
A verdade é que ele escalava mal, tipo o Renato Portaluppi, por vezes, nós é que nos ajeitávamos em campo e ele nem percebia, como num time do Abel Braga. Mas isso não importava, o legal é que ele se dispunha em estar conosco, participar dos jogos, e isso nos bastava.
Teve uma vez em que o Itaquera que era goleiro foi de zagueiro, todo o time voltava em pânico para ajudar na zaga. E noutra, o Potranca que era nosso centroavante, jogou de zagueiro e foi o melhor em campo, até que o jogo foi interrompido, pois alguém entrou no Campo dos Eucaliptos e esfaqueou um jogador do time adversário. O cara caiu na frente do Potranca. Ele ficou parado, sem saber se ajudava ou corria atrás do maluco que tinha a faca.
E teve um jogo em que o Polaco me escalou de goleiro. O Polaco acendeu o cigarro, distribuiu as camisetas e eu sobrei, daí ele disse, “hoje tu vai no gol”. Eu fui. Quem é “fominha” não se importa de jogar no gol, quer mesmo é jogar. Foi num domingo de manhã, num campo molhado de geada e rodeado de gente agasalhada, o cheiro dos fogões a lenha no friozinho do inverno davam o tom de bruma sobre o campo.
O campo do Beco da Guampa era menor que o da Pedreira, numa das laterais havia vários ossos no chão, tipo ossos de patas de vaca, aqueles que sobram do mocotó, extremamente brancos. E na outra lateral havia um muro. Sim, a linha lateral ficava a um palmo de distância do muro, era tipo um guard-rail para os nossos joelhos e ombros.
Naquele domingo de manhã, quando fomos jogar a final do torneio, o campo do Beco da Guampa estava cheio como nunca. Já havíamos jogado várias vezes no Beco da Guampa, o campo ficava pertinho do Sindimercosul e tínhamos uma rivalidade forte contra o time local: o Time do Banha.
O Time do Banha era composto por jogadores mais velhos, um time forte, rápido e entrosado. O Banha era o atacante, eu e ele jogávamos juntos no time do colégio Roberval, ele tinha um “pataço” de direita e, como ele era grande, a jogada era sempre girar e chutar. Teve um jogo contra o Elisa no campo do Ferro Carril em que o Banha fez um gol quase do meio de campo.
Naquele jogo do Beco da Guampa, o Banha era o centroavante. O jogo mal começou e o Banha deu dois chutes e eu tomei dois gols.
Um chute no ângulo e outro no cantinho, bola rasteira tapada de barro que ainda tocou na ponta da minha luva. Lembro que eu pulei o máximo que pude, levantei com a boca cheia de casca de arroz e ensurdecido pelo barro nas orelhas.
Como tinha muito barro nas áreas, no sábado, a “organização” do torneio colocou cascas de arroz nas duas goleiras, no início era legal cair no fofinho, mas depois, a casca molhada era tipo um alfinete e as pedras e o barro viraram uma sopa. O primeiro tempo acabou com o time da casa nos vencendo por 2X0.
O Polaco ficou toda a partida da final sentado ao lado do gramado, tomando mate e conversando amenidades com os amigos, parecia que nem estávamos jogando. Acho que quando faltava uns dez minutos para acabar, num cruzamento desesperado, o Potranca pulou alto, feito Cristiano Ronaldo, e com a cara meteu a bola para dentro do gol. Na verdade foi um gol de nariz.
Na saída de jogo, um passe errado do time do Banha, a bola parou numa poça de água e foi no pé do Mano, que recém tinha entrado no nosso time, ele tabelou com o Palometa e meteu um chute mascado que bateu na perna do goleiro e a bola entrou. Empate!
Em seguida, outro chute deles e eu tomei um frangaço, bola que escorrega entre os braços e vai pelo meio das pernas. Quando tudo parecia perdido, o Varley, que era um dos que sempre escolhia times na Pedreira por ser muito bom, entrou aos dribles no campo do time do Banha e fez um golaço. Empate de novo! Um empate cheio de cagaço heroico.
Alguns torcedores eram pais ou parentes dos jogadores do time do Banha. Uma lateral inteira cheia de gente. Lembro que para cobrar a lateral, na maioria das vezes tínhamos que negociar espaço com alguns torcedores e eles ficaram furiosos com o juiz, pois diziam que o Varley tinha feito uma falta ao passar por um dos zagueiros. A torcida era algo, a maioria ficava quase dentro do campo, seguravam a bola para matar tempo, jogavam pedras e ossos, eles se divertiam nos ofendendo e ameaçando. Uns anos atrás, encontrei um amigo lá da Pedreira na fila do açougue, entre uma risada e outra, ele lembrando do jogo disse que “La Bombonera era ali, no Beco da Guampa”.
O Polaco respondia cada provocação, sempre em tom de brincadeira, ele ria, os outros riam e ele dava mais um pito no cigarro e outro gole em alguma caipirinha sorrateira. De repente, um osso passou voando perto da minha cabeça e outro pegou meu ombro. O Polaco viu e pediu que eu ficasse alerta para não tomar mais uma ossada. Nada preocupava ele.
O nosso técnico só se levantou na hora em que o jogo foi para os pênaltis, mas antes de falar conosco, buscou uma bolsa, destas de carregar chuteiras, que estava pendurada no guidão de uma bicicleta, depois nos chamou na lateral e disse a ordem dos batedores.
De saída, foram quatro chutes e quatro gols para cada lado. Em seguida o Palometa fez para o nosso time, 5×4. Depois a vez do Banha bater. Eu tinha barro dentro do nariz e casca de arroz na orelha, não tinha acertado nenhum canto. “Eu não vou pular mais, chega de cair nesta cama de casca de arroz e barro”, pensei sozinho. “Foda-se! Vou ficar parado no meio do gol”.
O Banha estava sério, depois de ajeitar a bola, ficou me encarando, olho no olho, de repente ele olhou para o canto esquerdo. Ele correu e bateu com uma ignorância poucas vezes vista, eu já havia decidido, em protesto eu fiquei parado. Mesmo sabendo que a bola tinha muitas chances de ir para o lado esquerdo, eu não pulei, não aguentava mais as cascas de arroz pinicando a alma. E a bola não foi. A bola foi no meio do gol, bateu nas minhas mãos com tal força que elas bateram na minha cara com bola e tudo, de tal maneira que cortou meu lábio. Tudo ficou meio nebuloso, fiquei um pouco tonto, aquela bolada foi tipo um soco. Aí foi que eu vi, o meu time todo festejando.
Campeões do torneio do Beco da Guampa!
Naquele domingo frio e úmido, o Polaco espremeu um limão num copo de extrato de tomate, vitorioso, pegou a bolsa que ele tinha buscado na bicicleta e retirou dela uma garrafa de Kikana, preparou ali mesmo uma caipira.
Bebeu vitorioso.
Não me lembro se teve premiação, talvez umas medalhas, não me lembro. Só lembro mesmo é do Ki-Suco de laranja gelado que bebemos na frente da casa do Polaco. Todos com aquela sensação boa, de pertencimento e alegria em fazer parte de uma vitória coletiva.
Com o tempo o nosso time foi se decompondo, meses depois, o nosso lateral direito morreu, tiro nas costas. Depois, logo depois, o Potranca foi preso. Em seguida o Edson também foi preso. O Palometa mudou de cidade. O Negão foi para outro Estado. O Varley também foi embora. Eu fui estudar em Santa Maria. Uns se perderam nas drogas, outros nas igrejas, uns se encontraram, outros eu não sei.
Do Polaco, nunca mais soube. O campo da Pedreira deixou de existir. No lugar onde jogávamos, agora há um posto de saúde. No campo do Beco da Guampa agora existem umas casas. Não existem mais campos.
Em Uruguaiana, sem percebermos, as pessoas que moram nas vilas foram sendo alijadas da prática esportiva, os campinhos de futebol foram desaparecendo. E quem não tem dinheiro para alugar quadras, não tem mais mais onde jogar futebol.
E o poder público naturalizou essa exclusão esportiva, foi deixando que esses espaços desaparecessem. A elitização do futebol não ocorre só nos estádios, ocorre também nas vilas.
Os campos onde jogávamos por horas, no frio ou na chuva, sem ter que pagar, sem pressa com horário, eles se tornaram apenas uma lembrança. Ainda assim, gosto de pensar que o Polaco ainda anda por aí, com seus 70 e poucos anos, na beira de algum campinho, tomando uma caipira e participando da vida esportiva de algumas crianças que só querem se divertir e esquecer um pouco da dureza da vida.