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ESTANTE DA ALICE | Um mergulho em “A mulher submersa”, de Mar Becker

É difícil, quase impossível, não se encantar com “A mulher submersa”, de Mar Becker, essa poeta que assina com a imagem do mar os seus versos longos, deslizantes, como a água.

Com seu irresistível canto de sereia, ela fascina e nos convida a mergulhar, a submergir, nas águas abissais de seus versos e – quem sabe? – voltarmos com o tesouro da autodescoberta, sempre misteriosa, que nos pode presentear a poesia.

A experiência, a experimentação, a fruição, que um texto, a poesia, os poemas, nos oferecem são extremamente pessoais, singulares. Se o conhecimento e o reconhecimento dos recursos e dos artifícios literários utilizados, podem contribuir para tentarmos compreender como um poema foi estruturado, penso que pouco podem desvendar sobre o que nele nos fascina. Nos poemas de “A mulher submersa”, há perícia e cuidado na construção dos versos, ricas figuras de linguagem (metáforas, analogias, hipérboles e antonomásias), um diálogo com outras vozes e memórias de poetas, como Safo, Virgínia Wolf, Sylvia Plath e Ana Cristina Cesar, intertextos e outros tesouros que cada leitura poderá acrescentar, por vivências e espelhamentos, pela simbologia poderosa, presente nesse mergulho (ou naufrágio).

Ao retirar “A mulher submersa” de minha estante hoje, para recomendar sua leitura – e inevitáveis releituras -, optei por seguir a voz de sereia que me encanta através desses poemas e reunir algumas pistas, que nos tem oferecido a própria Mar Becker, seja em seu generoso compartilhamento nas redes sociais do intenso trabalho de tecer e destecer, diante de nossos fascinados olhos, seus cadernos de versos, ou nas já inumeráveis entrevistas das quais participou em lives, revistas e jornais. É um trabalho incansável o realizado pela poeta, do qual não escapam nem os poemas publicados na cuidadosa edição realizada pela Urutau e novas versões são apresentadas a uma cada vez maior legião de seguidores (e fãs, como eu).

Além dos registros dessas pistas (provocações, possibilidades, potencialidades), que recolhi a partir das enunciações da autora, de um poema oferecido como convite à leitura do livro, deixo aqui também a recomendação para que se siga a poeta no Instagram e no Facebook, com a certeza da experiência de maravilhamento que ela oferece. A chave – ah! a chave – para abrir o cadeado do tesouro dessa poesia imensa, ninguém pode prometer.

Em entrevista publicada no site da Urutau, na época do lançamento do livro – link pra lê-la na íntegra ao final deste texto -, Mar Becker comenta o longo período de composição de “A mulher submersa”, iniciado uns oito ou nove anos antes da publicação. O trabalho é composto por cadernos, ou séries, tendo iniciado com “As filhas, as mães, as avós” e seguindo em processo com o “Caderno dos mortos”, que tem alguns poemas publicados na edição da Urutau. Nesse mergulho a que se propõe a autora, todas as séries seguem em trabalho, como podemos acompanhar em suas publicações nas redes sociais.

Submergindo em mares interiores, Mar Becker confidencia que as temáticas presentes no livro a acompanham desde que se entende “por gente”: “a mulher, a mãe; a casa, o quarto, os objetos do quarto, a beira da cama; a palavra, a cidade, o bairro, o deserto; as forças da natureza, os animais-enigmas — o pássaro, o peixe, o rinoceronte, a mariposa, entre outros; as rebeliões domésticas, sempre furtivas, sorrateiras. Ainda: o silêncio como caminho místico. Os mortos”. E, assim, se pode encontrar em seus versos o imaginário e a voz de uma mulher do interior do Rio Grande do Sul, de sua Passo Fundo natal, embalada em milongas do cancioneiro dos pampas, mas multifacetada e transpassada por uma comunidade de milhares de outras mulheres, que somos múltiplas e, como escreve a poeta, somos todas iguais: “todas sem exceção. as de ontem, iguais às de hoje, as de hoje iguais às de amanhã” (à parte do reino, p. 105).

Neste “livro-boneca-russa”, ou “livros-bonecas-russas, no plural”, como o define Mar Becker, porque ele se constrói de “de muitos centros, muitas camadas”, a poeta se permite deixar-se levar nas águas do inconsciente: “Chega um momento, no meio de cada série poética dessa publicação — chega uma altura em que digo: ‘aqui’ não a escrevi. Pelo contrário, a partir desse ponto é ela que então que me escreve”.

Sem ser conclusiva, enuncia algumas pistas, algumas hipóteses: “Talvez Lacan esteja por comigo no que falo agora, no modo como entendo o processo. Talvez Borges me acompanhe também, e aí recordo as menções aos labirintos, jogos de espelhos. O jardim de veredas que se bifurcam. Escher também vem, suas mãos desenhistas desenhando-se. Quem sabe ‘A mulher submersa’ seja um romance em poemas, a expressão de uma proposta de dramaturgia íntima. Tentei apresentá-lo como o fio ou a trama de fios de uma voz poética já com dicção própria. Por isso demorei, para me dar esse tempo — e não sei ainda se foi suficiente”.

Cada leitura há de somar a essa que aqui proponho, uma infinita riqueza de descobertas, como as das talentosas escritoras e poetas que acompanham a edição da Urutau, que tem prefácio de Cinthia Kriemler (“A mulher nas mulheres submersas: artesania e paixão”), posfácio de Laís Araruna de Aquino (“A palavra na fronteira”) e orelha assinada por Micheliny Verunschk.

Para encerrar, um dos poemas de “A mulher submersa”, do “caderno dos fins”, que abre o livro na página 15, que fica aqui como um convite à leitura dessa obra, fundamental em uma estante de poesia contemporânea:

 

sou uma cidade submersa

 

quando à noite me deito contigo e te amo com todos os meus abismos

pela manhã sou uma cidade submersa

 

porque é assim que amo, lendária e triste. porque não posso

senão amar com o que em meu corpo é a história do fim de uma

linhagem, estéril como sou

 

e quando pela manhã tu vais e eu permaneço na cama, nua

quando pela manhã a luz do sol começa a entrar pela janela e

preenche o quarto

 

nessa hora o suor se reacende

o sal cintila em minhas coxas

 

e eu, estéril

eu então sou uma mulher estéril repleta de estrelas

de constelações

 

Mar Becker (Marceli Andresa Becker) nasceu em Passo Fundo (RS) e atualmente mora em São Paulo (SP). É formada em Filosofia, pela Universidade de Passo Fundo, e fez Especialização em Epistemologia e Metafísica, pela Universidade Federal da Fronteira-Sul. Em 2014, publicou uma plaquete, intitulada “Perséfone”, pelo Centro Cultural São Paulo.

 

SUGESTÕES DE LEITURA:

EDITORA URUTAU. “aquilo que chamo de ‘eu’ é precisamente o que vai se erguendo e ruindo com e através (e às vezes até contra) o próprio poema.” — entrevista com Mar Becker, 14 set. 2020. 100ª de uma série de entrevistas com as/os poetas da editora Urutau. Disponível em: https://editoraurutau.medium.com/aquilo-que-chamo-de-eu-%C3%A9-precisamente-o-que-vai-se-erguendo-e-ruindo-com-e-atrav%C3%A9s-e-%C3%A0s-vezes-fb076be60597

ADRIANE GARCIA. A mulher submersa de Mar Becker. Os livros que eu li, 26 maio 2021. Disponível em: https://adrianegarcialiteratura.blogspot.com/2021/05/a-mulher-submersa-demar-becker.html?fbclid=IwAR3kDfS-b3Np6FA_HeKH5f-RcaOcDihWKi7N30lYDaY7wA1GoNLwl1EMquM

 

MARIA ALICE BRAGANÇA
Nasceu em Porto Alegre, RS. Poeta e jornalista. Diplomada em jornalismo pela FABICO/UFRGS, mestre em Comunicação Social pela PUCRS, redatora e editora de emissoras de rádio e de jornais, como Correio do Povo e Zero Hora, foi também professora de comunicação social e artes visuais na Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, RS. Foi diretora de comunicação da Associação Gaúcha de Escritores (AGES), gestão 2019/2020. Publicou poemas em jornais, em antologias nacionais e em Portugal, além dos livros de poesia: “Quarto em quadro” e “Cartas que não escrevi”. Mantém, sem periodicidade, o blog “Alice & Labirintos” (alicelabirintos.blogspot.com) e participa do coletivo feminista Mulherio das Letras (RS, Portugal e Europa). Tem poemas publicados nas revistas literárias Gente de Palavra, Literatura & Fechadura, Mallarmargens, Germina e InComunidade (Portugal) e participou, neste ano, do Festival Internacional de Poesía – FIP Parque Chas Luis Luchi 100 Años (Buenos Aires, Argentina).

 

A coluna Estante da Alice é quinzenal, publicada todo dia 15 e 30 de cada mês.

 

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