Andando sobre ovos
Num dia qualquer, reencontrei a caixa em que guardara fotos e bilhetes de família. O estranho é que nunca havia lido tais bilhetes mas, o ato de ir ao encontro de palavras escritas há 78 anos atrás, fizeram brotar em mim uma sensação de vida e pertencimento, nunca vividos até então.
Os detalhes lidos eram insuficientes para reconstruir os acontecimentos relatados. O material, ainda vivo, compunha com a complexidade do momento, uma fração ínfima de um todo sem fim. E voltei a guardar a caixa em lugar seguro para que, no instante oportuno eu pudesse voltar a ela para somar, subtrair, multiplica e dividir o que possivelmente se apresentaria diferente em uma nova visita.
Perplexidade pode ser uma boa palavra para definir um sentimento de surpresa. Ao nos depararmos com algo inusitado cabe interrogações pela ignorância de nossa pré-história.
Através dela, buscamos clarear com elocubrações o que se insinua nebuloso. E a reconciliação não se constrói com o que nunca foi conhecido, precisamos das lembranças, da observação, da experiência e da imaginação para deduzir e interpretar o que se apresenta como novidade diante de nossos olhos.
Assim que, ao chegar no Zócalo pela primeira vez, contingências do momento fizeram emergir necessidades primárias e efeitos.
Nos intervalos do tempo de uma vida, a latência de um fato particular passado, costura com a vivência coletiva do agora, uma terceira versão a ser contada.
Imensidão visível e submersa
Na luz radiante do meio dia, o Zócalo apresenta sua imensidão espanhola, depois de ter sido o centro político e religioso de Tenochtitlan, capital do império Azteca.
Sei disso por leituras frias e informativas, como também fiquei conhecendo o centro histórico da Cidade do México por caminhar e parar em frente às edificações nomeadas importantes, até que de um momento para outro me dei conta do quanto mais esses 800m2 representam.
A necessidade de compreender essa descoberta se define no sítio exposto, que pulsa como a arqueologia de uma infância. E é impronunciável o que sentimos ao ver aquelas manifestações pétreas tratando de revelar uma história abafada por outra história mas que ressuscita pelas mãos pacienciosas dos que trabalham para revelar a sabedoria dos povos ancestrais.
Há enigmáticos pontos cegos que constroem nossa memória singular, ao compartilharmos com outros a experiência viva. Implicada nela, me escondo como o detetive a perseguir o que falta para a elucidação do enredo.
Nada é simples e nem tudo se explica.
Uma praça seca
Falar em Zócalo é se referir a um espaço simbólico. Conquistada e refundada, a Ciudad de México nasce em 1523 pelas mãos do espanhol Hernán Cortes.
Dizimado, o povo azteca pelos colonizadores, mais uma vez desaparece, pois o conquistador resolve construir a nova cidade em cima dos restos de Tenochtitlan.
As edificações erguidas, quase nos mesmos lugares das anteriores, não foram poupadas de uma enchente que quase dizimou todas as boas intenções ali aplicadas. Faltaram as prevenções implantadas pelos povos originários que ignoradas, resultaram num caos vivido pela nova cidade entre 1929 e 1633. Enchentes, doenças, sofrimentos, crises políticas e sociais começaram a infernizar a vida da população, a partir destes 4 anos.
Andando pelo Centro Histórico é impossível a neutralidade. Ali nos deparamos com o passado, a partir das descobertas arqueológicas. Esses restos materiais de vidas já desaparecidas, falam a linguagem da humanidade. Reconstroem o comportamento dos que antes de nós, criaram um jeito sui generis de pensar e viver a vida.
Estes vestígios arqueológicos nos incitam a mergulhar na história mexicana que, nestas pinceladas mostra, para o bem e para o mal, uma riqueza de extrema relevância para a história da humanidade. Também esses passos dados, em direção às descobertas, remexem com a arqueologia pessoal e faz lembrar da caixa guardada que ainda merece uma escavação minuciosa.
Todo relato é insuficiente
Se a intenção é estimular à experiência, reúno aqui razões suficientes para planejar uma vivência entre as monumentais edificações que compõem a Plaza de la Constituición.
Toda história contada tende a ser ficção. A distância inevitável entre o vivido e o lembrado imprime às narrativas, carregadas de impressões pessoais, outras dimensões.
O que nunca vimos se apresenta interrogativo como uma catedral nomeada Catedral Metropolitana da Virgem Maria aos Céus, construída sobre os escombros de um templo azteca com arquitetura à exemplo das catedrais góticas da Espanha. Sem falar em sua riqueza interna, cabe lembrar que o solo da região central da Cidade do México é argiloso e sujeito a frequentes inundações. A instabilidade dos lençóis freáticos fizeram com que a catedral fosse incluída na lista dos “Monumentos Ameaçados” do Worl Monuments Fund. Por esta razão, um trabalho de recuperação do solo foi iniciado em 1990 apresentando bons resultados.
A construção da Catedral durou de 1573 a 1813. Por esta razão reúne três estilos arquitetônicos: renascentista, barroco e neoclássico.
Ao visitarmos palácios, igrejas, instituições governamentais, seja na América Latina, Europa, América do Norte, enfim, em qualquer lugar do mundo, dois sentimentos surgem conflitantes. Um de admiração pela beleza alí apresentada e outro de uma certa revolta por sabermos o quanto custou de sacrifício às camadas sociais menos favorecidas para a realização de ditos monumentos.
Mais à frente vamos nos deparar com o Palácio Nacional, sede do poder executivo e antiga residência oficial do presidente mexicano. Construído com parte do material do palácio Moctzuma sofreu ao longo do tempo reconstruções e restauros.
Na escadaria da imperatriz e no corredor do segundo piso do Pátio Central vamos encontrar pinturas murais de Diego Rivera. No mural/tríptico da escada o artista descreve a História do México entre 1521 a 1930. Pintado durante 1929 e 1935, foi intitulado A Epopeia do Povo Mexicano. Diego também produziu onze painéis no andar do meio representando a era pré-hispânica. Nenhum deles pode ser visitado pois os ingressos estavam esgotados durante o período em que estive lá.
Mas apesar disso visitei a mostra de Rafael Coronel (1932/2019) intitulada La melancolia del ser. Um grande retratista mexicano que trabalha suas personagens em fundos planos de cores intensas e dramáticas à exemplo de Caravaggio.
O Palácio também sofre deteriorização por conta do solo arenoso e constantemente está em reparos.
Ainda resta uma referência ao Palácio das Belas Artes, o principal teatro de ópera da Cidade do México. Apesar de não ter conseguido conhecer os murais do Palácio Nacional, aqui pude me deleitar com as obras de Diego Rivera, Rufini Tamayo, David Alfaro Siqueiros e José Clemente Orozco.
O que continua em nós
Viajar ao México é entender a importância complexa da humanidade. Os vestígios que restaram de outras civilizações vão sendo desvendados camada a camada com delicadeza e paciência para que a manipulação dos frágeis objetos encontrados não virem pó. Os sintomas das civilizações do presente se encontram nestas escavações que revelam as melhores maneiras de se entrar em contato com a genêse de nossa história.
Mais que se surpreender com o passado exposto, é dar asas à imaginação criando todas as versões possíveis para o que nunca poderá ser considerado verdade absoluta.