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Associação dos Pintores com a Boca e os Pés

Então, é Natal por Rosana Zucolo

De novo, é natal. E neste ano, sem saber o que pensar sobre ele num mundo tão distópico, revisitei os inúmeros cartões impressos feitos e distribuídos pela Associação dos Pintores com a Boca e os Pés. São belos e símbolo da capacidade humana de superação e criação.

Eles sempre chegam no início de dezembro como parte da contribuição social e acabam guardados. Todos os anos penso em enviá-los, mas ninguém mais envia ou recebe cartões de Natal impressos. São coisas do século passado. O mundo célere das redes parece ter ocupado todos os espaços e tomado todos os tempos.

Os correios se tornaram lentos demais, os emails ficaram defasados diante dos chats, as mensagens se tornaram mais curtas e difusas, o tempo de ler triplicou a sua velocidade e o da escuta foi atropelado – seja porque a ansiedade e o medo do julgamento se sobrepõem à receptividade, seja porque todos estão reativos e o tempo para tal foi desaprendido.

Não sei se é apenas uma percepção individual, um estado de espírito que se instalou nos últimos anos frente às inúmeras perdas, mas creio ver as subjetividades mudando. E isso, não necessariamente, parece estar tornando as pessoas melhores ou capazes de sentir e agir de modo generoso ou solidário.

Há em todos as marcas de um cansaço decorrente de sucessivas tragédias sobrepostas. Vivenciadas coletivamente,  presencial ou indiretamente, elas  deixaram sequelas ainda não apreendidas enquanto totalidades e efeitos.

Um dos traços deste fenômeno é a perplexidade e a impotência diante dos acontecimentos que escapam ao controle. Informações inundam a rotina.  Relatos de violência, crueldade, desumanidades a revelar ser a barbárie uma das faces da natureza humana. Massacres de populações civis, jogos infindáveis da política de interesses não apenas a aumentar o fosso da desigualdade, mas a escancarar que escrúpulos e limites éticos perderam sentido  e lugar. Traços que os analistas apontam como o ocaso da civilidade e da civilização como a conhecemos.

Talvez sempre estivessem aí e, agora, estão mais visíveis porque potencializados pela velocidade das redes.

Perderam-se também a esperança e a empatia? Não mais se recebe o outro dentro de si de modo desarmado, sequer se cogita o princípio dialógico e o encontro a partir da intencionalidade do sujeito. Não raro, esquece-se que interação exige a presença física do outro, a paciência, a tolerância, a escuta ativa, a generosidade, a afetividade.

Em tempos de distopia, tais rasgos de civilidade, quando surgem, vêm na forma de pílulas perdidas num mar de algoritmos a invadirem os dispositivos dos quais todos estão dependentes. Busca-se neles traços de humanidade mais fraterna e lúcida, nichos de resistência, alimento para a alma. Ainda assim, reagimos. Insistimos. Resistimos.

De novo, é Natal. E como presente, o  comovente poema de Flora Figueiredo:

Meu querido Jesusinho,
de olho no calendário,
tentei festejar Seu aniversário
com guirlanda e poesia,
mas não deu.
Com tanta sombra no papel,
a poesia se assustou, desviou e não aconteceu.
Então, vamos combinar:
Você põe ordem na casa,
resolve a fome, a guerra na Ucrânia, a faixa de Gaza.
Faz o ódio evaporar na imensidão,
tira a Terra da segunda divisão,
escala um time firme e sustentável
até que a Natureza volte a ser estável.
A ambição que leva ao fracasso,
elimine do mapa e assine embaixo,
onde se lê “extradição “.
Vou pendurar este pedido
na porta de entrada do mundo.
Quando chegar, fique atento.
Precisamos, com urgência, um novo tempo.
As cidades pisca-piscam de esperança,
com a bem-aventurança da Sua chegada.
Aceite minha intromissão e minha prece,
pois a humanidade merece
menos dor e menos pedras no caminho.
Bem-vindo, nosso Menino Deus!
Feliz Natal, Jesusinho!
Rosana Zucolo, jornalista, professora universitária aposentada, mestre em Educação(UFSM) e doutora em Comunicação(Unisinos). Nascida gaúcha, mora em Santa Maria, tem alma cigana, a Bahia como segunda terra e o mundo como casa.  Descobriu ter uma certa predileção por pares: dois filhos, dois prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, dois empregos por muito tempo, dois projetos de cursos de comunicação, dois blogs,  duas casas, dois irmãos, dois cachorros, duas cachorras, dois gatos…
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