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Ausências por Cláudia Erthal

um conto de Cláudia Erthal

Joana lembra agora aquele mal do tempo, não pelos pingos da chuva a cair, mas pelo chiar da chaleira no fogão a lenha. Quase sempre aquela chuva. O chimarrão na mão esquerda tentava afastar o frio e embalava a orquestra que agora era maestrada por pensamentos. Ela até se esquecia da solidão e largando o mate ao lado do fogão tentava sem muita destreza fazer uma trança nos longos cabelos arruivados, como quem tentasse manter o ritmo dos pensamentos entre os intervalos dos amargos solitários.

Mas os esquecimentos iam confinando as horas em um tempo infinito e intransponível. A despeito disso tudo, o relógio insistia em bater, uma, duas, três, e já foi o tempo de se perder outra vez. E quando o relógio batia, o olhar que antes era transparente como as gotas da chuva, agora mostrava matizes de cor violeta. Por alguns instantes a vida naquele rosto se exteriorizava. Nisso ela sugava profundamente o derradeiro gole, até ouvir o estrondo que causava nela um prazer profundo, som semelhante ao coaxar dos sapos.

“Se tivesse um espelho”, pensava, “poderia terminar a trança com sucesso”. Mas seu constante fazer e desfazer da mesma não teria tanto sentido, não preencheria esse espaços vagos das horas, entre uma manhã e outra, pois parecia ser sempre manhã aqueles dias.

Mas nem todos os dias eram assim, grandes. Descobriu um espelho entre os guardados de sua mãe, já levada há muitos anos pelos pingos gelados da chuva. Ela contemplaria seu rosto no espelho e se assustaria com seus olhos, já vazios. Anos tinham se passado e ela não percebera. Os olhos de Joana eram agora a metáfora do tempo.

E Joana percebeu que seu tempo fora repleto de ausências. O fazer e desfazer de tranças, as manhãs infinitas e a chuva. Seu hábito de matear por outro lado, eram tentativas de preencher não o tempo, mas algumas ausências, nenhuma outra ação parecia ter acontecido durante todos aqueles anos. Lembranças e o espelho guardado de sua mãe que já se fora há tempos, tão distantes como os olhos envelhecidos de Joana sem ela notar.

Joana pensa no espelho dado pela sua mãe. “Isso é para ajudar você a arrumar suas tranças”, “logo irás arrumar um namorado…” costumava dizer, com um sorriso. Ela olha novamente para o espelho e agora enxerga além das rugas e dos olhos vazios, uma rachadura. De súbito, surgem flashes dela sendo jogada contra ele e de suas tranças cortadas ao chão, lembra nitidamente de ter pegado a chaleira fervente e ter jogado nos olhos do agressor.

Em um movimento súbito e automático, pega outra lenha debaixo do fogão e coloca no fogo. “Está frio e chuvoso o tempo”, pensa, “vou aquecer mais uma água para um mate”. Agora a ausência da memória é sugada pela alma como a água do chimarrão.

 

 

Cláudia Erthal

40 anos de idade, nasceu no interior de Selbach (RS), residindo atualmente em Santa Maria (RS), onde atua como professora de Língua Portuguesa, na Escola Básica Estadual Cícero Barreto. Possui graduação em Letras pela UFSM e Mestrado e Doutorada em Estudos Literários, também pela UFSM. Escreve desde criança, embora não tenha publicado nada até o momento, pois tem como principal hobby colecionar rabiscos em cadernos esparsos.
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