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Jacira Fagundes. Foto: Arquivo Pessoal

CARRINHO DE ROLIMÃ por Jacira Fagundes

Um conto de Jacira Fagundes

                                               Quantas cantigas eu recordo ainda.

                                                         A ciranda dando meia volta.

                                                                       E o pau no gato que eu atirei.

           

Mãeeee, ô mãeee, estou brincando aqui fora, deixa eu ficar mãe, com os guris que eles são meus amigos, eu não saio da frente de casa, tu pode me ver da janela, eu me cuido que eles de menina só gostam de nós duas, de mim e da Carlinda porque a Carlinda é que nem guri, e eu sei que pra ela um carrinho de rolimã é coisa fácil, por isso ela fez o dela e o meu também. Puxa vida, como é bom descer a lomba no meu carrinho de rolimã, todos juntos na calçada estreita fazendo um barulhão que fica zumbindo no ouvido da gente, mas mesmo assim eu escuto a vizinha falar pra minha mãe como ela deixa eu me juntar com a molecada que invade o descanso dos moradores, só não espero pra ver o que a mãe responde. Se fosse eu falava o que a senhora tem que ver com isso. Acho que é assim que minha mãe devia responder por que ninguém fica feliz como eu em cima do carrinho de rolimã com esse vento na minha cara e esse frio na espinha. Até me dá aperto no estômago e um gosto de coisa estragada na boca, eu acho que é por causa do atrito das rodinhas nas pedras ou então é do suado dos guris, mas catinga mesmo tem o Pedrão. Ô guri catinguento vai tomar banho! é o que a Carlinda diz na cara dele e ele nem envermelha, também com aquelas unhas sujas e os cabelos cheios de sebo, sabe que eu acho mesmo que a Carlinda tem razão? Ainda mais com esse calor não dá pra aguentar o Pedrão, só mesmo porque a gente é amigo, mas sou mais amiga é da Carlinda. Eu fico sem fala agora mesmo que ela me ajuda a sentar no carrinho e eu aprendo como fazer com as rodinhas da frente pra ter cuidado pra desviar dos canteiros e do muro e das pedras de ponta e dos buracos da calçada e não cair e me esfolar nos joelhos, que a mãe fica braba e não me deixa mais brincar porque a mãe implica não é com os guris, é com a Carlinda. Larga dessa guria sem-vergonha, ela diz, a minha mãe, mas eu tenho muito carinho pela Carlinda, é um faro uma com a outra, eu digo tudo pra ela que me acontece e ela me ensina uma porção de coisas. A Carlinda é um amor, Deus me livre a mãe saber que eu boto pó no rosto e uso o batom que a Carlinda me deu e até disfarçar os biquinhos do seio embaixo da camisola pros guris não debochar eu aprendi com a Carlinda, ela sabe que eu gosto de bala azedinha e ela ganha e me traz só porque eu gosto, rapadurinha de leite a mesma coisa, mas a mãe fica dizendo que eu e a Carlinda é uma esfregação porque eu e a Carlinda vivemos é de cochicho e de lambida uma na outra e a gente assim sempre de mãos dadas umas gurias grandes a mãe diz. Mas quando é pra mãe me bater e me espiar e me pôr de castigo eu sou pequena, eu não entendo mesmo a minha mãe. Ela me fala que tem sexto sentido e eu nem sei o que é isso e eu pergunto o que é sexto sentido, mãe? E ela retruca não me responde, sua desavergonhada . Eu fico calada, vou querer apanhar? Deus me proteja das mãos da minha mãe. A Carlinda sim que é grande que já tem seio redondo e cabelinho no sovaco que eu já vi no banho que ela me mostrou e eu nem senti nojo. E é por isso tudo que eu adoro a Carlinda e adoro nossas brincadeiras, o carrinho de rolimã e os guris da rua, todo mundo descendo a ladeira o vento na cara com as rodinhas soltando faísca nas pedras e a gente suando e fedendo e descendo e caindo e rolando e esfolando o joelho e o sangue escorrendo, Carlinda, me ajuda a mãe vai me ver vai zangar me abraça Carlinda me beija na boca depressa olha a mãe.

Este conto faz parte do livro “No limite dos sentidos”, publicado em 2009 pela Editora Movimento – Porto Alegre/RS

 

Jacira Fagundes é escritora, palestrante e ministra oficina literária desde 2005. Integrou a diretoria da AGES em três gestões. No momento faz parte do Conselho Fiscal da entidade. Por dois anos consecutivos, fez a Coordenadoria Regional/ Sul  da AEILJ (Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil). Coordena o Grupo de Leitura e Criação Literária no Espaço Metamorfose Cursos, desde 2016. Organizadora de duas Coletâneas de Contos do Grupo – “Pra ver a banda passar…contando histórias de amor” (2018) e da Coletânea – “Quando o verbo vira trama” (2020), ambas publicadas  pela Editora Metamorfose. Em 2021, ministrou oficina literária virtual de narrativa longa, que deve culminar com trabalho experimental na Internet em 2021.  Tem 17 livros publicados.

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