Um quarto só, quartinho, espremido entre uma claridade suja de outono e o cheiro forte de suor que a cama exalava: o lar. Um quarto atravancado de sons e objetos absurdos, sem lugar para a vida doméstica – o cubículo possível.
Quando a noite começava a entrar pela janela, o quarto encolhia ainda mais – seu parco espaço encoberto pelas sombras. Nos dias em que não havia concerto nem ensaio, era a hora de Alice ocupar a cadeira ao lado da cama com a cintura do violoncelo presa entre os joelhos de calos grossos.
Num acesso de ciúme, Heitor apertou os olhos e escondeu a cabeça debaixo do travesseiro, fingindo que dormia. Sem aquela música a cama seria intolerável, o quarto uma prisão infecta. Se tinha que suportar tantos exercícios enervantes durante o dia, era seu direito adormecer embalado pela música. Não tocava para os outros, sedutora? Ninguém com mais direitos sobre Alice do que ele, seu marido. Mas o modo como a mulher enlaçava o instrumento parecia-lhe despudoradamente sensual.
Fingia dormir na esperança de que a mulher interrompesse a música, porque então poderia exercer sobre ela seu império, cumprido com prazer e dor: instigá-la, ameaçando-a com manchas roxas pelos braços, a continuar tocando, sempre, tocando mais, até que as cãibras e a ânsia de vômito provocassem seu choro convulso. Seus pedidos de compaixão, molhados e aflitos, tinham o poder de comovê-lo. Então conseguia relaxar e dormir realmente.
Alice, entretanto, conhecia o jogo, suas manhas, e, ainda que exausta, não parava de tocar. Não parava porque decidira que aquela tarde teria de ser diferente. E a decisão se instalou numa pequena ruga da testa, uma ruga renitente. Não estava disposta a lhe entregar mais uma vez os braços em suplício para que ele, subjugando-a, se sentisse um pouco menos infeliz. Sem perder de vista o marido, a mulher, fingindo distração, mantinha os olhos voltados para a janela por onde chegava escorregando silenciosa a noite de outono. Ela sabia que Heitor, através do tecido ralo do lençol, observava cada um de seus gestos. Esse era o jogo e Alice tinha resolvido levá-lo até o fim.
Era preciso acender a lâmpada antes que o marido se diluísse entre as formas da cama.
Movimentos bruscos, por baixo do lençol, revelavam que Heitor estava aflito, engatilhado à espera. A violoncelista, então, exagerou na lentidão do adágio e na tensão do arco a correr sobre as cordas mais graves. Fazia isso com prazer, um prazer bem próximo do gozo. Arranhava competente os nervos do paralítico, seu momento de domínio. Arrancava do instrumento um som rouco, plangente, lamento que lhe subia das entranhas. A melodia se arrastava elegíaca, como um sofrimento muito grande. Escondido pelo lençol, muito de leve, contido, Heitor revolveu-se de gozo, atingido por aquele sofrimento sem fim que nascia da mulher e seu violoncelo. Agitou-se e soltou um vagido animal, fraco, quase imperceptível. Como no orgasmo, a dor de um prazer.
Sem desviar a cabeça, Alice revolveu os olhos procurando alguma coisa em que se apoiar, pois começava a se perder nessa nova experiência de medo e coragem. Ela sabia que o cansaço já vinha a caminho e o esperava, prevenida. Por isso era preciso sentir o próprio corpo, situá-lo em algum lugar onde pudesse movimentar-se. As paredes nuas não lhe ofereciam nada, os móveis começavam a sumir. No canto do quarto, afastado, o vaso de antúrio sem brilho, acanhado, ia sumindo entre vasos menores, tornando-se um vulto feito com os restos de algumas sombras, insensível a qualquer disputa e à música em que se afogavam rancores. O corpo de Alice estremeceu quando seus olhos bateram no vulto de antúrio. Ele ainda trabalhava, o Heitor, quando lhe trouxe no aniversário aquelas folhas de plástico em forma de coração. Uns corações verdes e outros vermelhos, longos tristonhos, todos estéreis, que ela recebeu com fingido entusiasmo. A mulher sabia quão inábil era seu marido no manejo das palavras e quão parcimonioso era com os gestos de ternura. Ela sabia que expressão tamanha de carinho ele jamais repetiria. O beijo, então, com que agradeceu, apesar de tudo, era de gratidão verdadeira.
No centro da mesa, solitário altaneiro, o antúrio reinou por uma semana, tempo que levou para envelhecer e tornar-se insuportável à visão. Foi por isso parar no canto mais escuro do cômodo, onde sua velhice passasse despercebida.
Heitor, a quem a mudança de lugar não pareceu abandono, tomou-se de afeição pelas flores sem vida e esperava com ansiedade as efemérides familiares para presentear Alice com um vaso de violetas de morim engomado e tingido.
Em uma passagem de vários trinados sucessivos, a mulher mal notou a tremura das pernas do marido. Já era quase impossível perceber os movimentos mais sutis de Heitor por baixo do lençol. Estava na hora de acender a lâmpada, mas o comutador ficava fora do alcance de seu braço.
No fim do adágio, Alice arriou os braços, em repouso. Heitor estava paralisado e tenso. Ele sabia tratar-se tão-somente de uma pausa prolongada, o fim do adágio, mas também podia ser a rendição de Alice: o fim de suas forças. Esperava sem respirar, concentrado. Finalmente soaram as primeiras notas do andante: vigorosas, vibrantes, quase marciais. Protegido pela noite, Heitor descobriu a cabeça e relaxou os músculos. Seus olhos procuravam fraquezas onde pudesse se exercitar. Na testa de Alice o suor porejava, sem que ele percebesse. A mão direita já não sentia o arco, mas ela continuou a tocar. Um pingo de suor que se formara no sulco da testa desceu indeciso pelo rosto e se precipitou no chão ao mesmo tempo em que uma nota aguda e seca bateu no peito do homem.
O dedo anular da mão esquerda, de todos o mais fraco, recusou-se a obedecer ao comando de Alice e a nota saiu falha. Heitor soergueu-se ameaçador brusco, esperando seu momento. Seu gesto, contudo, acendeu os restos de energia que Alice mantinha escondidos por baixo de sua decisão. Vibrou com mais força o arco, exagerando o sentido marcial do movimento, e, apesar das lágrimas misturadas ao suor, que a noite escondia, convenceu o marido de que a nota falha fora apenas um descuido. Em seguida ouviu tombar sobre o colchão de molas fracas o corpo prematuramente avelhantado de Heitor.
Adiante alguns compassos, nova pausa com alguns segundos de repouso. Entrava então a sonata num remanso, o largo, com suas notas prolongadas e leves, um movimento que exigia muito pouco esforço em sua execução. Alice percebeu quando Heitor enfiou o rosto no travesseiro, como se fosse dormir. O arco, de tão leve, mal roçava as cordas. A melodia, apesar de um pouco triste, era calma, como se, ao cabo de tanta luta, a espera do fim inevitável trouxesse sossego e paz.
O quarto acabou de sumir na escuridão que entrava pela janela. Alice executava ainda alguns compassos, lentos, de agudos gemidos fazendo contraponto a notas mais graves. Era um duo desconhecido, música jamais ouvida por Heitor, que, perplexo, sentou-se na cama.
Os sons mais graves tinham uma vibração humana, como se fossem formados nas entranhas de sua mulher.
Intrigado, Heitor acendeu a luz ainda a tempo de ver a esposa dissolvendo-se, transformada em fachos luminosos de sons que se desprendiam de seu corpo, tornando o ar mais denso, colorido e quase irrespirável. Sua roupa de luz, de passagem, enganchou-se no vaso de antúrio, que, arrastado, partiu-se no piso frio.
(Conto publicado na coletânea A coleira no pescoço, editada em 2005 pela Bertrand Brasil)
Menalton Braff nasceu em Taquara (RS) e radicou-se em São Paulo (Capital e interior) Formado em Letras, com pós lato sensu exerceu o magistério superior antes de mudar-se para o interior onde se dedicou ao ensino médio. Tem 27 livros publicados, sendo nove infantojuvenis e catorze de literatura geral (contos e romances). Conquistou o Jabuti, livro do ano em 2000, com À sombra do cipreste, foi finalista da Jornada de Passo Fundo em 2003, finalista do Jabuti (contos) em 2007 e finalista do Jabuti e do Prêmio São Paulo de Literatura (romance) em 2008. Pela Editora Reformatório teve publicados Amor passageiro (coletânea de contos) e Além do rio dos Sinos (romance), livro com que conquistou o Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional.