Passados os festejos de final do ano, a vida segue o curso normal, volta aos trilhos ou destrambelha ainda mais. A TV e os programas transmitidos nos situam em narrativas e contextos que alongam anos e séculos. O último novembro foi intenso, atividades lideradas pelo patrono da 69ª Feira do Livro de Porto Alegre transitaram pela Praça da Alfândega e cinemas. Tabajara Ruas além de escritor é cineasta e neste mês foi eleito por unanimidade o mais novo membro da Academia Rio-Grandense de Letras. Criou com a companheira Ligia Walper, a Walper Ruas Produções. Seus filmes foram exibidos durante o referido evento e podem ser vistos em plataformas de streaming. Por tudo o que vivemos no último ano e que tem se reiterado enquanto tragédia humana, o filme A cabeça de Gumercindo Saraiva nos convoca a refletir sobre as hostilidades e suas inimagináveis conseqüências. O longa-metragem está baseado no romance do recente patrono e foi lançado em 2018. No elenco estão os saudosos Leonardo Machado e Sirmar Antunes. Ambos interpretam com a força dramática que os caracterizava. O primeiro fez o papel do filho mais velho do caudilho Gumercindo, Francisco Saraiva. O segundo, o seu fiel escudeiro, Caminito.
A fotografia é belíssima, vislumbramos os campos, a serra, as cachoeiras em cenários que poderiam ser paradisíacos, mas ao contrário, são palco para uma disputa insana e sanguinária. Percorremos com o filme as paisagens de São Francisco de Paula, Canela, Cambará do Sul, Gravataí, Porto Alegre e São Miguel das Missões e temos a idéia do quanto a guerra se espraiou levando suas misérias. A trilha sonora muito bem ancorada no som pungente do violoncelo é peça-chave na trama, contribuindo para aguçar a sensibilidade do espectador.
O episódio que culminou com a degola do cadáver de Gumercindo Saraiva acontece durante a Revolução Federalista. O século XIX para a região sul do Brasil foi vivido com guerras e disputas políticas. Naquele momento, duelavam Maragatos (federalistas) e Ximangos ou Pica-paus (republicanos). O conflito visava a deposição de Júlio de Castilhos e iniciou na segunda semana de sua posse.
“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, escreve Tolstoi em Anna Karenina. Tal expressão veio-me à lembrança durante a exibição do filme. Todas as guerras se parecem, cada guerra provoca tragédias e traumas a todos e todas à sua maneira.
A decisão de separar a cabeça do corpo teve as seguintes premissas. Primeiro, acreditava-se que com essa separação, a alma não descansaria, vagaria de um lugar para outro. Segundo, seria um troféu nas mãos de Júlio de Castilhos, prova cabal da derrota de um dos principais inimigo. O major paulista Ramiro de Oliveira, interpretado pelo ator Murilo Rosa, é quem recebe a missão da entrega. Ele vacila, mas não tem alternativa além de obedecer às ordens superiores. Com a hierarquia militar de guerra não se brinca, daí advém o dito popular – ordem dada, ordem executada. Essa talvez seja a questão mais constante ao longo dos milhares de guerras que se revezam ou concomitante. Sempre há uma guerra para chamar a atenção para si. Os interesses são vários. A intolerância e a tragédia andam juntas.
O filme cresce mostrando a tensão e a loucura que acomete ambos os lados. Degolar inimigos era/é a ordem da vez. Julgamentos sumários e sem chance de defesa, dependiam/dependem do humor das chefias imediatas. “Os mortos governam os vivos” em um presente contínuo. Os vivos que clamavam/clamam por suas vidas pouco importância tinham/têm, não eram/são ouvidos e sequer vistos. Eram/são comandados pelo dever da defesa da honra que estava/está acima da vida.
Os conflitos qual um camaleão esgueiram-se e nos confundem, e sempre há quem os defenda como forma de reafirmar o que honram. Cabe lembrar a contundente afirmação de Walter Benjamin ao discorrer sobre o conceito de história: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento de barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é tampouco, o processo de transmissão da cultura.” Diz ainda o teórico que é necessário escovar a história a contrapelo. Tabajara Ruas o faz. Na contramão da apologia da guerra, o escritor e cineasta nos conduz ao desvelamento dessa obscenidade circundada por medalhas e mortes.
Cátia Castilho Simon
Escritora e poeta